Férias no campo
Todos os anos, regularmente, minha família ia a Águas da Prata, pequena estação hidromineral, perto da divisa de São Paulo com Minas Gerais, devido ao bem que essas águas faziam à saúde de minha mãe.
Assim, as férias traziam para mim o contato com o campo, o qual era ainda um tanto selvagem no Estado de São Paulo, cujas casas de fazenda não eram lindas, como as do Estado do Rio, mas feias, em geral, apesar de morarem nelas famílias tradicionais e de boa educação.
A única plantação da vida
Eu tinha uma completa falta de intelecção sobre as coisas do campo, e posso dizer que a única forma de agricultura que pratiquei em minha vida foi plantar milho e alpiste, nos vasos de flores de minha casa. Enfiava um grão na terra, com o dedo, cobria-o e depois o resto se fazia por si, sem que eu me preocupasse mais. Eram plantações perfuratórias que não apresentavam nenhuma forma de arte nem de habilidade, mas eu me lembro do meu entusiasmo quando vi sair o primeiro broto: “Plantei algo!”, pensei, e, com surpresa para minha mãe, os vasos da casa começaram a dar milho…
Aquilo se devia ao meu encanto por ver o quanto era bonito um grão germinar, simplesmente por ser acalcado dentro da terra. O fenômeno da germinação me deixava interessadíssimo! Ora, Dª Lucilia não era da mesma opinião e não queria ver os jarros da casa dela transformados num milharal. Então, mandava arrancar tudo, e eu passava a plantar, mais inofensivamente, em latinhas colocadas no quintal, o que ela permitia.
Certa vez, plantei uma boa extensão de alpiste, com o tamanho da circunferência de um prato. Em pouco tempo estavam nascendo umas hastezinhas, no primeiro momento muito bonitas e engraçadas, de um verde delicado, depois um tanto rosadas ou cor de madrepérola na base e, na ponta, de um verde feio, onde apareciam os grãos de alpiste. Eu soprava em cima para ver qual era o efeito dos “tufões” sobre aquilo, e me distraía muito.
Um prazer em três aspectos
Em geral, nos primeiros dias de férias, a família ainda não viajava, pois mandavam as malas em trem, num vagão de carga, para o local de destino, e partiam depois, levando apenas maletinhas. Assim, passávamos dois ou três dias em São Paulo, espevitados pela previsão de três semanas fora.
Depois começava a viagem, com os respectivos passeios, o que constituía outra delícia. Em certo momento, estávamos cansados e começava o declínio das férias, com certa melancolia, pois as aulas estavam se aproximando… Mas procurávamos esquecer-nos disso, o quanto fosse possível!
Por fim, acabavam as férias. Já no trem, durante a viagem de retorno, vínhamos conversando entre os mais jovens, encantados com tudo o que havia acontecido.
Era um prazer trifásico. Então, vinha-me várias vezes ao espírito o seguinte problema: “O que é o melhor de um prazer na vida? Prevê-lo e começar a fruí-lo? Fruí-lo quando ele chega ao auge? Ou lembrar-se dele com saudades e destilar o que ele tinha de melhor?”
Evidentemente, as três opções apresentavam cada qual o seu deleite próprio.
“Drama” em Campo Limpo
Em certa ocasião, eu estava indo passar as férias em Águas da Prata, viajando com papai, mamãe, muitos membros da família e a Fräulein alemã que permaneceu por pouco tempo em nossa casa e de cujo nome não me lembro.
Paramos numa cidadezinha, entre São Paulo e Jundiaí, da qual a lembrança me ficou sempre na memória, porque nela se deu um “drama” de minha infância: Campo Limpo1.
Segundo o meu costume nas viagens de trem, comecei a me sentir enjoado e pedi licença a papai para descer à plataforma da estação e respirar um pouco, andando de um lado para outro. Mas, de repente, ouvi um apito: o trem começava a sair.
