Entretenimentos caseiros
Graças a Nossa Senhora, as condições que cercavam minha vida eram muito marcadas pela serenidade, e eu me regalava com a minha própria calma. Em casa éramos apenas três crianças: Rosée, Ilka e eu. Naturalmente, esse trio vivia num contato constante, em um ambiente tranqüilo, reforçado pela calma dos adultos. E o meu próprio temperamento era idealmente adequado a essa serenidade.
Nas tardes de quinta-feira, brincando com os primos
Nas quintas-feiras à tarde vinham à nossa residência os sete filhos do meu tio Gabriel, chamados por nós de “os Gabriéis”. Alguns eram dez anos mais velhos do que eu, outros da minha idade ou ainda mais novos. A mãe deles era de uma família de fazendeiros e meus primos, sem terem nada de caipirismo, eram muito interioranos e vivazes. Chegavam às quatro e trinta ou cinco horas da tarde, e nós três tínhamos um verdadeiro “fanatismo” pela vinda daquela “horda”, esperando-os às vezes junto à janela. Quando apareciam, descíamos correndo para encontrá-los. Eles também atravessavam a rua a toda pressa e fazendo uma algazarra, na qual eu achava muita graça; começávamos então a brincar e correr pelo jardim, como bons companheiros, até a hora do jantar.
Brigas amistosas, castigos e brincadeiras
Eu era um menino muito cerimonioso. Nunca fazia uma diabrura nem jogava uma pedra ou dizia um desaforo a outra criança, nem mesmo quando me zangava. Tinha algumas brigas com meus primos, mas sempre dentro de certos limites e sem jamais chegar até um palavrão, por exemplo. Às vezes dava um pontapé, e mais freqüentemente trocava umas caneladas com o Reizinho…1 Com minha irmã brigava menos. Quando mamãe percebia a briga, intervinha com a maior gravidade:
– Meu filho, como você faz isso com seu primo?! Onde é que se viu isso?!
Entretanto, falava de maneira a eles ouvirem e também entenderem que não deviam fazer aquilo comigo. A defesa materna estava sempre presente…
A minha priminha Ilka era uma bonita menina, mas muito levada. Eu tinha as mais cordiais relações com ela, mas gostávamos de brigar um com o outro, de vez em quando… Discutíamos durante dez ou quinze minutos e, quando o desentendimento era mais forte, minha avó dizia:
– Plinio, lado direito do buffet! Ilka, lado esquerdo!
E “condenava-nos” a ficar quinze minutos voltados para a parede, junto ao móvel grande da sala de jantar, um de cada lado. Mas apenas estávamos ali, já começávamos a “colaborar”, comunicando-nos por detrás do buffet – o qual, por causa do rodapé, não encostava na parede – e fazendo a politique de la main tendue [política da mão estendida] entre nós, contra a avó: falávamos mal dela e resmungávamos… Ou seja, vovó conseguia o que queria: nós fazíamos as pazes no infortúnio. E assim continuamos os dois até hoje, sempre excelentes amigos.
Ilka era muito alegre e saudável. Às vezes, quando as crianças estavam reunidas, alguém dizia:
– Ilka, chore!
– Você quer mesmo que eu chore?
– Quero.
– Nhããã-nhããã…
Ela se punha a chorar no centro da roda e naturalmente a criançada em torno dela rachava de dar risada. Todos nos divertíamos com isso, mas tínhamos um pacto: quando víamos no fundo do corredor uma pessoa mais velha que se aproximava, ficávamos todos quietos; Ilka parava de chorar e começava a rir, e então continuávamos rindo também, pois se os adultos percebessem que ela estava fazendo aquela palhaçada, certamente a proibiriam.
Em certas ocasiões, eu procurava fazer bolhas de sabão com minha mão e soprá-las para que voassem no ar. Quando conseguia que a bolha fizesse uma modesta navegação aérea, eu ficava enlevadíssimo, achando aquilo uma verdadeira maravilha! Mas sempre fui trêmulo e desajeitado: soprava de mais ou de menos, e o sabão não fazia bolhas…
Incompatível com as bicicletas
Nessas brincadeiras havia apenas uma coisa que me contristava ligeiramente: a manifestação de uma incapacidade que sempre me acompanhou desde essa ditosa idade, pela qual nunca conseguia permanecer estavelmente em cima de uma bicicleta. Um dia, porém, papai me disse:
– Todos os meninos brincam com bicicleta!
– Mas eu não tenho – respondi, dando a entender que ele ainda não me dera uma…
– Terá.
– Está bem, então vamos ver.
