Contrastes
Toda criança, na primeira infância, supõe que o próprio lar é a figura do mundo e que as outras famílias, na totalidade, são semelhantes à sua.
Eu tinha sido educado num meio tradicional, religioso e preservado. No sistema de vida, na decoração, na linguagem e no ambiente doméstico em geral, tudo era bastante conservador e ultramoralizado. Pervadidas1 pela influência europeia e especialmente francesa, as pessoas se tratavam com muita cerimônia e cortesia recíprocas, mais do que em outras famílias de São Paulo.
Por outro lado, meus pais casaram-se já com alguma idade – ela com trinta anos e ele com trinta e dois –, sendo, portanto, de um mundo mais antigo do que a geração dos progenitores dos meus colegas. Meu pai procedia de um ambiente também muito tradicional naquele tempo, como era o Estado de Pernambuco, e minha mãe provinha de uma família de costumes muito antigos.
O resultado é que, na minha casa, os móveis, as pessoas e os modos de ser mantinham alguns restos da solenidade, da dignidade e da distinção do século XIX e da Belle Époque. Observavam-se os protocolos da educação do passado, e inclusive a ala mais revolucionária dos familiares era antiquada, em comparação com o resto da cidade.
Mamãe recomendava muito à Fräulein Mathilde que insistisse nessa educação, com a qual, aliás, o meu temperamento se ajustava perfeitamente. Agradava-me o trato cerimonioso, amável e respeitoso. Detestava qualquer forma de brutalidade, e a cortesia me parecia a condição para a felicidade e o conforto psicológico da vida.
Sempre estava disposto a entrar em qualquer combinação, com toda a confiança, de maneira que, quando brincava com outros meninos e meninas, reinava entre nós uma grande tranquilidade, inclusive no relacionamento com meus primos. Basta dizer que nunca tive com eles uma briga séria, em longos anos de convívio, e jamais havia entre nós uma palavra imoral. Era a vida limpa da infância inocente.
Instintivamente, eu julgava que todos os meus próximos participavam do meu estado de espírito e imaginava ter com eles uma íntima união de almas, profunda, carinhosa, desprevenida e afável; ideia que possuía algo de realidade e parte de aparência. E não podia suspeitar que o ambiente fora de casa fosse diferente daquilo que via.
Por outro lado, eu havia sido influenciado sobretudo por mulheres, pois minha mãe e a Fräulein tiveram uma enorme participação na minha educação, enquanto a posição de meu pai – como, aliás, a de grande número de progenitores naquele tempo – era mais distante da educação dos filhos. Eles tinham sua atenção muito mais aplicada à direção dos negócios.
É preciso dizer que o papel absolutamente decisivo para mim – a ponto de não poder ser comparado com nenhum outro – foi o de minha mãe. Ela era muito mais conservadora que o resto da família, possuía ainda algo da mentalidade da geração da mãe dela e me habituou a ver a Religião e a Moral Católica sob uma luz exata e verdadeira. A Fräulein Mathilde, por sua vez, vinha da Europa, onde ela havia educado crianças de meios mais tradicionais do que a generalidade dos próprios ambientes europeus.
Além do mais, cresci junto com duas meninas, minha irmã e uma prima, que era como se fosse outra irmã. Tudo isso fez com que as minhas maneiras tivessem uma forma de delicadeza que correspondia ao mundo anterior à Primeira Guerra Mundial, o que constituía um considerável recuo no tempo.
Uma grande diferença entre dois mundos
Habituado com essa educação, entrei para o colégio como se um bólido me tivesse lançado bruscamente – de dentro desse meio tão aconchegado, tranquilo e antigo – trinta anos para a frente e de cheio no mare magnum2 abrutalhado da Revolução3. “Desembarquei” no São Luís como alguém poderia desembarcar na Lua e, no primeiro dia, senti o choque dos dois mundos, compreendendo, num momento, que estava diante de um novo caminho e que o ambiente de minha família, tradicional e convencional, era o passado, remoto como o tempo dos faraós.
Em todo o meu modo de ser, de falar e de me mover havia uma grande diferença em relação aos meus jovens companheiros de estudos, os quais, nascidos em lares muito mais aggiornati4 do que o meu, tinham recebido uma formação diversa da minha. Eu conhecia vários deles, alguns eram parentes meus e outros eram filhos de pessoas amigas da minha família. Percebi então que São Paulo estava muito mais modernizada do que eu me afigurava: certos estilos e modas, completamente desprovidos de grandeza e contrários à educação que havia recebido, se despejavam pelo Brasil. As relações entre os meninos da mesma idade não consistiam mais nas maneiras cerimoniosas que se usavam em minha casa, mas eram de uma selvageria incrível, já francamente revolucionária5. Tudo o que eu aprendera ser a ordem, para eles era desordem, e tudo o que para mim significava desordem, eles consideravam normal.
