Entusiasmo pela Companhia de Jesus
No Colégio São Luís havia vários professores da Companhia de Jesus, oriundos de diversas nações, pois os jesuítas estavam começando a se reconstituir no Brasil, de onde tinham sido expulsos outrora.
Então, eu via o efeito das nacionalidades em cada um deles. Não perdiam nada das suas características próprias, mas o espírito jesuítico constituía uma espécie de novo “espírito nacional”, somado ao anterior. Se alguém me perguntasse sobre um dos padres: “Qual é a nacionalidade dele?”, eu responderia: “Acidentalmente, ele pode ser italiano, brasileiro ou o que quiserem, mas ele é, sobretudo, jesuíta. Isso não significa que a Companhia de Jesus tenha diminuído algo da influência da nação sobre ele, mas que abriu no espírito dele uma terceira dimensão, a qual está acima do nobre sentimento patriótico”.
Havia, portanto, um núcleo comum à mentalidade de todos eles e superior a todas as pátrias: eles eram cidadãos do Papa.
Essa é uma das glórias da Companhia.
Cumprimento entre os jesuítas
Várias vezes presenciei o cumprimento entre os jesuítas: quando um padre aproximava-se de outro para tratar de algum assunto, os dois tiravam o barrete, de um modo típico. Depois conversavam de igual a igual, porém tratando-se reciprocamente com muito respeito, pois ali não estavam dois indivíduos comuns, mas dois membros da Companhia de Jesus,
Eles tinham inclusive uma regra, pela qual um nunca deveria tocar no outro, para nada, nem sequer com a ponta do dedo.
A meu ver, não havia máquina de educação mais formidável do que a Companhia de Jesus.
Impressões causadas pelo barrete eclesiástico
Antes de entrar no colégio dos jesuítas, eu havia conhecido alguns sacerdotes salesianos, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, e outros seculares, na Igreja de Santa Cecília, nossa paróquia. Não conhecia outros de perto.
Quer os salesianos, quer os padres seculares, nunca se apresentavam usando barrete, exceto quando entravam para celebrar a Missa e, nesse caso, tiravam-no logo que subiam ao presbitério. De qualquer modo, o barrete não me tinha ainda chamado a atenção. E, nos dias da minha entrada no São Luís, os padres não o usavam, talvez por causa do calor, pois estávamos na estação mais quente do ano.
De repente, um ou outro deles começou a aparecer com barrete e, nos períodos mais frios, quase todos o utilizavam. Lembro-me perfeitamente da impressão magnífica que tive nas primeiras vezes em que vi entrar na sala de aula os padres com barrete. Quase parecia uma coroa preta colocada sobre a cabeça do sacerdote!

