Discussões em família
A partir do momento em que comecei a pôr calças compridas, passei a ter muita consciência de minhas autonomias como homenzinho, ou melhor, sentia-me homem feito, com a mentalidade inteiramente formada e com a impressão de possuir já uma longa experiência.
Polêmicas acaloradas
Iniciado o meu contato com o mundo dos adultos, agora eu tinha a liberdade de entrar no living da casa a qualquer hora, e sentar-me ao lado de alguma pessoa mais velha para ter uma prosa, ou de começar a dar minha opinião nas conversas deles, o que antigamente não podia fazer.
Os meus parentes se dividiam entre católicos e monarquistas de um lado, ateus e republicanos do outro, e em torno desses dois temas essenciais – questões de Religião e de formas de governo – girava frequentemente a conversa à mesa, com discussões de fundo cordial, mas acesas! Eu permanecia ouvindo e, embora tivesse um enorme gosto em polemizar, sabia que não podia entrar sem motivo nessa discussão, pois eles não tolerariam tal atitude num pimpolho, ainda que já tivesse quinze anos… Também, pelo modo com que me acompanhavam os olhos castanhos de mamãe, entendia que não podia ir além de certo limite – que eu mesmo devia descobrir – mas dentro do qual havia alguma liberdade de “navegação”.
Então, quando a discussão entre dois tios estava muito quente, eu perguntava:
– Não compreendi bem tal coisa. Quereria me explicar?
Eles respondiam com indulgência, sem o menor sinal de agastamento, considerando vantajoso explicar tudo, para que o mocinho progredisse intelectualmente. Às vezes me corrigiam, quando eu, por exemplo, cometia um erro de português ou inclusive de francês, pois com quinze anos já tinha a obrigação de falar essa língua de modo corrente.
Entretanto, eu fazia as perguntas à maneira de armadilha – muitas vezes já conhecendo a resposta –, dirigindo-me ao tio republicano ou ateu:
– O senhor deu tal argumento. Quer me dizer como é isso?
Ele se mostrava contente com o novo “discípulo” e respondia. Eu lançava a minha objeção e confundia o parente, o qual às vezes se zangava e levantava a voz. Eu dava uma vista d’olhos em Dª Lucilia e, ao perceber que ela não ia se desagradar, entrava também de modo altissonante, para fazer sentir ao interlocutor a minha inconformidade com os erros dele, com as ideias opostas à doutrina da Igreja ou contrárias ao verdadeiro senso católico. Naturalmente, isso causava polêmicas. Eu dizia:
– Estou certo e o senhor está errado!
– Menino! Como estou errado?
– Eu não sou menino! Tenho muito bons argumentos!
– Quais são?
Eu facilmente me acalorava. Apresentava dois ou três argumentos e continuava:
– Responda!
Com os tios, cortesia e resistência
Por outro lado, naquele tempo existia o hábito de os tios entrarem muito na educação dos sobrinhos.
No meu caso, quando os meus tios interferiam na minha vida era num sentido modernizante e contrarreligioso, o que causava fricções no meu relacionamento com eles. Começou então um período muito reivindicatório, em que minha irmã, alguns primos e eu alimentávamos uma “guerra” contra os parentes que não fossem nossos respectivos pais, ante essa interferência deles na existência de cada um de nós.
Cortesia? Sim. Levantar-nos, cumprimentá-los, beijar-lhes a mão? Sim! Mas a nossa atitude dava a entender o seguinte: “Não se meta! E, se me chegar aos ouvidos que o senhor se queixou de nós junto a papai ou mamãe, algo acontecerá”.
Isso era comentado entre os primos:
– Meu tio se meteu na minha vida!
E, se um tio do interlocutor também tivesse intervindo nos assuntos do sobrinho, este esbravejava do mesmo modo:
– É preciso acabar com isso!
Tudo isso repercutia nas famílias, e cada tio ouvia o que era dito a respeito dos outros…
A meu pai, pelo contrário, eu reconhecia o direito de fazer-me censuras e as tomaria em consideração, mas ele era homem pacífico e deixava-me fazer o que eu entendia. Nunca tentou escalar aquela jovem muralha.
