Crepúsculo suave de uma nobre vida
Na véspera de completar 92 anos, Dª Lucilia voou para a eternidade. Sua longa e edificante existência foi coroada, em seus últimos momentos, por mostras da virtude, suavidade e paz que lhe inundavam a alma. Tendo já nossa revista focalizado diversas facetas da luminosa e atraente personalidade da mãe de Dr. Plinio, nada melhor do que nos voltarmos hoje para aqueles sublimes instantes que encerraram seu peregrinar nesta terra.
Vinte e um de abril de 1968. Em seu apartamento, Dª Lucilia se encontrava no leito de dor. Protegida pela Providência, recebera a Extrema-Unção no dia anterior, pois, preocupado com o estado de saúde de sua mãe, Dr. Plinio pedira a um sacerdote amigo a caridade de ministrar a ela esse derradeiro sacramento.
Por volta das 17 horas, o mencionado padre, portando os santos óleos, entrou com Dr. Plinio no aposento da enferma e explicou, sumária e claramente, que iria ministrar-lhe a Extrema-Unção. Durante a cerimônia, a cada sinal da cruz feito pelo sacerdote, ela se persignava com largos e solenes gestos. Apoiada em vários travesseiros e mantendo bem abertos os olhos, recebeu com plena lucidez o sacramento que a prepararia para a morte.
A profunda compenetração com que ela tudo acompanhou impressionou os presentes. O próprio padre, em conversa com Dr. Plinio, comentou o fato, mostran-Na véspera de completar 92 anos, Dª Lucilia voou para a eternidade. Sua longa e edificante existência foi coroada, em seus últimos momentos, por mostras da virtude, suavidade e paz que lhe inundavam a alma.
Tendo já nossa revista focalizado diversas facetas da luminosa e atraente personalidade da mãe de Dr. Plinio, nada melhor do que nos voltarmos hoje para aqueles sublimes instantes que encerraram seu peregrinar nesta terra. DONA LUCILIA Crepúsculo suave de uma nobre vida do-se edificado pelo modo como ela recebera a Extrema-Unção.
Essa inesquecível cena se desenrolou num clima de serenidade, pervadido por uma espécie de sobrenatural luminosidade.
O derradeiro dia de uma longa existência
Havia tempos, Dª Lucilia vinha sofrendo dificuldades de respiração, causadas por problemas cardíacos. Nessa angustiante situação, era admirável observar com quanta tranqüilidade ela “administrava” — se assim se pudesse dizer — a pequena quantidade de oxigênio que conseguia inspirar. Em nenhum momento um estertor, nem sequer um arrepio. Aos poucos, ia acomodando o organismo às parcelas cada vez menores de ar que penetravam nos pulmões. Preparava-se para morrer em paz não proferindo uma só palavra que denotasse medo ou queixa pelos tormentos que costumam assaltar os moribundos.
A todos tratava com afabilidade e solicitude, procurando responder a tudo quanto lhe perguntavam, embora a falta de ar não lhe permitisse pronunciar senão frases muito curtas. Ainda assim, nesse estado, ela se desdobrou para consolar uma pessoa aflita que se encontrava junto a seu leito. No último dia de vida rezou, como sempre, todas as suas orações diárias, voltada para as imagens do Sagrado Coração de Jesus e de Nossa Senhora.
No semblante e nos gestos se lhe estampavam a mansidão da alma pura, a paz de espírito e a alegria do dever cumprido, próprias de quem já fez todos os sacrifícios.
Transparecia nela uma sobranceria despretensiosa de quem imolou-se por inteiro e, tendo diante de si apenas a morte e a eternidade, exclama como São Paulo: “Combati o bom combate, acabei a minha carreira, guardei a Fé” (2 Tim 4, 7). Sua alma estava preparada para receber no Céu a “coroa da justiça”.
Um grande e lento sinal da Cruz
Dª Lucilia era assistida por um jovem médico, amigo de seu filho, pois naquele momento não foi achado em casa o conhecido Dr. Abrahão Brickman, seu médico particular. Por volta de dez horas da manhã, o enfermeiro de Dr. Plinio (este último convalescia, naquela ocasião, de uma penosa doença, contraída em dezembro de 1967) dirigiu-se ao jovem médico, que lia o jornal no salão, para comunicar que Dª Lucilia não passava bem. Um tanto surpreso, pois às 8h20 lhe aplicara uma injeção e nada fazia prever um agravamento súbito de seu estado, o médico abandonou a leitura do jornal, dirigindo-se imediatamente ao quarto dela.
