Dor e seriedade
A seriedade causa dor, mas o pior sofrimento é o produzido pela falta de seriedade, a qual faz com que a pessoa se sinta vazia, sem ideias, sem ideais, sem vontade.
O sofrimento era algo tão ligado à vida de Dona Lucilia e a todo o ser dela, que eu em pequeno às vezes notava que ela estava sofrendo, porém não sabia por quê. Ficava olhando para ela e contemplando o sofrimento, mas sem compreender o que a fazia sofrer.
Pequenos sofrimentos que originavam um sofrimento global
Mais tarde, quando me tornei um pouco mais velho, fui compreendendo uma ou outra razão de um ou outro sofrimento. Depois, compreendi que os sofrimentos dela formavam um como que edifício. Era um conjunto de razões que a faziam sofrer e que constituíam um grande sofrimento global, o qual era o sofrimento geral da vida dela. Então comecei a ter uma ideia global do que era o sofrimento.
Quando pequeno, eu notava, sobretudo, que mamãe tinha restos de enfermidade devido àquela operação da vesícula, que ela fez na Alemanha em 1912, e percebia que tinha muita dificuldade em caminhar.
Eu notava que, às vezes, meu pai voltava cedo do escritório, passava por casa, pegava-a e saíam os dois a fazerem uma volta a pé. Ele, tendo terminado seu serviço durante o dia, contente com a tarefa, com saúde e vida, um homem muito feliz. Ela, uma pessoa na qual cada passo era uma dor, ao mesmo tempo entendia que não poderia irradiar seu sofrimento sobre o esposo, ser uma causa contínua de dores para ele. Ela deveria fingir que não estava sofrendo, ou contar sorrindo: “Hoje, como estão me doendo os pés!”, e continuar a andar, todos os dias, a extensão recomendada pelos médicos. Nunca terminar antes porque lhe estavam doendo muito, porque essa extensão era necessária para habituar os pés ao esforço adequado.
O sofrimento produz a seriedade
Então, eu percebia que mamãe tinha uma compreensão muito profunda dessa situação. Ela sentia esse sofrimento, e sentia na alma a dor que tem esta quando o corpo sofre dor física. Não é uma dor superficial, mas uma dor profunda. O corpo padece e a alma com isso sofre.
Quando voltava para casa, ela descansava, e nesse momento eu entendia tudo quanto sofrera durante o passeio, porque, sorrindo, mamãe se deitava numa espécie de divã e ficava com os pés imobilizados até que a dor passasse. Ela às vezes gemia sorrindo; então se formava uma roda de pessoas conversando coisas do dia, e por amabilidade perguntavam-lhe:
— Você está melhor, Lucilia?
— Sim, sim, estou melhorando.
Eu estava vendo que era todo o dia a mesma coisa, não acabava mais. E compreendia bem que aquilo trazia para seu espírito um reflexo, que era a seriedade, porque o sofrimento produz a seriedade.
A pior dor que o homem pode ter não é a causada pela seriedade, é a produzida pela falta de seriedade. Sentir-se não sério, vazio, sem ideias, sem ideais, sem querer nada, sem dizer algo que valha qualquer coisa, isto causa um sofrimento pior do que o pior dos sofrimentos.
Um dos melhores dons que Deus pode dar a uma criança é o sofrimento. Não nos queixemos, portanto, dos sofrimentos que tenhamos tido. Pelo contrário, agradeçamos a Nossa Senhora e compreendamos que Ela, assim, nos destinou para a seriedade.
Atitudes das pessoas perante a Primeira Guerra Mundial
Pouco tempo depois desses primeiros fatos da minha infância terem se passado, arrebentou a Guerra Mundial. Entendi mais ou menos o que era essa guerra, mas tinha a noção da distância enorme que havia entre o Brasil e a Europa. Portanto, era impossível que a guerra chegasse até aqui; enquanto a Europa passava por todo aquele sofrimento, no Brasil havia a boa vida tranquila e folgada; o Brasil não entraria em guerra, e por isso as pessoas aqui gostavam de celebrar a tranquilidade brasileira. Não só apreciavam isso os brasileiros, mas os estrangeiros oriundos de países que estavam na conflagração, mas que tinham vindo para o Brasil antes da guerra. Eles tinham pais, irmãos, filhos, netos, metidos na conflagração. Isso lhes interessava, mas, sobretudo, o que eles possuíam era um bem-estar de pessoalmente não participar da guerra.
