Desprezado e perseguido
Após a minha chegada ao São Luís, os meus colegas observaram as minhas atitudes e reações para ver como eu procederia. E, ao cabo de alguns meses, quando já estava um pouco mais maduro no colégio, comecei a sentir a onda de antipatia que vinha contra mim. Percebi que a minha heterogeneidade em relação ao ambiente geral provocava mal-estar e oposição.
Então, certa ala de alunos muito antirreligiosos começou a me hostilizar com caçoadas, para me obrigar a seguir o caminho deles.
Início de uma hostilidade: apelidos e desenhos
Foi um período tremendo, numa luta para não me deixar tragar pelo ambiente, mas resistir apesar de parecer ridículo. Eu procedia com toda a naturalidade, como se dissesse: “Sou assim e está acabado. Se não quiserem, não falem comigo, pois vivo perfeitamente sem vocês”.
Por outro lado, os alunos que manifestavam desacordo com a mentalidade revolucionária, eram meninos errados, com jeitos estranhos, o que, até certo ponto, tornava compreensível a caçoada contra eles. Eu devia manter o meu modo de ser e a minha posição, custasse o que custasse, enfrentar a hostilidade e, ao mesmo tempo, cumprir meus deveres de bom estudante e de católico piedoso, mas sem atrair sobre mim a crítica que era feita a esses meninos. Precisava prestigiar e valorizar a boa conduta.
Eu poderia conduzir uma discussão intelectual com facilidade, e tentei inclusive argumentar com um ou outro, mas eles me responderam com gargalhadas, acenando com a ameaça de dizer para todo o mundo o que eu pensava. Tive a noção inteiramente clara de que, se brigasse com algum deles por motivo de Religião ou de Moral, haveria um “tribunal” formado, com a sentença já declarada contra mim: a opinião pública do colégio, a qual desataria numa gargalhada e me daria um apelido qualquer, colando-o em mim até o fim do ano letivo. Desse modo, eles tornariam crônica a perseguição e viria sobre mim o dilúvio da zombaria geral.
De fato, procuraram pretextos para fazer isso: eu era louro e, sem ser propriamente pálido, também muito alvo. Então, começaram a chamar-me de “Rato Branco”, mas sem sucesso.
Em certa ocasião, tive uma pequena briga com um menino e dei-lhe um tapa na mão, mas, por uma coincidência qualquer, minhas unhas estavam crescidas. Ele se retirou com as mãos marcadas, dizendo:
– Oh! O Plinio me arranhou!
Então, um outro disse:
– Iiih! Que gato!
E um terceiro acrescentou:
– Gato, não: gata!
E me deram o apelido de “Gata”. Depois disso, alguns alunos desenhavam e me davam figurinhas de gatos. E tratando-se de um animal felpudo, macio e dengoso, havia nisso uma insinuação indicando haver em mim qualquer coisa de efeminado. Entretanto, essa tentativa foi de curta duração.
Um colega fez dois desenhos representando-me: num deles, eu aparecia estudando na carteira do colégio; em outro, estava junto com minha irmã, cordato e contemplativo. Nesse último, notava-se que o autor percebera a minha inocência, mas com hostilidade: ele quis dar a ideia de um menino mole, um tanto visionário e divagando.
Rosée aparecia com o fogo de sua personalidade, tendo a fisionomia de uma menina que acabou de brigar e está vitoriosa. Um dia, mostraram-lhe a pequena obra e ela comentou:
– Uma irmã terre-à-terre1 e um irmão genial!
Tive vontade de dizer-lhe: “Isso não é genialidade, mas fidelidade e retidão”.
No recreio, uma pedrada
Certo dia, recebi a primeira agressão física de minha vida.
Eu era da divisão dos médios ou dos menores. Durante o recreio, estava de pé num ângulo do pátio, olhando a brincadeira dos outros com o desprazer e o aborrecimento de sempre, quando, de repente, senti um golpe fortíssimo na têmpora: era uma pedrada, atirada de longe por mão anônima.
É preciso notar que, na época, havia entre os meninos a ideia de que uma pancada vigorosa nessa zona da cabeça era mais prejudicial do que em qualquer outra parte do corpo, podendo facilmente ocasionar a morte. Aquela pedra, que não era pequena, acertou bem na região considerada mortal e, portanto, quem a atirou tinha pelo menos a intenção de machucar-me muito. Ou seja, não se tratava de uma brincadeira: o golpe era dado com o evidente intuito de me intimidar com uma ameaça.