Afetuosas discussões com Dª Lucilia
De minha mãe eu aceitava tudo. Ela podia intervir na minha vida – pois era dela! – e eu sempre ouviria o que ela quisesse, dando-lhe todas as satisfações que desejasse, com afeto e admiração. Ora, como eu sabia que ela estava com a razão? Pois querer bem é diferente de ter razão… Era muito simples: eu estudava a doutrina católica com os jesuítas. Então, verificava as afirmações de mamãe e percebia que sempre estavam próxima ou remotamente baseadas no ensinamento da Igreja ou, pelo menos, conferiam com este. “Ora – pensava eu –, se é doutrina católica, não se discute mais! Está perfeito! Eu me inclino e digo: ‘Muito obrigado. Repita a dose quando for preciso, porque a Igreja é divina’”.
Ela não me dizia nada durante as discussões, mas, como desejava que eu fosse muito amável com todos os mais velhos da família, às vezes vinha falar comigo depois e me chamava a atenção:
– Filhão, você respondeu mal para o seu tio.
Eu dizia:
– Mas, mamãe, é claro! Respondi mal porque ele veio com ideias abstrusas!
Ela percebia que eu tinha razão, mas uma das suas funções consistia em manter a harmonia nas conversas. Apenas não queria que eu gritasse com os tios, nem lhes respondesse com impertinência. Então me dava um conselho muito afetuoso:
– Você deve respeitar os mais velhos.
E me lembrava os méritos daquele tio, o quanto havia feito na vida e as razões pelas quais merecia um respeito especial, por dever de justiça. Ela dizia tudo isso com uma espécie de profundidade aveludada, numa tal música de conselhos e de gestos, que eu ficava encantadíssimo! De qualquer modo, saíamos de acordo: mamãe com os olhos mais abertos a respeito de um ou outro parente, e eu reconhecendo que também não era fora de propósito notar neles certas qualidades que mamãe havia colocado na balança. Ambos retificávamos um pouco a contabilidade! Eu continuava a discutir com os tios de modo enérgico, mas perdendo a irritação e respondendo-lhes com maior respeito.
O único que eu não aceitava era que mamãe alegasse opiniões e comentários desses parentes, tios, primos mais velhos ou tios-avôs – irmãos da mãe dela – para me convencer de algo. Às vezes ela me dizia:
– Você precisa prestar atenção, porque seu tio Fulano disse tal coisa a respeito de tal defeito seu.
Às vezes eu a interrompia – o que, aliás, ela nunca fazia comigo – e respondia francamente:
– Olhe, meu bem, a senhora me diga o que quiser, o quanto quiser, e eu ouvirei com o maior gosto, mas opinião de tio e de tia não tolero! Eles não entram na minha vida, pois são pessoas colaterais para mim, a quem eu devo gentileza e não obediência e, portanto, serei gentil com eles, mas mando às favas tudo quanto eles disserem a meu respeito! Então, o que a senhora quiser dizer em seu próprio nome, eu acato, mas não invocando meus tios. Eles, não!
– Mas, por quê? Ele quer tão bem a você…
– Não, não e não!
Ela permanecia um pouco hesitante, olhando-me com seriedade afetuosa, mas depois mencionava a opinião de algum tio, sem dizer que era dele, com fórmulas assim:
– O que você acha, se alguém objetar tal coisa contra você?
Eu percebia que aquilo vinha do tio, e às vezes deixava correr a coisa para evitar discussões. Em outras ocasiões, pelo contrário, eu contra-atacava. Ela defendia a opinião sem muito calor e, logo depois, caía em si e compreendia bem a minha posição, pois eles diziam verdadeiros absurdos… O sinal de que eu havia acertado na apreciação das pessoas era o silêncio dela. Ia ficando quietinha e mudava de assunto, como quem dissesse: “Eu sou sua mãe e não posso estar lhe dando razão em tudo, mas no fundo bem vejo que você está certo. Queira‑me bem e não insista”.
Isso mostra bem a capacidade de adaptação de mamãe, e o quanto ela era flexível ou inflexível, segundo as circunstâncias.
Entretanto, essa batalha com os meus tios durou um ano, e depois foi diminuindo até cessar completamente.
