Integridade, Fé, moral e pensamento
Qual a forma mais adequada de apresentar ou definir um autor?
Cada ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, é único e irrepetível. Pois sua alma reflete sempre algum aspecto do Criador, que mais ninguém será chamado a reproduzir. Decorre desse fato que cada homem veja Deus por um prisma diferente dos outros e, em conseqüência, cada um tenha do universo uma visualização inteiramente singular. No seu conjunto, os seres inteligentes formam um imenso e maravilhoso caleidoscópio através do qual podemos contemplar incontáveis dos infinitos reflexos do Criador.
Com freqüência, nos jornais e revistas, a referência a qualquer personagem de destaque na atualidade consta de um nome, um número (a idade) e, conforme o caso, um cargo ou uma profissão. Pode-se avaliar ou definir a personalidade de alguém apenas com dados tão elementares? Compreende-se que a exigüidade de espaço de um artigo de jornal possa obrigar seu autor ao laconismo. Mas talvez essa simplificação se deva também a um defeito de nossa época: o de sobrevalorizar em demasia as classificações quantitativas. A idade, num homem, não passa de um aspecto secundário e acidental, que não o define nem o identifica.
Se nos conformássemos com os costumes vigentes em tantos órgãos de imprensa, ao apresentar o Autor ora em questão, nos limitaríamos a escrever: Plinio Corrêa de Oliveira, 86, advogado e jornalista.
Para quem o conheceu e pôde comprovar suas virtudes, sua marcante e nobre personalidade, bem como sua grande obra, tal caracterização seria, no mínimo, insuficiente.
Imagem e semelhança de Deus
Portanto, para apresentar ao Leitor a figura de Plinio Corrêa de Oliveira, é indispensável, além de expor alguns traços essenciais de sua vida e obra, delinear sua visualização do Universo, a qual se manifesta algumas vezes explicitamente, e outras de modo difuso, ao longo de todos os seus escritos.
Seguiremos assim o sábio conselho expresso no livro dos Provérbios: “O homem será conhecido pela sua doutrina” (12, 8). Entendida a frase num sentido lato, ou seja, um homem deve ser avaliado pelos seus mais nobres e elevados aspectos de alma, sobretudo por sua Fé, religiosidade e demais virtudes, das quais decorrem as boas obras.
Certamente por isso, Plinio Corrêa de Oliveira se definia a si mesmo como sendo um homem íntegro, de Fé, de pensamento e de ação.
Sua Fé se caracterizava, em primeiro lugar, pela adesão incondicional e ardorosa a tudo quanto a Santa Igreja ensina e por uma submissão ao Papado e à Hierarquia eclesiástica, com um devotamento tal, que o levava a declarar-se intelectualmente escravo da Santa Sé. No entanto, essa Fé tinha mais alguns aspectos peculiares.
Uma escola de amor a Deus
Considerava ele que tudo quanto existe na Criação, de algum modo, simboliza a Deus. Para ele, o universo podia ser comparado a um imenso edifício simbólico no qual a parte mais alta corresponderia ao homem.
Dotado de um espírito profundamente religioso, não analisava apenas pelos seus aspectos práticos ou funcionais a realidade que o circundava, mas também, e com ênfase, por seu significado simbólico das perfeições divinas. Pois é, sobretudo, através da consideração dessa simbologia que o fiel deveria exercitar o amor a Deus.
Este modo de praticar o primeiro Mandamento não é novo, pois São Paulo, na Epístola aos Romanos, remete-se a ele, ao acusar os habitantes da Urbe de não terem querido conhecer a Deus através das criaturas, caindo, em conseqüência, nos piores desvios morais: “Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras; de modo que não se podem escusar. (…) Por isso, Deus os entregou a paixões vergonhosas” (Rm 1, 20.26a).
Também o Salmista aponta para essa forma de elevar o espírito a Deus, exclamando: “Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de suas mãos” (Sl 18, 2).
Nessa perspectiva é que Plinio Corrêa de Oliveira, por exemplo, ensinava como se deve entender a figura do pai, na instituição da família. Investido de uma autoridade sobre os filhos, consagrada pela Lei de Deus, sua função não se limita a gerar, alimentar e educar a prole. Ela vai além disso. E mais do que transmitir a Fé aos seus descendentes, por seus ensinamentos, o pai deve ser uma imagem viva do Criador para eles. É assim também que todo inferior deve ver seus superiores.