A pedrada me causou um ferimento sério, deixando-me um tanto atordoado e com a têmpora inflamada, mas, sendo bastante saudável, notei que aquilo não iria me matar. Limpei-me com a mão, dominei-me, assumi uma fisionomia de quem não dava muita importância à agressão e voltei-me lentamente, com jeito, na direção de onde tinha partido a pedra, vendo a posição dos presentes e procurando descobrir quem a havia atirado. Ao longe, na divisão dos maiores, vi um grupinho de meninos que se dispersavam e, sem olhar-me de frente, davam risadas. Entre eles estava um, pouco mais velho do que eu, num local de onde podia ter jogado aquela pedra com facilidade. Ele virou-se de costas, em atitude de quem se esquivava e procurava sumir, mas eu percebi perfeitamente ser ele o agressor.
Esse menino era muito troncudo – o que aliás era uma característica da família dele – e eu sabia não ter força e desenvolvimento físico para lutar com ele. Eu sempre notava que ele era particularmente revolucionário: ríspido, hirto, sem nenhum afeto nem benevolência, como se estivesse eriçado de espinhos para arranhar quem quer que fosse. Ele parecia ter uma noite escura habitando dentro de sua alma.
Apesar de não me atacar nunca, eu sentia que ele me detestava, especialmente por causa da minha castidade, com uma capacidade de odiar superior à de um menino. Lembro-me que, quando o conheci, pensei: “É curioso, ele tem algo pelo qual é uma espécie de antieu”.
Creio que ele também teve certo discernimento para intuir isso, o que explica a agressão. Aliás, ele possuía uma força de personalidade à qual correspondia bem o impacto daquela pedrada. De maneira que, quando a recebi, mesmo antes de saber de onde vinha, pensei: “Está assinado. Já sei quem foi!”
Percebi que ele queria obrigar-me a assumir uma posição ridícula diante de todos, pois eu faria o papel de bobo se fosse correndo atrás dele e perguntasse:
– Você me jogou uma pedra?
Ele responderia:
– Que pedra?! Ha-ha-ha! Você recebeu uma pedrada? Que gozado!
Se eu revidasse, certamente apanharia e, além do mais, os amigos dele diriam que não haviam presenciado nenhum ataque, fazendo-me assumir o papel de um desequilibrado, que agredia um colega muito pacífico. Então refleti:
“Esse covarde tem pontaria exata, mas possui uma habilidade ainda maior, pois me colocou numa situação difícil: se não me zangar, farei o papel de um mole, mas, vou zangar-me com quem?”
Eu estava isolado, diante de “juízes” desejosos de absolver o culpado e de desmoralizar-me. Não disse nada, mas olhei em volta e continuei parado no meu lugar, como quem dizia: “Atire outra!”
Creio que ele sentiu que eu percebi ter sido ele o autor da agressão e teve medo de repeti-la, pois entendeu que eu iria à diretoria do colégio, para denunciá-lo.
Essa foi a primeira ofensiva radical contra mim. Compreendi que a pedrada me fora desferida em razão de minha atitude de desacordo com o modo de ser e de pensar de muitos alunos, e pensei: “Então, o ódio chega até lá? Um menino de boa família, ameaça um outro de morte?”
Por temperamento, eu não era propenso a me irritar e nem sequer senti vontade de devolver a pedrada a quem me agredira. Entretanto, fiquei muito preocupado, não por medo de morrer, mas por ser alvo daquele ódio. Senti-me como se estivesse cercado por uma cortina de rejeição e pensei com meus botões: “Esse não é o ódio de um só, mas de cem, trezentos ou mil. Não tenho diante de mim apenas uma soma de pessoas, mas uma coligação de inimigos, unidos por uma solidariedade profunda, a qual vem da semelhança deles entre si e da dessemelhança comigo. E não deverei enfrentá-los somente hoje, mas durante a minha existência inteira”.
Percebi que vinha uma avalanche sobre mim. Eu nunca teria imaginado encontrar essa batalha na vida!
Um temperamento afetivo
Essas primeiras perseguições encontraram em mim um ponto fraco. Qual era ele?