– Bom, mas você vai andar nessa bicicleta.
– Vamos ver.
Ele me comprou uma bicicleta italiana, marca Bianchi – muito apreciada naquele tempo –, para ver se eu tomava brio e me estimulava um pouco. Era muito bonita e um pouco alta para meu tamanho, mas tendo eu crescido, logo fiquei na proporção dela. Montá-la era outra coisa… Nunca ninguém me explicou como guiá-la; mandaram-me montar na bicicleta e apenas disseram:
– Agora ande!
Tive insucessos dolorosos: eu montava pela direita e caía pela esquerda; montava pela esquerda e caía pela direita, nas primeiras pedaladas. Era uma desolação… Ela me derrubava infalivelmente! Quando se tratava do triciclo, eu andava à vontade, com todo o sossego. Entretanto, não conseguia apoiar-me sobre duas rodas, pois o equilíbrio exige uma certa atenção e eu era muito distraído. Mal dava acordo de mim, já estava no chão, pois começara a pensar noutra coisa… E alguém dizia:
– Vai quebrar a sua bicicleta, que é muito boa!
Eu pensava: “Ainda bem que não me quebrei a mim mesmo! Isso vale mais do que a bicicleta…”. Mas esse não seria um comentário bem aceito, de maneira que eu não o fazia. Também não tinha vontade nenhuma de aprender a andar nela, nem queria manter o corpo teso! E pensava: “Esse esforço, para quê? É melhor não ir a lugar nenhum, mas estar sempre sentado: essa é a posição ideal!”.
Resultado: rejeitei totalmente a bicicleta como sendo uma “máquina para fazer cair”, deixei-a de lado – de um modo pelo qual papai não percebesse – e ficava vendo os outros meninos brincarem e ziguezaguearem, enquanto a minha Bianchi permanecia encostada in aeternum [eternamente]…
Entretanto, se eu tivesse aprendido a andar de bicicleta na minha infância, teria tido muito menos tempo para ler e pensar. Pois como não gostava de andar a pé, a bicicleta me teria dado a possibilidade de me isolar de qualquer pessoa e de ir passear por onde quisesse, sem ninguém para me amolar. Posso imaginar as “bicicletadas” que eu teria dado por São Paulo, inclusive para conhecer bairros populares e observar as pessoas… A minha vida teria sido diferente, mas a Providência tinha os seus intuitos permitindo essa dificuldade.
Fugindo, à procura da mãe
Nesses dias em que os primos vinham nos visitar, eu naturalmente devia fazer as honras da casa e permanecer com eles, mas, às vezes, em meio aos gritos e ao corre-corre, pensava: “De que serve tudo isso? Não é melhor voltar para a serenidade?”.
Eu sabia que, fugindo do bulício, podia encontrar dois olhos castanho-escuros que eu queria e venerava sobremaneira. Desejava encontrá-los, pois através deles eu contemplava “zonas” da alma de mamãe, que eram para mim uma fonte de equilíbrio e de harmonia. Eu pensava: “Ela tem outra substância, outro afeto e outra seriedade! Vou escapar dessa gente de qualquer modo, para subir e ter uma prosinha com ela”.
Era normal que, de vez em quando, alguma criança subisse ao andar superior, e eu sempre encontrava um pretexto para isso: quando percebia que a meninada estava distraída, correndo de um lado para o outro, pensava: “Bom, é a hora”.
Então, aproveitava e dava um jeito: aproximava-me da escada, escapava sem que a Fräulein percebesse e subia correndo. Em geral, antes de ver mamãe eu fazia alguma coisinha para não chamar a atenção: por exemplo, tomava um copo de água e, assim, ninguém percebia que eu tinha subido apenas para estar com ela, pois, como nenhuma outra criança fazia isso, certamente receberia críticas: “É isso mesmo: o Plinio só quer saber da mãe!”.
Freqüentemente, ela permanecia recostada na chaise-longue do seu quarto, usando um peignoir [roupão] de tecido leve ou, no inverno, de pano mais pesado e escuro. Eu entrava para falar com ela e via a luz do sol penetrando discretamente no quarto. As dobras da sua roupagem assemelhavam-se às ondas do mar, e ela estava muito tranqüila e pensativa, com a cabeça apoiada na parte descoberta do braço. Parecia estar à margem dos acontecimentos, mas inteiramente a par de tudo, na tranqüilidade e na calma, e eu tinha a impressão de que, a partir da sua cabeça, projetava-se em torno dela uma certa harmonia e um silêncio augusto.