Cachorro sem dono?
Em certo momento eu tive de pôr limites inclusive à ação de minha avó, Dª Gabriela, a qual também queria intervir na minha educação. Eu a respeitava muito, mas ela precisava entender que ali não podia entrar! Certa vez, ela quis dar-me um conselho sobre certo assunto particular meu e eu lhe disse:
– Olhe, vovó: isto aqui é meu, exclusivamente meu e não tem nada a ver com a vida da família. Em mim mando eu, de sorte que farei o que quiser.
Ela utilizou uma expressão que eu já tinha ouvido antes em seus lábios, mas que eu não esperava nessa circunstância:
– Está bem. Você quer ser livre, não é? Quer ser um dos cachorros sem dono, na rua?
Era um dito fortíssimo! Ela disse isso com tanta personalidade; a miséria do cachorro sem dono e o infortúnio do vassalo sem senhor se tornaram tão claros diante dos meus olhos, que eu não redargui e ficamos ambos quietos. Em vez de prosseguir na batalha, permaneci pensando no pitoresco da imagem, pela força educativa com que ela soubera carregar aquelas palavras. Entretanto, logo depois pensei: “Então, é isso mesmo! Prefiro ser cachorro sem dono!”
Divergências com um primo
Também tinha discussões colossais com um primo, aproximadamente dez anos mais velho do que eu, o qual me detestava, e eu percebia que isso se dava pelo fato de eu ser puro, educado e tradicional. Entretanto, ele era obrigado a disfarçar o ódio e inclusive a manifestar especial atenção para comigo, por causa de certa ligação dele com Dª Lucilia.
Durante a minha infância havíamos tido pouco contato, pois quando eu era criança ele já era moço feito. Eu costumava chamá-lo de “Anticristo”, devido a que ele possuía um discernimento muito acurado para todas as formas de mal; de tal maneira que, apesar de ser pouco inteligente, escolhia sistematicamente o mal e não o bem, numa lógica que nunca errava. O coitado não possuía Fé e professava também de modo ostensivo a convicção de que o homem não deveria ter cultura, pois o mais prestigioso era ser sportman1 e bater num punching-ball.2
Ele representava por inteiro a era do cinema, enquanto eu personificava o contrário. Por outro lado, desde pequeno eu tivera um vocabulário relativamente fluente e abundante, o que ele também detestava. Às vezes eu estava numa roda de rapazes de minha idade e percebia, a certa distância, o olhar irritado dele em cima de mim, e as nossas discussões eram tais, que em certas ocasiões nos gritávamos desaforos um para o outro.
Um dia, eu estava esperando o bonde numa esquina, com o irmão mais moço dele e um rapaz que não era parente nosso, mas apenas meu amigo, neto do Barão de Araraquara.3 Nessa espera, começamos a fazer uma brincadeira entre os três, apostando para ver quem atingia num poste a maior altura, quando esse primo passou em automóvel e nos viu. Sem dizer nada, apenas nos cumprimentou com a mão e nós respondemos.
No dia seguinte, eu estava em casa desses dois primos, conversando com o mais novo num jardim de inverno, quando entrou o mais velho e disse ao irmão:
– A próxima vez que eu estiver na rua, e vir você na companhia de pessoas que fazem molecagens, vou pedir a papai para lhe proibir de andar com essa gente!
Referia-se a mim, naturalmente, e tinha razão, pois eu havia feito uma étourderie,4 uma bobagem. Entretanto, eu percebia que ele não fazia aquilo para corrigir o que minha ação tinha de mau, mas para me combater no que eu possuía de bom. Continuou dando indiretas contra mim, e eu também “disparei” sobre ele, enquanto seu irmão, muito indolente, permanecia quieto. Mas eu não podia falar muito alto, pois não queria que as pessoas mais velhas da família tomassem conhecimento dessa bobagem que nós tínhamos feito. Então, tive de responder em surdina, e a discussão terminou numa tensão extrema.
Orações de Dª Lucilia pelas lutas do filho
Mamãe via algo de minha oposição constante com esses parentes, tios ou primos, de orientação ateia e anticatólica, mas eu nunca soube exatamente o que ela percebia de toda essa minha luta.