Deitada, sem apoio em travesseiros, com os braços estendidos ao longo do corpo, os olhos fechados, tranqüila, ela movia somente os lábios. Com certeza rezava. Ao tomar-lhe o pulso e verificar quão lenta e fracamente batia, o médico percebeu a proximidade do último momento. Pediu então ao enfermeiro que avisasse logo Dr. Plinio.
Nesse meio tempo, Dª Lucilia, que não deixara de mover os lábios, sentindo em seu coração haver chegado a hora da solene despedida desta vida, com decisão retirou a mão segura pelo médico, e com gesto delicado mas firme, sem manifestar esforço ou dificuldade, fez um grande e lento sinal da Cruz.
Depois repousou no peito suas mãos alvíssimas, uma sobre a outra, e serenamente expirou, na véspera do dia em que completaria 92 anos…
Com muito acerto, comentaria alguém mais tarde: “Ela saiu com majestade de uma vida que soube levar com honra”.
Morte suave
Desde que o médico se acercara do leito, ela não abrira mais os olhos. E ao falecer não teve estremecimentos, nem externou qualquer sinal de dor. Beati mortui qui in Domino moriuntur — Bemaventurados os mortos que morrem no Senhor (Apoc 4, 13).
Conservou em seus últimos instantes a mesma serenidade com que, durante a vida, arrostara toda espécie de dores — sem surpresa nem inconformidade. Naqueles derradeiros momentos, deixou transparecer a firme resolução de uma alma verdadeiramente católica: perante o sofrimento, indissociável da vida, cumpriu com fidelidade o dever de aceitá-lo com ânimo, doçura e paz, bendizendo os Corações de Jesus e de Maria, para assim unir-se a Eles por inteiro. No fim de sua existência, o grande sinal da Cruz sugere ao espírito a sentença: Talis vita, finis ita — Tal qual é a vida, assim será o fim.
“Ninguém pode imaginar o bem que ela me fez”
Instantes depois, quando chegou ao quarto, Dr. Plinio perguntou ao médico: — Ela está tão lívida! Ela morreu? Naquela pungente circunstância, o médico só pôde responder com um aceno de cabeça… Então, tomado por um pranto que lhe vinha do mais fundo da alma, o filho se ajoelhou junto à cama e osculou inúmeras vezes a mão e a fronte de sua mãe. Depois, sentou-se próximo ao leito onde jazia aquele corpo, para ele a tantos títulos querido e venerado.
Dr. Plinio chorou por longo tempo, ora recostado no espaldar da poltrona ora inclinado para a frente, mas aceitando a provação com aquela característica resignação cristã que de sua mãe bem aprendera. Entrementes, pediu ao médico que rezasse a Ladainha de Nossa Senhora por alma dela, fazendo-o repetir, duas ou mais vezes, invocações apropriadas a aliviar a dor atroz que sentia, tais como Mãe da Divina Graça, Mãe do Bom Conselho, Virgem Clemente, Causa de Nossa Alegria, Refúgio dos Pecadores.
Após estas primeiras preces, Dr. Plinio referiu-se diversas vezes, em frases entrecortadas por soluços, ao indizível amor que o unia a sua mãe: — Eu sabia que ela ia morrer, mas não pensei que fosse logo… Coitadinha, espero que não esteja sofrendo no Purgatório… Ela era verdadeiramente uma senhora católica… Ninguém pode imaginar o bem que ela me fez… Eu estudei sua bela alma com uma atenção contínua e era por isto mesmo que eu gostava dela. A tal ponto que, se ela não fosse minha mãe, mas a mãe de um outro, eu gostaria dela da mesma maneira, e daria um jeito de ir morar junto a ela. Mamãe me ensinou a amar a Nosso Senhor Jesus Cristo, ensinou-me a amar a Santa Igreja Católica. — E por duas vezes, levantandose da poltrona, Dr. Plinio se acercou do leito para oscular os pés de sua tão querida mãe.
Era impossível não se sentir tocado a fundo ao contemplar aquela cena tão pervadida de dor e carinho filial.
Não tardou muito a se apresentar um Prelado chegado à família, a fim de rezar as preces litúrgicas próprias àquela ocasião. Ao iniciálas, Dr. Plinio o interrompeu: — Excelência, por favor, reze devagar, pois quero acompanhar com toda atenção o sentido das orações propostas pela Igreja para a consolação dos fiéis num momento como este.
A cena mais emocionante…
Anos mais tarde, Dr. Plinio comentaria: “A cena que mais me emocionou na vida foi o encontro com minha mãe, que Deus acabava de chamar a Si. Imediatamente fui avisado para ir ao quarto dela, contíguo ao meu, mas quando cheguei ela já não estava lá. Não a alcancei! E senti a imensidade que nos separava.