A abolição do cumprimento cerimonioso
Naquele tempo todos os homens, desde a infância, saíam de casa com chapéu. Fosse chapéu de palha, de feltro ou mesmo um quepe, tratava-se de um “rito” absoluto, em qualquer época do ano. Por exemplo, para atravessar a rua e ir à barbearia – situada em frente à minha casa – eu devia usar o chapéu. Era preciso tirá-lo ao transpor o limiar da porta de entrada, pois utilizá-lo dentro de casa seria considerado o auge da impolidez e da falta de delicadeza, uma verdadeira barbaridade! Lembro-me de que, antes de aprender essa norma, um dia entrei em minha residência sem tirá-lo, e a Fräulein bradou:
– Plinio! Tire o chapéu! Onde está sua educação?!
Tive vontade de retrucar:
– A minha educação está com a senhora, que devia ter me ensinado isso…
Outra regra absoluta que eu tinha aprendido era a arte de cumprimentar bem: ao encontrar-se na rua com alguma pessoa conhecida, de qualquer idade, era preciso suspender a cobertura da cabeça, o que também deveria ser feito, por respeito, diante das igrejas e ao cruzar-se com a comitiva de um enterro. Por mais pobre que fosse o acompanhamento do morto, parava-se de andar e deixava-se passar o esquife, com o chapéu na mão.
Segundo essa educação, quando dois meninos conhecidos se encontravam na rua, tiravam o chapéu cerimoniosamente, um para o outro. E, se paravam para conversar, ambos permaneciam com o chapéu na mão. Tratando-se de uma senhora, devia-se também sorrir para ela ao cumprimentá-la e, para saudar uma menina, inclinava-se a cabeça ao tirar o chapéu. Existiam regras para tudo e eu era muito observante delas.
Inclusive, antes de ingressar no São Luís, tinha recebido a seguinte recomendação de mamãe:
– Quando você começar a frequentar o colégio, e encontrar seus amiguinhos na rua, seja sempre muito amável, sorria e tire o chapéu.
Eu não imaginava que pudesse existir outro cumprimento além desse. A primeira vez que fui passear, depois de ter ingressado no Colégio São Luís, era um domingo. Não me lembro bem se estava com a Fräulein ou com meus pais, mas fomos tomar um sorvete numa confeitaria do centro velho, no triângulo formado pelas Ruas Direita, São Bento e XV de Novembro, que era o foco da vida de São Paulo. Era frequente deparar-se com conhecidos andando nessa zona, pois as famílias iam lá para mil coisas.
Ao encontrar um dos meus “amiguinhos”, saudei-o tirando o chapéu e sorrindo com muita amabilidade e simpatia. Entretanto, em vez de retribuir esse gesto afável com o qual eu estava habituado, ele me cumprimentou apenas levantando as sobrancelhas. Era a resposta brutal de quem recusava a gentileza, pela ideia de que o menino varonil não deveria ser gentil. Ele poderia tirar o chapéu para uma senhora, mas nunca para outro menino! Bastava um cumprimento sumário…
Esse foi um dos primeiros choques que tive. Percebi que os alunos do meu colégio começavam a abandonar o hábito do cumprimento cerimonioso. Em geral, saudavam-se apenas pondo a mão na aba do chapéu, do modo mais seco possível, mas às vezes nem se cumprimentavam. As relações entre meninos de famílias bem educadas passavam a ser semelhantes às dos moleques.
Com muita clareza, vi todo um mundo que havia por detrás dessa mudança: a recusa da amabilidade, do respeito, da cortesia e da confiança recíproca, o ritmo acelerado, o desprezo das regras de boa educação como sendo completamente inúteis, e a introdução da brutalidade na vida. Enquanto as antigas atitudes e maneiras que eu tinha aprendido exprimiam um modo de ser e uma ordem da alma, a qual tinha como reflexo a ordem do corpo, o modo moderno, pelo contrário, manifestava uma desordem das almas.
Não se tratava apenas de uma questão de etiqueta, mas de uma escola espiritual. Não morria apenas a cortesia de tirar o chapéu, mas todo um modo de ser, feito de respeito, cheio de boa vontade e cordialidade, que fazia a vida verdadeiramente agradável, e sem o qual ela se tornava infernal. Nessa ocasião, entendi melhor como o modo hierático de ser era superior às maneiras revolucionárias, que, no entanto, se afirmavam cada vez mais.
Notei também que essa abreviação das antigas fórmulas europeias de cumprimento se dava em benefício dos novos estilos norte-americanos, pois esse era o cumprimento simplificado que eu via as pessoas utilizarem nas fitas de cinema. E os meninos adotavam esse modo yankee, em oposição ao que eles consideravam como o decrépito e adocicado da Europa.