Eu tinha o hábito de ir com ela à Missa na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, aos domingos. E, apesar de não ser pessoa de grande pontualidade, ela sempre chegava na hora certa.
Após comungar, mamãe rezava muito diante do altar-mor e ali ficava por longo tempo, terminada a Missa. Por fim, costumava visitar os outros altares, detendo-se sobretudo diante das imagens do Sagrado Coração de Jesus e de Nossa Senhora Auxiliadora, começando pela que estivesse mais próxima, conforme o lugar dos bancos da igreja que ela tivesse ocupado, o qual não era o mesmo a cada domingo. Depois, ainda rezava em frente à imagem de Nossa Senhora de Lourdes e, às vezes, segundo as circunstâncias, ia para os altares dos outros santos e também rezava um pouco.
Mas havia um ponto fixo: ela sempre parava e rezava muito junto a um altar lateral, onde há um grupo de
imagens representando Nossa Senhora e São José encontrando o Menino Jesus, O qual está discutindo com os doutores no Templo. Era um local que não me despertava especialmente a piedade e eu apenas fazia uma jaculatória quando passava, pois, havia tanta gente ali! Sentia-me um pouco desconcertado com aqueles fariseus todos… Compreendia esse grupo para efeito ornamental, mas, rezar para eles? Eu gostava de rezar ao pé dos altares que tinham uma só imagem. Aliás, nem mesmo a imagem de Nossa Senhora que ali está me convidava à oração. Perguntei várias vezes a mamãe por que rezava ali, mas ela me respondia:
– Deixe.
E nada mais dizia. Eu notava que ela rezava com os olhos semicerrados uma oração intérmina, a qual não sei se era sempre a mesma, pois não se ouvia nada do que ela dizia, apesar de mover os lábios quando rezava. Entretanto, quando se detinha junto a esse altar, a pronúncia era muito mais acentuada e eu percebia que ela estava pedindo algo com especial empenho. Era como se ficasse na ponta dos pés, para mais seguramente obter o que desejava!
Em geral eu saía da igreja antes de minha mãe, mas certo dia, em que permaneci por mais tempo e encontrei-a rezando ali, conversei depois com ela e, perguntando-lhe com jeito, obtive esta resposta: ela sempre fazia oração diante daquele oratório pedindo graças para mim.
Ora, eu conhecia o episódio do Menino Jesus discutindo com os doutores, mas não compreendia bem que relação mamãe poderia estabelecer entre esse acontecimento e o filho dela. Então, em outra ocasião, como eu insistisse em saber o motivo de sua oração ali, ela me disse algo confuso que, no fundo, significava “não insista”, mas, por uma palavra – fiat lux5 – eu pude descobrir o que era.
Mamãe me via discutir a favor da Religião e se agradava muito com isso. Então, rezava para que o Menino Jesus me concedesse um pouquinho da luz incomparável, da sabedoria infinita, da força, da insistência e da coragem de que Ele deu provas naquela ocasião, enquanto discutia com os orgulhosos doutores do Templo de Jerusalém. Ela queria que eu O imitasse e soubesse dar bons argumentos, enfrentando a opinião dos inimigos da Fé – os fariseus do meu tempo – para assim poder vencer as discussões, sempre fiel ao modo de ser católico e tradicional, vivendo na piedade, na devoção e no amor a Deus. E pedia a Nosso Senhor a graça de nunca permitir que eu me desviasse do caminho que havia tomado, nem me tornasse um homem como os outros.
Entretanto, a resposta de mamãe não podia ser tão clara que desse margem a eu lhe perguntar se os fariseus a que ela se referia não eram aqueles parentes ateus que se opunham a mim…
1 Em inglês: esportista.
2 Em inglês: bola de pancadas.
3 Trata-se de Fábio de Oliveira Camargo, o qual foi colega de Plinio no Colégio São Luís a partir do ano de 1920.
4 Em francês: ação irrefletida.
5 Em latim: “Faça-se a luz” (Gn 1, 3). Expressão utilizada para indicar a solução de algum problema ou a explicação de algum enigma.
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