Nas famílias de educação antiga, o paradigma da sociedade era a pessoa amável, pois se acreditava que a amabilidade conseguia tudo na vida. O furor e a força de combate eram mostrados como disposições de alma quase maléficas, pois o homem enfurecido era reputado capaz de fazer um juízo errôneo a respeito das pessoas e das coisas, sendo assim levado à injustiça e até à violência.
Por isso, certos pais tinham muito cuidado em reprimir qualquer atitude agressiva da parte dos meninos. Se um deles tivesse algum procedimento muito combativo, imediatamente era chamado e diziam-lhe:
– Não pode ser! Você não deve ser indelicado, grosseiro e brutamontes! Faça um sorriso amável! Quero ver! Não, não está bem! Outro sorriso amável!
De maneira que o menino tinha de ser suave, doce, amável, polido, culto e estudioso.
Por disposição natural, eu era muito propenso à afabilidade, à bondade e à cordialidade. Afetivo, carinhoso e até meigo com as pessoas com quem tratava, era de um gênio muito estável e não tendia a estabelecer polêmica ou discussão, para não sofrer o incômodo de sustentar uma luta. E, quando era provocado, pensava: “Eu, combater para derrubar um outro? Para que vou incomodar-me com ele? Vou levar a minha vida! Mesmo se ele me insultou, a ofensa dele não me atinge! Se os outros acharem isso feio, também não me incomodo! Podem achar o que quiserem!”
Um obstáculo interno
Por outro lado, tinha a impressão de que todos os piores meninos possuíam uma força muito maior do que a minha, inclusive para as menores coisas, como o modo de brincar. As minhas brincadeiras eram muito tranquilas e delicadas, enquanto eles, numa simples trombada de duas bicicletas, tinham explosões de brutalidade:
– Aaah! Eu já disse: você me esbarra! Você me deixa louco!!!
E uns admiravam as raivas dos outros, como manifestações de uma intensidade e de uma força, em que o futuro homem heroico, varando os trajes da infância, começava a se manifestar. Eu, pelo contrário, não esbarrava, não ficava “louco”, não me enfurecia e nunca tinha aquelas reações…
Então, quando começaram a me hostilizar, perguntei-me: “Se eu fosse mais amável, não mudaria a atitude dos colegas em relação a mim?” Tentei algumas vezes abrandá-los pela amabilidade, mas sem resultado. Aquilo não adiantava de nada, pois eles debicavam de mim, dizendo:
– Ridículo! Estou fazendo-lhe um desaforo e você não tem outra coisa a responder, senão esse sorriso?! Mariola, vai embora!
E davam uma gargalhada, como desabafo de decepção. Eu me sentia esmagado e dilacerado.
Poderia afastar jeitosamente o desprezo, mantendo diante deles uma atitude submissa, curvando a cabeça e deixando a tempestade soprar sobre mim, como um arbusto que se inclina sob o vendaval, mas logo depois se reergue.
Havia no colégio um menino, bastante medroso, o qual era atacado por muitos colegas. Enquanto andava, eles vinham por trás e davam-lhe pontapés. Tanto quanto podia, ele fingia não perceber nada e só reagia quando os golpes eram tão fortes e num tal alvoroço, que ele tinha de voltar-se. Então perguntava amavelmente:
– O que você deseja comigo?
Era o máximo que podia fazer, para não ser “massacrado” pela opinião pública do colégio. Eu não tinha dificuldade em compreender o vergonhoso, o inglório e o pouco digno desse procedimento.
Se eu reagisse assim, faria aumentar a perseguição, pois, quando os inimigos percebessem a minha moleza, sentiriam o campo livre para redobrar os ataques, tornando-os mais frequentes, furiosos e depreciativos, criando assim uma situação mil vezes mais desagradável do que a própria luta. Compreendia a necessidade absoluta de enfrentar esse obstáculo interno existente em mim, mas não sentia vontade de fazê-lo…
Percebia que eles aumentavam as provocações, desejando verificar até que ponto as ideias que eu sustentava modelavam em mim um verdadeiro homem combativo e enérgico, ou um homúnculo qualquer, desses que os outros obrigam a ficar quieto, com três tapas na face.
Um ou outro me dizia:
– Você não vai dar para nada! Você é um pamonha!
Compreendi então que eu tinha sido educado dentro de casa segundo o padrão do menino bonzinho, mas isso agora não me bastava.