Eu quis pular no vagão em movimento, mas, quando ia fazê-lo, alguém me agarrou com muito vigor pelas costas. Era a Fräulein, mulher esperta que também descera à plataforma, a fim de não me perder de vista. Ainda me debati, mas ela foi mais forte e, assim, perdemos o trem e ficamos em Campo Limpo. Entretanto, eu sentia uma certa garantia pela presença da Fräulein. Perguntei-lhe:
– E agora, o que nós vamos fazer?
– Não tem nada! Vamos nos encontrar com seu pai em Campinas.
– Mas, como papai vai tomar contato conosco?
– Isso é muito simples. Vou falar com o chefe da estação e ele passará um telegrama à estação próxima, avisando ao senhor que procura um filho, que este se encontra em Campo Limpo e vai partir para Campinas no próximo trem, a tantas horas.
Pensei: “Papai vai passar por Campinas dormindo e não acordará!”
Encontro com dois Sacerdotes
Quando tomei o trem que nos levaria a Campinas, notei que, na parte da frente do vagão, viajavam dois Padres do Colégio São Luís, professores meus, os quais iam passar as férias na casa dos jesuítas em Itaici. Um deles, italiano, chamava-se Pe. Prósperi2, e o outro, espanhol entusiasta da Itália, era o Pe. Cerdá. Grandes, altos e corpulentos, enchiam completamente as poltronas que ocupavam no trem. Eles não me viram quando entrei e, então, já sentado, pensei: “Serei amável se for cumprimentá-los!”
Levantei-me do meu assento e fui falar com eles.
A estação de Campinas e a chegada a Águas da Prata
Chegamos a Campinas, importante cidade pela qual eu era obrigado a passar frequentemente, quando ia com minha família a Águas da Prata. Eu já sabia o que iria encontrar: no pátio da estação havia uma pequena coluna, sobre a qual estava uma figura de metal, representando a República. Nessa estação existia também um entroncamento ferroviário, para onde os trilhos convergiam formando uma espécie de estrela central, o que parecia constituir o summum3 do progresso, e de onde os trens tomavam inúmeras direções.
Aquela “república”, desfigurada pela fuligem e por todos os sóis que dardejavam sobre ela, sem perceber nada do que acontecia em torno de si, mas sempre em atitude de quem ensinava, enquanto os trens passavam indiferentes, parecia ser bem o símbolo da época que estávamos vivendo: em meio ao progresso material, as ideologias, cada vez menos compreensíveis, doutrinavam algo em que ninguém mais prestava atenção… Por outro lado, o complicado emaranhamento da estrada de ferro indicava uma pluralidade de caminhos a serem tomados e a necessidade de escolher um para chegar ao ponto desejado.
Papai já se encontrava na estação, dando risada e satisfeitíssimo. Aquela noite tivemos de dormir num hotel de Campinas, o melhor da cidade, chamado Grande Hotel Pinheiro. Para mim, foi uma noite cercada de sensações de repugnância, pois o local me parecia horrível. Mas, no dia seguinte, já me encontrava em Prata, entre os braços de mamãe, sentindo que o mundo tinha entrado novamente em seu eixo.
Festa em Águas da Prata
Certa manhã, em Águas da Prata, o lugarzinho se encontrava todo festivo. A estação de trem estava muito ornamentada, e a banda de música local se preparava. Ouvia-se em casas distantes, até nos longínquos arrabaldes, o som de vários instrumentos musicais que tocavam, treinando, o que dava a impressão de uma orquestra disseminada pelos bairros da cidade.
Em determinado momento, a movimentação aumentou e os “senhores da terra” dos arredores começaram a circular pelas ruas. Apareceram o juiz, o delegado de polícia e outros homens que tinham algum cargo público, mais bem vestidos do que o normal.
