Elevação de alma e doçura
No trato com Dona Lucilia percebia-se que sua alma estava sempre voltada para altas considerações. Como mãe, patroa, dona de casa ou como irmã mais velha ela se apresentava com uma autoridade definida e firme, mas a exercia com doçura. Seu exemplo de vida demonstrou a falsidade da ideia revolucionária, segundo a qual a autoridade e a doçura se excluem.
O que chama mais a atenção em mamãe é a conjugação de duas qualidades: a retidão ou a elevação — que é uma forma excelente de retidão — e a doçura. Havendo nela uma espécie de reversibilidade, no sentido de que era elevada porque doce, e doce porque elevada.
São dois predicados que, segundo a Revolução, se excluem. Na saga, no pesadelo revolucionário, uma pessoa muito elevada afasta e tende ao severo, a se impor sem doçura,
Doçura penetrante como a água que vem do alto
Pelo contrário, na apresentação que Dona Lucilia dá de si mesma, quanto mais elevado é o espírito dela, mais tem ímpeto inicial para penetrar em todos os meandros da alma.
Para dar uma comparação, quando se descia por trem de São Paulo para Santos, a paisagem do trajeto era lindíssima, própria a atrair turistas. Entre outras belezas, podiam-se ver os manacás floridos. Muitas vezes a viagem era feita de dia, e mamãe se punha em pé junto à janela do vagão e ficava sem conversar, extasiada, com os olhos fixos no panorama que se desenrolava.
Com frequência se notava, de pontos muito altos da montanha, irromperem pedras que eram como “pães de açúcar”, e via-se um olho d’água, uma fonte a escorrer. Aquilo abria um rasgão dentro da floresta e a água descia como uma espécie de cortinado luminoso sobre a pedra, e naturalmente, chegando embaixo, seguia seu curso rumo ao mar. E mamãe gostava muito de ver isso.
Quanto mais do alto cai a água, tanto mais ela tem energia e pureza para penetrar depois nas capilaridades das raízes das plantas no chão. De maneira que o muito elevado convida a entrar no profundo e, num certo sentido da palavra, no muito baixo. Esta ação da doçura quando vem do alto, os antigos entendiam bem. Mas a Revolução fez perder esta noção completamente, e a substituiu, quando muito, por uma forma comercializada de doçura.
Elevadas cogitações
Isso se sentia em Dona Lucilia. Tratando-se com ela percebia-se de que elevação procediam suas cogitações. Por exemplo, quando ela descia a serra, via-se que não era como alguém que simplesmente faz do panorama um hobby, mas uma pessoa que, sem comentar, pelo olhar, pela seriedade, pela forma sacral do entusiasmo etc., chegava a altas considerações, de grande repercussão afetiva, sobre a obra de Deus, a beleza daquilo em si, porque tinha isso intenso dentro da alma.
E porque sua alma estava nesse píncaro, quando chegava a hora de tratar com um filho ou com outra pessoa, tanto mais aquela doçura era penetrante quanto mais alto o cume de onde procedia.
Nos campos em que possuía autoridade como mãe, patroa, dona de casa ou irmã mais velha, Dona Lucilia tinha certa liderança para alguns efeitos e sempre se apresentava com uma autoridade definida e firme, mas exercendo-a com doçura. Via-se que, se fosse preciso, ela fecharia a questão, mas tinha certeza de que, na maior parte dos casos, onde não conseguia pela severidade, por meio da bondade ela moveria. E isso formava uma interpenetração que tornava delicioso o convívio com ela.
Um sofisma revolucionário
Na minha educação deparei-me com o sofisma revolucionário segundo o qual a autoridade é incompatível com a doçura, a elevação conduz ao desprezo e a fraternidade só se encontra no mundo da liberdade e da igualdade entendidas conforme os conceitos da Revolução Francesa. Para os defensores desta falsa concepção, aquela Revolução foi uma irrupção da doçura no mundo, depois da tirania dos reis e do desprezo dos nobres.
No começo da Revolução Francesa, o Abbé Sieyès1, deputado dos Estados Gerais, definia a ordem de coisas do Ancien Régime2 como uma “cascata de desprezo” que descia dos reis para os príncipes até atingir o povo.
Esta visão errada se difundiu e se impôs ao mundo. Por isso muita gente é favorável à Revolução e, em geral, contrária a toda autoridade que queira se afirmar, por maior que seja sua doçura. A crítica feita à autoridade vai nesse sentido: “Em você falta caridade, bondade, doçura!”.
Portanto, mais ou menos da Revolução Francesa para cá, grande número de autoridades que recuam e não cumprem seu dever procedem assim pelo pavor de serem increpadas como não tendo doçura, como sendo orgulhosas, más etc. E muita gente simpática ao aparato do Ancien Régime, uma vez convencida de que aquele brilho todo redundava em desprezo para quem era menos, retira sua simpatia por não poder concordar com a falta de doçura. Assim, poderíamos dar incontáveis exemplos. É uma montanha de derrotas da Contra-Revolução por causa disso. Derrotas potenciais: antes de travada a batalha, a Contra-Revolução já perdeu terreno.
Bondade hierárquica
Apresentei os aspectos psicológico e tático; devo mostrar agora o caráter mais profundo, que atinge a própria ordem do ser e a própria natureza de Deus. Para um revolucionário, aquele que é maior do que nós não pode nos querer bem, mas nos despreza e deseja esmagar-nos para conter a nossa rebeldia.
O conceito de luta de classes é este: O maior querendo sempre esmagar o menor, e o menor necessariamente se revoltando contra o maior. A concórdia entre as classes sociais, nunca; sempre a luta como desfecho. Segundo esta ideia, o Deus transcendente representa para a criatura humana uma classe diferente, e o homem deve tomar para si um outro deus — amigo, camarada, igual, o deus de todas as igualdades — e deixar de lado o Deus hierárquico considerado mau precisamente por ser sumo e hierárquico.
Então este problema que, num primeiro momento, parece apenas psicológico, e depois, aprofundado, mostra também o aspecto tático possantíssimo, de fato é uma questão metafísica que se apresenta assim: É bom ou não que o homem seja inferior a Deus? Quem nos criou inferiores a Ele fez-nos um favor ou arranjou-nos uma prisão? Mas tudo envolve a questão da doçura: Terá faltado doçura a Ele ou não?
A mentalidade revolucionária não acredita na harmonia como condição normal do trato humano. Ela crê apenas no interesse individual ou coletivo. Essa forma de afeto que consiste em sentir a harmonia ontológica entre uma pessoa e outra, a Revolução não tem; e Dona Lucilia transbordava disso. E daí vinha o fato de ser hierárquica sua bondade. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/2/1982)
Revista Dr Plinio 180 (Março de 2013)
1) Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836). Eclesiástico, político e escritor francês imbuído das ideias revolucionárias. Votou pela morte de Luís XVI.
2) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.
Deixe uma resposta