Clérigos jesuítas do Colégio São Luís, usando o barrete que tanto agradava a Plinio
As salas de aula do colégio tinham cátedras altas, com vários degraus. Os professores permaneciam em cima e, por trás deles, na parede, havia um revestimento de madeira formando uma espécie de cenário para quem ensinava. Era algo muito respeitável e próprio a prestigiar o magistério, o que me deixava encantado.
Quando eu via um padre sentado na cátedra, usando seu barrete e dando aula com seriedade, pensava:
“Veja o que eles colocam na cabeça… Que coisa digna e arranjada! Que belo complemento do traje eclesiástico! Como vai bem com a batina deles! Eu conheço uma série de homens respeitáveis e de idade, que não são eclesiásticos. Quanto lucrariam eles se tivessem chapéus desse gênero!”
Naquele tempo, alguns homens ainda usavam, nos dias de frio, uns pequenos gorros cilíndricos feitos de um tecido muito rico e vistoso, com cores alegres. Lembro-me claramente da minha reflexão a esse respeito:
“Esses gorrinhos que eles põem foram inventados por eles mesmos ou pelas suas famílias. Mas… quem inventou o barrete? Nenhum dos padres do colégio. Com certeza, se eu lhes perguntar, eles não saberão responder, pois isso se perde nos tempos e ninguém o sabe. Quem foi? A Igreja! Sendo divina e exímia em todas as coisas grandes, há nela uma qualidade pela qual até as coisas pequenas, tocadas por ela com a ponta dos dedos, se transformam em maravilhas!”
Eu via que o barrete comportava dois gomos em linha reta e um terceiro entre ambos, deixando uma parte lisa. Mas, habituado com certa ideia de simetria, eu julgava que havia caído o gomo que parecia estar faltando e que, por economia, eles ainda não tinham mandado colar um outro no lugar. Era a explicação que eu encontrava, lamentando o fato… Cheguei a pensar: “Se eu pedisse dinheiro a papai e mamãe, para mandar comprar uns gomos para eles, ficaria bem?”
Mas percebi que não deveria cuidar disso, nem perguntar nada a respeito. Mais tarde, entendi qual era a realidade do assunto1.
O Reitor do colégio
Não posso me esquecer de uma das imagens mais vivas da Companhia de Jesus que eu conheci: o Reitor do Colégio São Luís, Pe. João Baptista du Dréneuf. Era um padre belga, de estatura entre média e alta, tez clara e cabelo cortado muito baixo.
Já era velho, mas muito teso, firme, distinto, circunspecto, fino e com ar inteligente. Era nobre e isso pesava enormemente na minha consideração, embora ele pertencesse à mais modesta nobreza.
Seus olhos eram de um azul bondoso, mas as pupilas eram umas verrumas2 jesuíticas, feitas para examinar. Não sou capaz de descrever o olhar dele!
De vez em quando, ele ia até o andar mais alto do colégio, para observar a fila dos alunos dirigindo-se ao recreio ou voltando deste para as aulas.
Essas filas movimentavam-se de modo um tanto militarizado, pois a Primeira Guerra Mundial terminara havia pouco tempo, e a atmosfera militar impregnava muitos aspectos da vida civil. Existia em muitos colégios, inclusive, o costume de formar os meninos em batalhões e estes saírem marchando pelas ruas, ao som de tambores e cornetas, com a bandeira do Brasil, do Estado de São Paulo ou do próprio colégio.
No São Luís, esse ambiente era muito menos acentuado do que em outros estabelecimentos, mas em algo ele existia e, pelo seu jeito, percebia-se que o Reitor havia sido militar.
Então, o Pe. du Dréneuf assomava-se à janela e assistia ao desfile dos alunos, tendo em mãos o barrete e apoiando-o no peito com distinção. Ele examinava os meninos um por um, mas sem deixar transparecer impressão nenhuma. Dava-me a ideia de um monarca!