Qual era a razão de tudo isso? Um filho da terra voltava, para morar na cidade. Ele era nascido no lugar e tinha acabado de formar-se na Faculdade de Direito. Por causa disso, usava um anel de ouro, com um rubi – o vermelho era a cor simbólica da profissão de advogado – e, talvez, cravejado de brilhantes.
À chegada do novo doutor, estava preparado um pequeno estrado na estação para quem fosse saudá-lo com um discurso e para ele depois responder à saudação, num tom declamatório. Assim começava a sua carreira.
Essa festa, que marcava bem a promoção trazida pela condição de doutor, era ainda um produto da sociedade aristocrática da República Velha.
Dª Gabriela e o Governador do Estado
Mamãe gostava de contar certos episódios em que o prestígio da mãe dela aparecia, como, por exemplo, um caso ocorrido em Águas da Prata.
Minha família estava passando uma temporada num dos hoteizinhos da cidade, quando coincidiu que passasse por lá, rumo à vizinha Poços de Caldas, o Governador do Estado, Washington Luís. Este entrou cumprimentando as pessoas e, em
certo momento, quando terminou a visita, o dono do estabelecimento quis tirar uma fotografia do Governador e de toda a sua comitiva, para figurar no álbum do hotel. Então, foi decidido que o retrato seria feito junto a uma árvore frondosa e colossal que havia num campo próximo.
E o Governador perguntou:
– Dª Gabriela não vem para a fotografia?
– Não, senhor – respondeu alguém. Ela não está pensando em vir.
Minha avó não queria comparecer, por ser monarquista convicta. Ele sabia disso perfeitamente, mas insistiu:
– Mas, o que é isso? Diga a ela que eu mandei convidá-la, pois me fará muita honra.
Então, o dono do hotel foi falar com vovó, que respondeu:
– Vou demorar muito em aparecer, de maneira a ele perder a paciência e sair.
O homem retornou e, com as seguintes palavras, praticamente traiu a intenção dela:
– Dª Gabriela manda dizer que receia demorar muito…
Mas o Governador era um homem muito turrão:
– Diga-lhe que eu não sairei daqui sem que ela venha para se fotografar. Esperarei o tempo que ela quiser.
A situação estava posta de tal modo que minha avó, afinal, se arranjou e foi com minha mãe participar da fotografia. Eu entendi o quanto essa atitude do Governador indicava respeito: ele se sentiria diminuído se ela não aparecesse ao seu lado na hora de ser fotografado. E mamãe tinha agrado em contar esse fato para mostrar como vovó era considerada.
Um tremor de terra
Uma noite, em Águas da Prata, eu estava dormindo e ouvi um estampido enorme: era um pequeno tremor de terra4. Notando que algo de estranho tinha se passado e percebendo que meus pais haviam acendido a luz, levantei-me cambaleante e passei para o quarto deles – contíguo ao meu e tendo comunicação interna – com a vaga ideia de tranquilizar mamãe. Mas a minha própria tranquilidade era tão grande, que entrei meio dormindo e tartamudeando em francês, o que nunca me acontecia, a não ser diante dos empregados, em certas ocasiões, para eles não entenderem algumas conversas.
Eu não tinha nenhuma ideia nem interesse pelos fenômenos sísmicos. Para mim, aquilo não significava nada e era provavelmente sem importância, pois os tremores de terra eram raríssimos. Então, em meio à sonolência, inventei uma explicação extravagante e absurda, dizendo:
– Ce n’est rien, maman, c’est un aérolite qui est tombé5.
O meu sono era mais forte que o tremor de terra e a preocupação visível de minha mãe: deitei-me atravessado aos pés da cama deles e continuei a dormir.
Entretanto, em São Paulo isso foi considerado um acontecimento. Naquele mesmo dia, os meus pais tomaram o trem de volta, interrompendo a temporada de águas, pois parece que alguém do observatório astronômico de São Paulo, em ligação interurbana com meu pai, deu-lhe esse conselho, por haver perigo de outros tremores. Evidentemente, não aconteceu mais nada, pois o terremoto era brasileiro…
A última fantasia de carnaval
Certa vez, nossa viagem a Águas da Prata coincidiu com o carnaval. Então, os hóspedes do hotelzinho em que estávamos resolveram que as crianças fariam uma festa de fantasias, a qual foi muito inocente.