Fidelidade à inocência
Além do mais, nesse tempo eu era um menino magro e franzino, com o aspecto frágil e delicado de quem tinha sido um pouco doente. Então, diante de colegas fisicamente muito mais fortes do que eu, precisava tomar cuidado. Entretanto, apresentava-se um escrúpulo em minha consciência: “É pouco varonil não revidar um ataque. Se um desses brutamontes me agredir, tenho a obrigação de vencer minha moleza, sendo combativo e heroico. Devo dar-lhe uma bofetada e apanhar como um herói, para manter a minha honra!”
Mas logo replicava para mim mesmo: “O que é a honra? Aquilo que os outros acham bonito? Possuir músculos e coragem de apanhar? Para ser aplaudido, vale a pena sofrer um espancamento?”
Por outro lado, a luta de boxe e outros tipos de violência me pareciam repugnantes e absolutamente desprezíveis. Se eu retornasse a casa todo sujo, com o queixo deslocado ou um olho esmagado, por haver brigado com socos e pontapés, sentiria que a luminosidade da minha inteligência se apagaria e de algum modo estaria tisnado.
Pensava: “Agrada-me resolver as coisas de maneira conciliatória, mas verifico que, por esse meio, faça eu a gentileza que fizer, serei atacado por ser casto e verdadeiramente católico. Ora, eu quero cumprir os Mandamentos da Lei de Deus e, por essa razão, posso tornar-me o escárnio do colégio, o que seria uma catástrofe. Então, se a amabilidade não me serve, o que fazer para impor medo e não perder esta partida?”
Uma ou duas vezes consegui zangar-me um pouquinho ao ser provocado pelos colegas, mas logo em seguida eles me achataram. Sentia-me como um pássaro que começasse a voar e imediatamente caísse. Assim, fui tendo umas zangas de maior envergadura, mas era desprezado por quase todos.
Entendi perfeitamente que a própria glória de Deus estava empenhada em que eu respondesse à perseguição de modo altaneiro, e que algo em mim tinha de ser mais forte, pois, do contrário, seria esmagado como uma formiga. E pensava: “Mas então… Vou ser um homem colérico, borbulhante de indignação, capaz de brigar com este e com aquele, insuportável e selvagem, como tantos outros? Essa não é uma atitude católica. Qual é o equilíbrio para poder enfrentar essa gente com braço de ferro? Não consinto em ser como alguns que vejo por aí, feras debandadas com ar de homens. Não quero ser assim!”
Sentia que, se me tornasse um homem inferiorizado, extinguir-se-ia algo do meu “canto angélico” interior, ou seja, da inocência de que eu me sentia portador. Porém, se me fizesse forte à maneira dos outros, brutalizando-me, esse “canto” cessaria igualmente. Eu tinha a deliberação de fazer qualquer esforço ou sacrifício, custasse o que custasse, para ser fiel a essa inocência, mas a minha fidelidade deveria passar por uma pinguela ou por uma corda bamba… Tinha de inventar uma outra forma de fortaleza e fazê-la prevalecer.
No fundo, eu tentava fazer da ordem e da temperança – e não da intemperança e da brutalidade – fatores de força.
À procura de uma fórmula viva
Estava numa situação em que não poderia consultar pessoa alguma, pois sentia que ninguém me entenderia, nem sequer mamãe. Via, entretanto, que ela possuía muito dessa força que eu desejava, mas não conseguiria penetrar no problema, e me daria o conselho de ser sempre bem comportado…
Tinha de resolver por mim mesmo essa charada.
Permaneci na dúvida durante algum tempo, até que obtive a graça de tomar uma resolução, impelido pela necessidade de não me deixar esmagar:
“O que estão querendo de mim? Que receba um mundo de insultos, por cumprir a Lei de Deus, que muitos deles não cumprem? Que seja um bobo, aceitando os pontapés de todos? Não pode ser! Não aceitarei! Não contem comigo para isso! Até lá, a minha preguiça não irá! Então, pela incondicionalidade deles, vejo que não há remédio: tenho de me impor pela força e deixar de ser mole. Senão, levarei a vida apanhando de todo o mundo! Deve existir um ponto de equilíbrio que não conheço, mas eu o encontrarei na Igreja, pois ela possui todas as soluções”.
Comecei a prestar atenção nos sermões das Missas, mas não obtinha uma solução para o problema. Tentei praticar esse equilíbrio por mim mesmo, mas sentia que me faltava uma fórmula viva para me inspirar e me ajudar a ser eu mesmo.
1 Materialista.
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