Pe. du Dréneuf, Reitor do Colégio São Luís
As filas de alunos vinham dos mais variados horizontes do pátio do recreio. E continuamente uns davam cutucões, caneladas e pontapés nos outros, sem que os padres vissem. Mas, de repente, olhavam para a janela e encontravam a figura isolada, distinta e majestosa do Pe. du Dréneuf. A pequena brasileirada percebia instintivamente que tinha de pôr-se na linha…
Ele era a personificação do princípio de ordem, de distinção e de nobreza. Quando ele se apresentava, eram séculos de classe e de compostura jesuíticas que apareciam. Era a Companhia de Jesus, fidalga, aristocrática e formadora.
Um pequeno pormenor tinha a sua importância: ele não se apoiava no peitoril, mas permanecia numa posição hierática, a certa distância do quadro da janela, dando a entender que ele via aquela cena de cima para baixo, sem misturar-se com ninguém, pois era o padre Reitor.
Ele estabelecia, portanto, duas distâncias: uma em relação ao peitoril da janela e outra em relação àquela meninada que desfilava embaixo, para a qual ele olhava com alteridade.
O Reitor não castigava nunca, mas se limitava a observar, e o olhar dele era retificador. Nunca vi um olhar mais próprio a impor distância, sem brutalidade! Ele conservava a superioridade necessária sobre os meninos, num país em que, com muita facilidade, os alunos tinham certa liberdade com os professores, criando uma atmosfera em que estes eram obrigados a retribuir do mesmo modo, sob pena de as relações se tornarem tensas…
Prevenindo isso e não querendo, de nenhum modo, abandonar o tom de elevação que convinha para manter a ordem num colégio tão grande, ele sabia tratar as pessoas de tal maneira que, sendo muito afável e cortês em suas palavras, entretanto nunca saía da redoma invisível na qual se encontrava, criada por ele mesmo.
Por exemplo, nunca vi o Reitor fazendo um gesto com a mão, para que uma fila acertasse melhor o andamento. Se ele o fizesse, decairia, pois sairia daquela impassibilidade áurea que lhe competia e para cuja expressão ele possuía tantos talentos.
Para mim, era um encanto! Um padre da célebre Companhia de Jesus dava o exemplo ao colégio, deixando entender o seguinte princípio, o qual me parecia essencial: toda autoridade deve prestigiar-se, apresentar-se bem e, assim, pela sua simples presença, sem necessidade de castigos ou repreensões, marcar o ambiente.
De outro lado, jamais o vi dando o menor sinal de cansaço. Estando em pé, ele permanecia sempre na mesma posição, com os pés bem firmes no chão e o corpo ereto.
Esse eclesiástico de alta categoria parecia-me um símbolo do que a própria Igreja Católica desejava das pessoas.
Costumes jesuíticos
Em um dos corredores do São Luís existiam várias saletas destinadas à recepção de visitas. Uma delas comportava um retrato impresso de Santo Inácio de Loyola e, em outra, uma representação do Bem-Aventurado José de Anchieta, escrevendo o seu poema na praia. Tratava-se de heliogravuras muito comuns.
As cadeiras eram também muito simples, de palhinha, e todo o mobiliário atestava ao visitante que os padres viviam fora do mundo, sem interessar-se pelas coisas deste. Era uma tática para incutir horror pelas vaidades da Terra, fazendo compreender que os verdadeiros valores estão na eternidade.
Essas saletas tinham portas de vidro transparente, o qual era fosco na altura das fisionomias das pessoas. De maneira que alguém, ao passar pelo corredor, poderia ver facilmente o que acontecia no interior. Aquilo me parecia genial!
Encanto por Santo Inácio de Loyola
No Colégio São Luís, adquiri as raízes do meu enlevo pela personalidade de Santo Inácio de Loyola, por causa dos fatos da vida dele que os jesuítas contavam.

Santo Inácio de Loyola ferido no cerco de Pamplona, vitral do Santuario de Loyola – Guipuzcúa. España
Quando narravam algo sobre o Fundador da Companhia de Jesus, eu “devorava” as palavras deles, pois me parecia que tudo nele estava totalmente de acordo com o meu modo de ser e de pensar.
Por exemplo, eu ouvia o mestre Costa – um dos professores – falar a respeito da conversão de Santo Inácio. Ele era guerreiro e foi ferido em uma perna, durante o cerco de Pamplona. Então, submeteu-se a várias operações nas quais mandou quebrar a sua perna por algumas vezes, com um objetivo puramente humano: não ficar manco e poder apresentar-se bem, segundo as concepções afidalgadas daquele tempo.
O professor descrevia muito bem o episódio, explicando as dores dele, numa época em que a anestesia não existia. E eu pensava: “Que formidável! Isso é coerente: ele sentiu a dor e gemeu, mas não lhe deu importância, pois o conduzia a fazer o que havia decidido!”