Eu já estava às beiras da idade em que não deveria mais me fantasiar, pois, sendo um meninote de doze ou treze anos, a minha infância estava chegando aos seus últimos minutos… Entretanto, mamãe achou que, se os filhos dela não vestissem alguma fantasia e se mantivessem fora da festa, ficaria um tanto mal.
Normalmente, nos carnavais ela fazia para nós trajes os mais finos que podia, os quais, sem embargo, não chegavam a ser fantasias de criança rica. Nessa ocasião, entretanto, ela mandou um alfaiate de Prata improvisar, para minha irmã e para mim, roupas de estilo pretensamente espanhol, mas muito pobres, pois, nas condições locais, não era possível elaborar nada melhor.
Eu vesti uma espécie de paletó curto, que fazia papel de bolero, com grande faixa vermelha à cintura e uma gola tirada de um vestido de minha irmã. Mamãe cortou meu cabelo de modo especial, de maneira a fazer uma franja, e mandou-me pôr um chapelão de palha que ela comprou num comércio do lugarejo, de um italiano chamado Di Martini. Estava feita a minha fantasia.
Lembro-me, inclusive, que às vezes passávamos em frente a essa venda, e eu, que tinha o hábito de olhar para dentro das casas térreas a fim de analisar os ambientes, via nos aposentos da família do vendeiro, sempre abertos, um pomposo escudo com certificado de nobreza. Um dia, eu havia perguntado à Fräulein:
– Di Martini é nobre?
Ela me explicou: certamente ele havia conseguido um dinheirinho e mandara consultar algum genealogista da Itália, o qual lhe enviara o brasão…
No papel de espanhol heroico, esperanças de um futuro
Eu tinha muito a tendência de viver o papel que as minhas fantasias representavam. E, apesar de ter má memória, lembro-me das várias impressões que senti ao vestir aquele traje de espanhol e no momento de tirar a fotografia.
Minhas ideias a respeito de Contra-Revolução já estavam bem desenvolvidas e tinha noção do que era a Espanha mítica, a Espanha da legenda, das touradas e dos guerreiros; a nação do cavalheirismo, do heroísmo e das Cruzadas. Quando eu lia em livros de Geografia nomes espanhóis, como Reino de León, por exemplo, tinha a impressão de ser aquele um reino onde existiam leões heráldicos autênticos. Ouvia mencionar Valência, e imaginava uma cidade cheia de muxaribiês6 altos, dentro dos quais homens e senhoras de olhos pretos e esfuziantes, observando o que se passava na rua, faziam política, marcavam horas e mandavam recadinhos por meio de açafatas e criados. Cidades de música, de leveza e de elegância, cada uma com sua beleza própria, mas, ao mesmo tempo, onde o temperamento das pessoas era demasiadamente torturado pelas emoções.
Por outro lado, nesse tempo eu já estava em minha fase ascendente de vida colegial, tendo vencido a moleza e havendo adquirido uma especial energia. Então, fiquei encantado por me fantasiar assim e procurei intensificar essa energia, considerando as belezas e vantagens da combatividade e pensando: “Que coisa boa é ser espanhol! É gente decidida, que realiza o que resolve, e enfrenta o touro!”
Julguei-me obrigado a assumir a atitude e o physique du rôle7 do espanhol e até do toureiro: cavalheiresco, donairoso e heroico. E passei o dia inteiro procurando me pôr naquele papel, pois desta forma me sentia mais próximo do que já sabia ser minha vocação.
No fundo, havia em mim uma espécie de esperança veemente no futuro que vinha chegando, e não apenas a mera bravatinha de uma criança, a qual brinca com um sombrero8 largo… E pensava: “Com esta roupa, vivo um pouco da luta que deverei travar! Se eu for assim, moverei os acontecimentos!”