“Deus e Nossa Senhora nos uniam, e isto bastava. No entanto… quando entrei no quarto e vi o corpo dela já sem vida, senti que aquelas mãos, que tanto me haviam abençoado e acariciado, não me cariciariam mais, aqueles lábios, que tantas coisas me haviam ensinado, não me ensinariam mais, aqueles lábios, enfim, que tanto haviam orado por mim, não se moveriam mais… “Senti então, naquele momento, passar-se algo comigo que me sacudia de modo profundo e por inteiro, como se eu fosse uma corda que arrebentasse, e algo, que era quase eu mesmo, separar-se categórica e drasticamente de mim.
“Nunca, nunca em minha vida tivera uma emoção igual ou comparável àquela. “Na véspera, havia passado o dia inteiro junto de Mamãe, no quarto, não saindo, a bem dizer, para nada. Eu sabia que ela estava prestes a morrer, e a razão de eu permanecer ali era a consciência plena desse fato. Mas — fato singular — aquele drama da morte só se pôs, para mim, no instante em que ela expirou e senti a ausência do seu carinho… muito mais do que isso, a própria ausência dela. “E, então, chorei copiosamente.”
Últimas homenagens
O corpo de Dª Lucilia foi, em seguida, transladado para o salão nobre do apartamento. Parentes e amigos acorreram em grande número para prestar-lhe as últimas homenagens. Uma parente, após rezar um instante, abraçou Dr. Plinio e sussurrou-lhe: — Eu sei que para a quase totalidade das pessoas isto é muito pouca coisa, mas sei bem quanto esta perda significa para você.
No início da tarde celebrou-se a Missa de corpo presente, no próprio apartamento. Diante do altar, encontrava-se o féretro; a pouca distância deste, do lado do Evangelho, o sofá no qual se sentaram Dr. Plinio e sua irmã, Dª Rosée. O salão e outras dependências da residência estavam repletos. O ambiente, entretanto, era de paz e unção. Segundo depoimento de um dos presentes, pairava no ar uma discreta alegria sobrenatural que, à maneira de uma certeza, dizia a todos já estar no Céu a alma de Dª Lucilia.
Em sua face transpareciam as virtudes que tinham sido o ornato de sua vida: doçura, suavidade e bondade, realçadas pela majestade insondável da morte. No momento do Evangelho, Dr. Plinio se levantou, aproximou-se do ataúde e, pousando a mão direita sobre a borda deste, terna e filialmente acariciava com a esquerda aquele querido rosto, ao contemplá-lo pela última vez. Assim externava todo o afeto e gratidão que lhe iam na alma, pelos contínuos exemplos de virtude recebidos de sua mãe boníssima, ao longo de sessenta anos de convívio.
* * *
Às 17 horas o cortejo fúnebre partiu em direção ao Cemitério da Consolação. Dr. Plinio, impossibilitado de andar, só pôde acompanhá-lo de automóvel até o portão de entrada do campo-santo.
Precedendo o esquife, membros da TFP portavam as coroas de flores. Introduzido aquele já saudoso corpo na capela do cemitério, para receber a última bênção da Igreja e ser depois levado ao jazigo da família, uma atmosfera de elevação e sublimidade, que não cessaria de se intensificar ao longo dos anos em torno da memória e da sepultura de Dª Lucilia, envolveu a todos.
Paz e serenidade de Dr. Plinio após a morte de Dª Lucilia
Apesar da intensa dor, Dr. Plinio terminava o dia numa grande serenidade. Com efeito, já no início da tarde, chegando ao quarto a fim de se preparar para os funerais, sentiu-se tomado por uma paz e uma quietude indizíveis, que sucediam à desolação causada pela morte de sua inesquecível mãe e à idéia da inexorável separação.
Já não brilhava a luz do meio-dia naquele lar, onde Dª Lucilia vivera na dignidade de sua vida privada. Contudo, uma amena e discreta penumbra dali jamais se retiraria.
Ao voltar do cemitério, recostando-se no sofá do escritório, Dr. Plinio teve a singular impressão de estar ali ao lado sua extremosa mãe, sentada na cadeira de balanço, pronta a iniciar a costumeira prosinha” noturna… De modo imponderável, ela continuava a vivificar o lar. Prolongava-se assim, à luz da Fé, e para além dos umbrais da morte, o convívio entre mãe e filho.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)
Revista Dr Plinio 13 (Abril de 1999)
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