Castelo de Loyola – Santuario de Loyola -Guipuzcúa. España
Em seguida, a narração apresentava o santo quase

Castelo de Loyola Santuario de Loyola -Guipuzcúa. España), local da conversão de santo Inácio
sozinho num castelo, recuperando-se da operação. E, para passar o tempo, começou a ler romances de Cavalaria e posteriormente a vida dos santos, pois não havia outros livros à sua disposição.
No início, ele não encontrou interesse nas vidas dos santos, mas depois entendeu a seriedade daquelas histórias, encantou-se e fez o seguinte raciocínio, constituído por poucas palavras: “E se eu fizesse o mesmo que fizeram os santos… Se eles puderam, por que não posso eu?” A partir desse momento, resolveu ser santo.
O mestre narrava também que Santo Inácio deixou a sua condição de fidalgo, abandonou as coisas do mundo, fazendo-se quase um mendigo, e decidiu estudar.

São Francico Xavier e Santo Inácio de Loyola – Iglesia de los Jesuitas – Paris, Francia
A história continuava com a conversão de São Francisco Xavier, na França. Este era tão famoso que os alunos da Universidade o aclamavam. E Santo Inácio, miudinho, insignificante de corpo e pobremente vestido, colocava-se no caminho dele e perguntava:
– Francisco, de que vale ganhar o mundo, se perdes a tua própria alma?
Eu imaginava a cena: os dois falando em língua basca, no meio de uns estudantes franceses, gazouillant3 como passarinhos. Com olhos iluminados, um Santo Inácio feio e manco, mas com olhar de fogo, pronuncia essa frase que tem o efeito de uma bomba. São Francisco Xavier sente a pergunta entrar no fundo da sua consciência, mas tenta disfarçar a sua impressão junto aos outros. Santo Inácio lhe diz:
– Se não me ouves hoje, volveré mañana4!
E sai majestoso, na sua pobreza e no seu infortúnio. Os franceses dão um risinho:
– Esse espanhol…
Entretanto, num belo momento, o raio da graça desce sobre Francisco Xavier: ele abandona tudo e segue Santo Inácio.
Essa história causou uma verdadeira explosão de admiração, no interior de minha alma!
Depois, passei a notar que alguns lampejos do espírito do Fundador da Companhia ainda reluziam nos professores jesuítas e pensava: “Isso vem de Santo Inácio… Que coisa estupenda!”
E essa consideração me animava sobremaneira.
“Ad Maiorem Dei Gloriam”
Lembro-me, com saudades, do meu jovem entusiasmo quando, pela primeira vez, um dos padres durante uma aula explicou o lema de Santo Inácio: Ad Maiorem Dei Gloriam5.
Não poderia haver divisa mais magnífica!
Entendi que o sentido específico da palavra maior, nessa aplicação, não indicava apenas algo superior, mas o máximo!
O que era a glória, para mim?

Marechais Foch e Joffre desfilando sob o Arco do Triunfo, em paris, no fim da Primeira Guerra Mundial
A vitória da França, na Primeira Guerra Mundial, havia rutilado muito aos meus olhos de criança. Então, o símbolo da glória era, por exemplo, o Marechal Foch, vencedor, precedido e seguido por tropas, passando sob o Arco do Triunfo, em Paris, com seu bastão de comando, enquanto toda a população batia palmas.
Quando aprendi esse lema, compreendi que era preciso dar atenção à glória de Deus e considerá-la de todos os modos, pois, na Terra, ela poderia ser contestada. Então, os que a amavam deveriam lutar até o último hausto para promovê-la, de maneira que as pessoas não se contentassem apenas em aumentar a glorificação de Deus, mas sempre desejassem mais, insaciavelmente mais, até atingirem o seu ponto culminante.
Os jesuítas também inculcavam muito a glorificação do Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto Salvador do gênero humano. De tal maneira que fui habituado a colocar, no alto das páginas de tudo quanto escrevo, uma cruz e as iniciais IHS, das palavras “Iesu hominum Salvator”, ou seja: “Jesus, Salvador dos homens”.
E conservo esse hábito até hoje.
1 As três partes do barrete eclesiástico, mencionadas pelo Autor, simbolizam a Santíssima Trindade.
2 Verruma: espécie de broca manual.
3 Chilreando.
4 “Voltarei amanhã”.
5 “Para a maior glória de Deus”.
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