Quando chegava a tardinha, era frequente verem-se nas ruas da São Paulinho rodas formadas na calçada por famílias de imigrantes. As donas de casa faziam pratos do tempo em que viviam em seus países de origem, os homens conversavam, davam risadas, as crianças brincavam, todos se preparando para comer e depois comendo valorosamente, comentando como era bom eles não estarem na guerra.
Comecei a observar isso e percebi que havia duas atitudes perante a conflagração: uma, a daqueles a quem era, sobretudo, agradável estar longe dela; a outra, a dos que admiravam a guerra, compreendiam sua beleza. Estes últimos não podiam ir à guerra porque tinham compromissos aqui no Brasil para manter a família; se eles fossem poderiam morrer, e a família ficava abandonada. Mas acompanhavam os jornais com o espírito de lutadores: seu país avançou ou recuou, os aliados deles avançaram ou recuaram, os meios de destruição se acentuaram. Aparece o aeroplano, então o grande perigo são os voos. Depois surgem os gases asfixiantes, os bombardeios em massa das grandes cidades. E no fim, coisa talvez pior do que tudo, as epidemias que contagiavam às vezes um país inteiro e que constituíam uma tristeza, uma coisa horrível.
Atrozes ferimentos causados pela conflagração
Eu tive uma governanta austríaca que era solteira e ofereceu-se para, durante o dia, trabalhar num hospital de feridos de guerra.
Ela disse que os ferimentos eram atrozes. Por exemplo, um jovem que tinha ido para combater e voltou com um ferimento que de si não era mortal, mas ele não podia falar porque um projétil lhe arrancara o queixo. Quando ele precisava de alguma coisa, tocava uma sineta e escrevia, com letra trêmula de alguém que está gravemente doente, aquilo de que precisava. Às vezes não conseguia escrever por inteiro, deixava cair sobre a cama a caneta e o papel, e ficava esperando um momento em que um pouquinho mais de força lhe permitisse fazer o pedido.
Minha governanta contava que, pelo regulamento do hospital, as enfermeiras tinham horários determinados para descansar, porque se elas ficassem doentes também, o hospital tornava-se inoperante. As enfermeiras precisavam ter uma defesa contra a epidemia, então o hospital mandava-as repousar. Mas quando minha governanta estava descansando e se lembrava de que talvez o homem sem queixo precisasse de alguma coisa, ela se levantava às escondidas e ia verificar se ele queria algo. Quem censuraria uma atitude como essa? Só poderia aplaudir. Mas que condições de vida, que horrores, que monstruosidades!
Reflexão sobre o magnífico tema da dor
Tudo isso representava o sofrimento, e eu notava que Dona Lucilia tinha em face desses fatos uma atitude muito mais pensativa e mais séria do que as outras pessoas. Estas comentavam, como ela, as notícias que os jornais publicavam, por vezes com sensacionalismo que impressionava muito o público, é natural.
Por exemplo, acabava o almoço de domingo, todos se espalhavam pela sala de jantar e começavam a conversar sobre esses assuntos. Lembro-me até hoje de que quando um velho relógio de parede, com um bonito som, marcava duas horas da tarde, havia sempre um espírito mais leviano e superficial que dizia com uma voz que dominava a todos: “Meus caros, agora chegou a vez de nos divertirmos. Você vai para onde? E você? Vamos fazer os nossos programas.” Então, uns iam passear nos arredores da cidade, outros faziam visitas, enfim, essa vida leve dos domingos.
Eu percebia que Dona Lucilia acompanhava, mas que o espírito dela ia para a compaixão por aqueles que tinham sofrido, fazia oração por eles para Nossa Senhora aliviar ou até para evitar esse sofrimento. Mas, sobretudo, fazia a reflexão sobre o grande, o nobre, o magnífico tema da dor. E dentro deste tema, outro ainda mais bonito: o heroísmo, a coragem.
Isto ia formando a alma de um menino…
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/7/1995)
Revista Dr Plinio 207 (Junho de 2015)
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