Conversando com mamãe e apreciando o valor do silêncio
Eu entrava sempre barulhento. Pode-se imaginar com que carinho ela me recebia! E começava a prosinha: olhos nos olhos, coração no coração.
– Oh, meu filho, sente-se aqui. Então, o que há?
Ela percebia bem que eu tinha subido para vê-la, mas perguntava a ela qualquer coisa, por exemplo:
– Meu bem, a senhora viu meu lápis?
– Filhão, não, não vi.
– Mas então, o que fazer?
E sentava-me. Uma vez que estava à espera da resposta sobre um assunto tão importante, era melhor ficar sentado… É preciso dizer que eu era muitíssimo distraído e vivia perdendo lápis e outras coisas em todos os cantos da casa. Quando alguém achava um objeto perdido já sabia que era meu.
Em outras ocasiões, eu lhe mostrava um besouro que havia apanhado – eu tinha entusiasmo em caçar besouros! – e ela, então, tinha pena do inseto e pedia-me que o soltasse. Às vezes, ela estava fazendo um bordadinho qualquer e eu dizia:
– O que a senhora está bordando?
Ao mesmo tempo já a agradava, batendo com a mão no seu braço. Ela, naturalmente, já conhecia o sistema, de maneira que me recebia com a maior naturalidade e começava a conversar sobre temas próprios a um menino. Aquilo era um entender-se mútuo, cheio de suavidade, de harmonia e de carinho. Nessas conversas, comecei a apreciar o valor do silêncio; o valor de ficar recostado num divã, pensando a respeito das coisas sobre as quais ela meditava. Por assim dizer, ela acionou em mim o “motor” da reflexão…
Apaziguando o espírito
Estando junto a mamãe, eu tinha a impressão de uma forma de suavidade e de ordenação interna que me comunicava uma sensação de tranqüilidade razoável.
Às vezes, eu estava com alguma preocupação ou em um certo estado de espírito que não era bom. Por exemplo, a perspectiva de um passeio agradável levava-me a desejá-lo com veemência, pensando: “Temos de fazer esse passeio, custe o que custar!”. Ou então, o contrário: não sendo possível fazê-lo, eu tinha a sensação de uma catástrofe!
Mas, ao comparecer à presença dela e ouvi-la falar, todos os meus tumultos internos pareciam aquietar-se e ajeitar-se; eu ficava menos apegado às coisas que desejava, mais aceitante das renúncias que devia fazer e, portanto, mais razoável. Tinha a impressão de que mamãe entrava na minha alma e a colocava em ordem sem eu perceber, pondo-me diante de um estado de espírito tão atraente, tão suave e tão diferente daquele em que me encontrava, que ela desmanchava o “mau castelo” que havia na minha alma, e eu me sentia outro. Simplesmente, no modo de ela perguntar “O que há?”, eu percebia que minha preocupação não era razoável, consistindo numa bobagem de criança. Ela me acariciava e me dava uma certa forma de companhia, pelo que eu me sentia compreendido no que possuía de mais profundo. Dentro da compreensão dela, eu me explicava aos meus próprios olhos. Por ter alguém que me entendia, eu me sentia explicado. Ela, com jeito, dava-me os esclarecimentos necessários:
– Tal coisa não é bem assim. Veja isto e aquilo…
Ela me transmitia uma espécie de bem-estar mais valioso do que o passeio que eu não tinha feito. Era uma espécie de punição “aveludada”, em que o “veludo” valia mais do que a punição e me deixava encantado… Isso era feito com tanta delicadeza que, depois de ela ter conversado comigo, eu saía transformado, alegre e satisfeito, percebendo que houvera um verdadeiro transbordamento do espírito dela, pelo qual obtivera de mim as modificações que ninguém conseguiria e vencera todos aqueles preconceitos ou inclinações que eu não devia ter.
“Er bleibt bei Mutter”
A Fräulein Mathilde, de vez em quando, olhava para ver se todos os pimpolhos estavam brincando no jardim, ou se haviam pulado uma grade, por exemplo. Nos momentos em que eu sumia, ela perguntava:
– Onde foi parar o Plinio?
E começava a procurar-me. Contudo, em pouco tempo, acostumou-se com minhas escapadas. Dizia ela que eu não dava trabalho, pois fugia para estar perto de mamãe e, por isso, ela comentava:
– Quando uma criança desaparece, é necessário procurá-la em vários lugares, mas o Plinio, não.
Ela exprimia isso em termos alemães:
– Er bleibt bei Mutter [ele fica com a mãe]. Assim, não tinha mais preocupação, mas apenas perguntava para os criados:
– Onde está Dª Lucilia?