Então, a fantasia me trouxe certa vantagem, pois me ajudou a sondar as minhas próprias possibilidades de combatividade e de energia.
Por isso, nessa fotografia, me apresento com fisionomia séria, à maneira de um combatente pronto para entrar na batalha a qualquer hora e de corpo inteiro, não tanto empunhando a lança, mas tomando a caneta e travando uma polêmica. Ao mesmo tempo, transparecem nesse menino a bondade, o afeto, a gentileza e, no fundo, o amor à sublimidade, com uma espécie de alheamento completo em relação a tudo o que se afastar dela.
Essa conjunção já formava uma mentalidade.
Em Santa Rita do Passa-Quatro
No período das férias, às vezes também permanecíamos alguns dias na fazenda de um casal amigo de meus avós e de meus pais, num lugarzinho do Estado de São Paulo, para os lados de Ribeirão Preto, de nome tipicamente brasileiro: Santa Rita do Passa-Quatro9.
O fazendeiro era um baiano, de baixa estatura, muito vivo, com um pince-nez10 perpétuo colado no nariz. Médico, formado em Salvador, havia feito fortuna em São Paulo, onde mandara construir uma casa para si. Depois comprou terras no que era então o sertão paulista, e formou uma fazenda de nome otimista: “Aurora”, onde permanecia uma parte do ano com a família.
Estação ferroviária
O ritmo de vida na fazenda
Antes de chegarmos a Santa Rita, o trem parava numa pequena estação de cujo nome não me lembro. Ali já estava para receber-nos um batalhão de sobrinhas solteiras do fazendeiro, todas enfeitadas de maneira um pouco caipira, mas, tanto quanto elas podiam, segundo a última moda de São Paulo.
Entravam no vagão trazendo flores e faziam-nos uma série de agrados com muita vivacidade, tendo a alegria característica de pessoas que levavam uma vida tranquila e para as quais era uma distração encontrar conhecidos e conversar com pessoas alheias àquele ambiente.
O trem continuava até a fazenda, em cuja estação se encontrava o fazendeiro e a madame fazendeira, baiana também, os quais não tinham filhos. Havia ali várias charretes – pois eles não usavam automóveis – prontas para levar nossa família e as malas.
Então, durante vinte dias, tínhamos uma vida de sossego e tranquilidade, fruindo atrações campestres, honestas e direitas, que ofereciam o prazer da calma.
O casal conhecia as pequenas preferências de cada um de nós: alguns, como eu, gostavam de tomar leite com conhaque na própria cama e, então, de manhã, ouvíamos o som dos sinos das cabrinhas que vinham e já sabíamos do que se tratava. Uma criada subia até nossos quartos levando o leite de cabra, nós bebíamos e depois dormíamos por mais algum tempo.
Para outra pessoa, o dono da fazenda mandava servir dois ou três ovos quentes, de um frescor inimaginável. Quebrava-se apenas a ponta, chupava-se o ovo inteiro e depois ia-se para o café da manhã. Assim, havia pequenas comodidades arranjadas para a vida de todos. Cada um se levantava da cama na hora que desejava, conversava e saía de casa quando entendia, para ver alguma coisinha na fazenda.
Durante o almoço – muito abundante – ouviam-se músicas caipiras, tocadas por um velho gramofone de manivela, da marca
Victor, tendo aquela espécie de enorme flor, que aparecia na propaganda com um cachorro e os dizeres “A voz do dono”11.
Uma dessas melodias era Cabocla de Caxangá12, a qual, pela recordação que tenho, referia-se a personagens famosos, valentões do interior da Bahia, e começava assim:
“Laurindo Punga, Chico Dunga, Zé Vicente,
Esta gente tão valente
Do sertão de Caxangá…”
Eu tinha horror e rejeição àquilo, mas a toada me ficou no ouvido, como a característica do trio imbricado e muito afirmativo de uma mesma posição.