A boa educação me dava a ideia de uma muralha que desabava. Então, pensei: “Mas essa gente profere palavras indecentes, não gosta de estudar e ainda pratica a ‘regra’ de violar todas as regras?! O que é isso? O que aconteceu?”
Em casa, perguntei por que havia esse trato entre os meninos. Certas pessoas – não minha mãe! – responderam-me:
– As maneiras do mundo moderno são assim! Você tem um modo de ser educado muito antiquado, e agora precisa habituar-se a isso.
A civilização que vinha nascendo era construída sobre a brutalidade, a falta de cortesia, a promiscuidade e a ausência das belas maneiras. Um mundo sem gentileza, sem protocolo, sem cerimônia e sem moral.
Entendi que seria infiel a qualquer coisa dentro de mim mesmo – algo que se ligava confusamente no meu espírito à Religião Católica –, se perdesse a cerimônia e as maneiras de um menino de boa educação.
Um valo profundo
Em pouco tempo, percebi que o colégio inteiro notava em mim algo por onde eu fazia exceção em relação aos demais alunos: não participava dos jogos brutos, tinha um trato amável e cerimonioso, e nunca pronunciava as palavras imorais que, a todo propósito, eles utilizavam. A principal causa de incompatibilidade que me separava deles, como um valo profundo, era a questão da pureza.
No momento em que entravam nas salas, vindos do recreio, os meninos sempre conversavam entre si com palavras indecentes, o que me causava horror. Quase todos utilizavam os piores termos, conhecendo até o fim os temas congêneres e falando sobre eles com toda a naturalidade.
Então, começavam a me perguntar:
– Plinio, você sabe o que significa tal coisa?
– Não.
– Quer dizer isto e aquilo… Não sabia? Ha-ha-ha! Olha, o Plinio não conhecia tal palavra!
Ambiente massificante
A tudo isso se acrescentava que em meu ambiente doméstico sentia-me muito estimulado a ser eu mesmo, e tudo parecia dizer-me: “Uma vez que você possui determinada configuração psicológica – à qual corresponde, inclusive, tal ou qual característica física –, tem o direito de ser desse modo e é seu dever realizar-se assim. Não procure ser de outra maneira, nem imitar ninguém. Seja na sua vida o que você deve ser!”
Entretanto, percebi que no mundo colegial as coisas eram inteiramente diferentes. Havia uma espécie de massificação, pela qual todos deveriam ter as mesmas ideias – que não eram as minhas –, o mesmo jeito – do qual eu não gostava – e faziam uma “sociedade” de meninos afins uns com os outros, que punham os diferentes “no pelourinho” e caçoavam dos que não fossem como eles. Eu me sentia, portanto, posto dentro de uma “rede”, a qual queria arrancar de mim reações que não desejava ter.
E perguntava-me: “Por que vim aqui? Por que isto é assim? Por que sou diferente?”
O choque
Esses choques foram tão frontais e me causaram tanta estranheza, que me tomaram por inteiro e determinaram uma reação no mesmo ato. Não foi, portanto, como a surpresa de um animal que recebe uma chicotada e no primeiro instante tem um movimento de fuga, mas depois avança. Foi um impacto seguido de indignação imediata, a qual despertou um desejo de luta. No fundo, tratava-se de uma repulsa categórica às atitudes que feriam a inocência.
Até então, a minha vida tinha sido cheia de uma felicidade primeva, toda áurea e sobrenatural. Agora, porém, as portas desse passado de alegria se haviam fechado atrás de mim e eu entrava numa nova existência. Um ano depois da minha Primeira Comunhão, eu saía do “paraíso terreno” do convívio diário com minha mãe e ouvia os primeiros rugidos da Revolução.
A luta havia começado.
1 O verbo “pervadir” – do Latim, pervado – não consta nos dicionários atuais de Língua Portuguesa, mas era muito utilizado pelo Autor, no sentido de penetrar ou embeber.
2 Literalmente: “grande mar”. Situação de grande confusão.
3 As palavras Revolução e Contra-Revolução, quando escritas com iniciais maiúsculas e não se referirem a algum episódio histórico determinado, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em sua obra “Revolução e Contra-Revolução”, a saber:
Revolução: Processo que se manifestou, na ordem dos fatos, no início do século XV. Nasceu ele de uma explosão de paixões desordenadas que vai conduzindo à destruição de toda a sociedade temporal, à completa subversão da ordem moral, à negação de Deus.
Contra-Revolução: Luta incruenta para extinguir a Revolução e instaurar a ordem cristã, toda resplandecente de Fé, de humilde espírito hierárquico e de ilibada pureza. (Cfr. Corrêa de Oliveira, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. São Paulo: Editora Retornarei, 2002, p. 144 e 147).
4 Atualizados, na moda.
5 O termo “revolucionário” é utilizado pelo Autor no sentido explicado acima, referente à Revolução enquanto processo histórico.
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