Quando eu fugia dos estudos, a Fräulein me obrigava a voltar. Como mamãe concordava com ela, eu obedecia, sem muito bom humor… Mas quando eu havia escapado da brincadeira com os primos, a Fräulein se aproximava, escutava de longe e percebia que eu estava conversando com mamãe. Ela era bastante inteligente para compreender que não devia separar-nos nessa ocasião e, então, retirava-se. Mas as crianças, querendo que eu voltasse e não tendo coragem de tirar-me de junto de mamãe – pois percebiam que ela não gostaria –, começavam a cutucar a Fräulein:
– Fräulein, onde está o Plinio? Desapareceu?
Ela percebia o que eles queriam e respondia:
– Ele vem logo…
Subia e dizia sorrindo:
– Dª Lucilia, o pessoal embaixo está reclamando, pois o Plinio não aparece.
Então, mamãe também sorria, mas ordenava:
– Filhão, você está recebendo visitas. Vá lá embaixo, seja amável e brinque com os seus primos. Faça o que eles gostarem, pois o anfitrião deve agir assim.
Eu compreendia que isso devia ser feito, dava um suspiro e descia arrastando os pés, mas, de vez em quando, lembrava-me daqueles olhos castanhos e pensava: “Mamãe deve estar em tal sala assim. Se eu der uma corridinha agora e lhe disser alguma coisa, obterei dela alguma manifestação de carinho”. E, imediatamente, “bleibt bei Mutter” de novo… O que ela evidentemente apreciava… Qual é a mãe que não gosta de que um filho deixe a brincadeira para ir agradá-la?
Minha mãe, que não falava bem o alemão, ouvia a Fräulein dizer isso e lembrava sempre daquelas palavras, com delícias. No fim da vida, ela ainda se lembrava desses episódios e, quando eu entrava no seu quarto para fazer-lhe companhia durante o dia, ela dizia, sorrindo encantada:
– Filhão, você “bleiben bei Mutter”?
E eu respondia:
– Pois é claro! Eu vim “bleibe bei Mutter” mesmo!
O jantar das crianças
O nosso jantar era servido numa sala reservada apenas à criançada, pois, como nesse dia vinham também os nossos tios e outros parentes, não cabíamos na sala dos mais velhos.
A mobília das crianças era feita de carvalho e havia pertencido a um personagem chamado Brasílio Camargo, que vendera sua residência com os respectivos móveis para o meu avô materno. Quando mamãe foi morar com vovó, percebendo que essa mobília não tinha as cadeiras suficientes para o número de pessoas que freqüentavam a casa, decidiu então aproveitá-la para os pequenos.
O nosso jantar começava mais cedo que o dos adultos. Constituíamos uma grande roda de meninos e meninas, da qual os primos mais crescidos, que já usavam calça comprida – fazendo parte do mundo dos “monótonos” –, eram enxotados com estas palavras:
– Vão jantar com os mais velhos! Vocês aqui não cabem!
Eles respondiam com desdém, usando uma expressão daquela época:
– Pixotes…!
E saíam um tanto ofendidos.
Nós, então, fazíamos o nosso “cenáculo”, no qual eu era o grande orador, sem sair de minha calma e sem deixar de comer. Não eram discursos, mas gracejos – muito limpos, graças a Deus – e gargalhadas, com alguns assuntos sérios no meio da conversa. O mais jovem dos primos, Reizinho, ficava assistindo e rindo, comendo sempre, mas a Nélia – apelidada de Princesa do Nilo – e eu éramos os dois principais interlocutores. Rosée intervinha também, com ditos breves e rápidos, enquanto Nélia e eu conversávamos em longas tiradas. Como o nosso ambiente era muito marcado pela influência européia, em parte por causa das governantas alemãs, havia brincadeiras de tipo antigo. Eu entendia ser conveniente conservar essa forma tradicional de alegria e, então, era o animador do jantar das quintas-feiras! Minha irmã sempre dizia que, nas ocasiões em que eu chegava atrasado (o que acontecia com certa freqüência, pois, às vezes, ia ler algum livro ou estar com mamãe), todos mantinham uma conversa um tanto “arrastada” enquanto eu não aparecia lá. Só então a alegria começava.
Contemplando as rodelas de porcelana
O pão não era cortado na copa, mas vinha à mesa inteiro e as crianças iam cortando fatias com uma faca de cabo branco, sobre umas rodelas de porcelana muito comuns, que tinham buquês de flores impressos, bonitos, leves, delicados e atraentes. Eu olhava aquilo e sentia um épanouissement [expansão] de alma! Às vezes encantava-me ver a “inocência” das flores e, em outras ocasiões, sua elegância. Eu tinha vontade de levar aquelas rodelas para meu quarto e ficar olhando, mas ninguém toleraria essa atitude, pois julgariam ser uma loucura e, então, separava-me delas com tristeza.