Na fazenda, os homens discutiam longamente sobre política e, desse modo, ia a tarde inteira. O ritmo da vida era calmo, normal e contínuo, havendo tempo para todo mundo fazer o que precisasse, sem pressa. A existência era muito estável e essa estabilidade proporcionava um verdadeiro deleite.
O sabor da civilização
Por fim, eu retornava do campo com minha família. Ao entrar em São Paulo o trem percorria a periferia da cidade, com seus bairros operários e industriais, antes de chegar à Estação da Luz. Eu permanecia de pé junto a uma janela, olhando. Via aquelas chaminés, a sucessão das fábricas, ruas com gente trabalhando, feiras, caminhões que levavam e traziam mercadorias… Observava a vida de família, limpa, honesta e muito moralizada, que se conjugava com o trabalho.
Apesar de a cidade ainda ser pequena, via-se nela algo de vida e de movimento, que a modorra do interior me impedia de sentir. Era uma certa força que começava a sacudir a preguiça originária do Brasil colonial, em parte pelo impulso da imigração. Vinham a São Paulo sobretudo italianos, mas também, em alguma medida, portugueses e sírios – as três principais correntes migratórias –, produzindo um dinamismo que envolvia e engajava os próprios brasileiros no trabalho. E tudo isso trazia uma atmosfera intensa de variedade, dando certo sabor, bom e aprazível, de civilização.
Então, nessas ocasiões, eu tinha encanto pela cidade e pensava o seguinte: “Senti certo alívio quando fui a Águas da Prata, e a natureza me agradou, porque me fez descansar da vibração. Mas, agora, estou gostando da vibração porque me descansa da natureza. Onde estará o ponto de equilíbrio?”
Depois chegávamos ao centro da cidade, em geral à tarde. Parecia-me que se São Paulo fosse para sempre assim, eu jamais viajaria, a não ser para o meu bem-amado litoral.
1 A cidade de Campo Limpo Paulista, no Estado de São Paulo.
2 O Pe. Vicente Prósperi, SJ, era docente no Colégio São Luís desde o ano 1884.
3 Em latim: cimo, fastígio.
4 Segundo informações do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG), em 27 de janeiro de 1922 houve um terremoto de 5,1 na escala Richter, em Mogi-Guaçu (SP). O tremor foi sentido a mais de 300 km da região epicentral. (Cf. Sismicidade do Brasil. Instituto Astronômico e Geofísico, São Paulo, 1984, pp. 70-71.)
5 Em francês: “Não é nada, mamãe, foi um aerólito que caiu”.
6 Espécie de sacada em estilo mourisco, coberta por grades de madeira de alto a baixo, de onde se pode ver sem ser visto.
7 Em francês, literalmente: o físico do papel. Ou seja, a manifestação, no porte e na atitude, da função que se exerce ou do papel que se representa.
8 Em espanhol: chapéu.
9 O nome do pequeno município deve-se à antiga estrada que ligava Pirassununga a Santa Rita. Esta cruzava quatro vezes o curso de água que passou a chamar-se Rio Passa-Quatro.
10 Em francês: literalmente, “prende nariz”, antigos óculos sem hastes.
11 “A voz do dono” era o título do logotipo da Victor, empresa que fabricava gramofones. Neste aparecia um cão terrier diante de um desses aparelhos, devido a uma antiga história: certo homem, antes de morrer, deixara em herança ao irmão um gramofone, gravações de sua voz e um cão chamado Nipper. Ora, numa ocasião em que o herdeiro fez reproduzir no aparelho a voz do falecido, o cão reconheceu-a e permaneceu junto ao gramofone. Posteriormente, o pintor Francis Barraud fez o desenho que seria o emblema da empresa.
12 Peça de música sertaneja, composta em 1913 por Catulo da Paixão Cearense.
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