Encantos pela cor da gelatina
Naquela época, foi introduzido em São Paulo algo que causou um deslumbramento para as crianças: a gelatina. Em festas infantis começaram a ser servidos doces com uma gelatina de cor muito viva, tendo ao lado pedaços de casca de laranja em forma de barquinhos, cheios também de gelatinas de cores diferentes. Quando aquilo entrava, a criançada exclamava! Eu me encantava mais pelo colorido do que pelo gosto… Em certo sentido, eu “comia a cor”.
Parecia-me que, ao ingeri-la, entrava em minha substância pessoal alguma coisa contida naquela cor, de maneira que eu me sentia enriquecido na minha personalidade e ficava entusiasmadíssimo com a gelatina. Eu tinha a idéia de que, na ordem do ser, aquilo simbolizado pela gelatina elevava-me e dignificava-me, ao entrar em mim. Eu não pensava isso por amor-próprio ou pelo desejo de os outros verem – sabia perfeitamente que não ia ficar verde por ter comido uma gelatina dessa cor – mas por sentir que qualquer coisa do aspecto psicológico do verde entrava em mim e aumentava a minha familiaridade com aquilo que era bom e digno.
“Queremos histórias de tia Lucilia!”
Apesar das gritarias e brincadeiras, nós comíamos muito mais depressa que os adultos. Devorávamos tudo rapidamente, enquanto os mais velhos comiam menos e conversavam mais do que nós, de modo lento e solene. Ouvíamos de longe e aquilo parecia-nos uma espécie de conferência! Evidentemente, eles terminavam o jantar mais tarde. E nessas horas alguns dos meus primos diziam:
– Queremos histórias de tia Lucilia! Queremos histórias de tia Lucilia!
Tínhamos loucura de ouvir narrações feitas por ela e, então, ficávamos numa exasperação, mas era proibido às crianças interromperem as refeições dos mais velhos, o que seria considerado uma falta de respeito. Não podíamos entrar na sala de jantar deles, nem ousávamos! Então começávamos a abrir a porta e a dar risada, para ver se ela ouvia e assim entrava em nossa sala. Fazíamos-lhe agradinhos do lado de fora com a porta entreaberta, mas ela nem respondia. Jantava tranqüila e lentamente, participando da conversa – da qual eu percebia que ela gostava –, deixando-nos esperar e permanecendo impassível, para disciplinar a criançada, pois o princípio de autoridade estava em jogo. Em tudo isso, se via nela um misto de bondade e inflexibilidade. Só quando todos se levantavam, ela dizia:
– Eu vou contar uma história para vocês.
Dirigia-se devagar e com toda a calma ao escritório de meu pai, onde havia um sofá no qual ela se sentava, um tanto reclinada. Aquela chusma de crianças se apinhava, enchendo a ponta do mesmo sofá, acocorando-se em torno dela ou empoleirando-se atrás da cabeça dela e deixando livre apenas o lado do sofá que se encostava à parede. Quando todos estavam acomodados, começavam a pedir:
– Eu quero tal história!
– Conte tal história!
– Não, eu quero tal outra!
Ela permanecia calma como um monumento. Depois de ouvir um pouquinho os pedidos, dizia:
– Eu vou contar tal história.
Todos faziam silêncio, prestando uma atenção única. Era às vezes uma hora e meia de narração, com muitos pormenores! Um ou outro fazia perguntas:
– Como é tal fato?
Ela “bordava” o caso conforme notava que ia agradar a criança, a qual ficava maravilhadíssima. Alguns meninos ou meninas, entretanto, começavam uma torcida, pela sofreguidão de chegar à conclusão: batiam nas próprias pernas e diziam:
– Titia, mais depressa! Pule tal episódio! Deixe isso! Corra!
Às vezes, eu ouvia alguns dizerem depois:
– É pena, mas ela conta por demais detalhes. A gente fica com uma vontade enorme de chegar ao fim.
Ou seja, a excelência da narração dela levava-os a uma impostação de espírito exagerada, pela qual desejavam encurtar a história e privar-se de uma parte da sua substância para “deglutir” o fim.
Eu fazia o contrário: interrompia-a pedindo mais pormenores.
1 “Reizinho”: assim era chamado familiarmente José, o filho mais novo do Dr. Gabriel Ribeiro dos Santos.
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