Considerando deste modo o universo, tinha Plinio Corrêa de Oliveira uma vida interior substanciosa, exercitando continuamente o amor a Deus. Parece ter-lhe sido concedido um apreciável dom de ciência, através do qual, por iluminação do Espírito Santo, a alma se eleva das criaturas até Deus, conforme nos explica o famoso Tanquerey: “E assim, debaixo de cada criatura, que é como um sacramento das perfeições de Deus, devemos adorar o que ela representa.”[1]
Outra característica do seu espírito de Fé consistia em discernir e amar os princípios da ordem social humana, por onde ela reflete a celeste e, em conseqüência, a essência de Deus. A esse reflexo da ordem celeste na humana chamava ele sacralidade. Por isso ensinava aos seus discípulos que a Igreja Católica é, por excelência, a detentora da sacralidade; e na Igreja, sobretudo, o Papado. E por esse motivo, tudo quanto é eclesiástico, dizia ele, tem predominância sobre o profano. Ademais, num sentido minor, na ordem temporal há relações de sacralidade. Concluía ele que, em geral, tudo quanto é superior é, a seu modo, sagrado em relação ao que lhe é inferior, ou seja, as autoridades em relação aos súditos; por exemplo, o patrão em relação aos empregados, o pai e a mãe em relação aos filhos.
A beleza, uma via de santificação
A santidade era o ideal de sua vida, que nele tinha uma nota singular, qualificando-a de sublimidade. Para Plinio Corrêa de Oliveira a sublimidade é um grau de beleza que não tem proporção com o homem, mas sim com Deus. E a tudo quanto o homem faz ou é, ele pode dar uma nota de sublimidade, com o auxílio da graça divina.
Por outras palavras, era um modo de cumprir o mandamento de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48). Em seu espírito, a conseqüência deste amor à sublimidade era sua intensa devoção à Cruz.
Sua espiritualidade se fundamentava em três pilares.
O primeiro era uma plena devoção ao Santíssimo Sacramento, acrescida de uma nota que consistia em introduzir todas as atividades da vida na atmosfera do sagrado. A tal ponto que, para ele, uma capela ou igreja ideal deveria ter algo, também, de salão capitular e de sala de trabalho, de modo que o estudo ou outras atividades intelectuais pudessem, na medida do possível, ser realizados diante de Jesus Eucarístico, em espírito de oração.
O segundo, uma devoção filial a Maria, dentro da escola de São Luís Grignion de Montfort. Ou seja, praticando a escravidão de amor a Nossa Senhora.
E o terceiro, um devotamento entranhado à Igreja Católica, Apostólica e Romana, cujo corolário é a fidelidade à Cátedra de Pedro e, portanto, a Sua Santidade, o Papa.
Vistos em rápidos traços, alguns aspectos mais salientes do homem de Fé, passemos a uma breve descrição dos fatos marcantes de sua vida e atuação.
Antepassados ilustres
Nasceu em 13 de dezembro de 1908, na cidade de São Paulo, capital do mais dinâmico estado brasileiro. Descendia de estirpes tradicionais dos estados de Pernambuco, ramo paterno, e de São Paulo, ramo materno.
Seu pai, o advogado João Paulo Corrêa de Oliveira, provinha de uma ilustre família de senhores de engenho, descendentes de heróis da guerra contra os invasores holandeses. O Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, seu tio-avô, destacou-se como um dos mais eminentes homens de estado do Império do Brasil. Foi ele quem, na qualidade de Primeiro Ministro, referendou a lei de abolição da escravatura – a famosa Lei Áurea – em 13 de maio de 1888.
Sua mãe, Lucília Ribeiro dos Santos Corrêa de Oliveira, era da classe dos paulistas de quatrocentos anos, como se designavam os descendentes dos fundadores e dos primeiros habitantes da cidade de São Paulo. No ramo materno, o mais ilustre antepassado de Plinio Corrêa de Oliveira foi seu bisavô, o Prof. Gabriel José Rodrigues dos Santos, advogado, orador respeitado quando subia à tribuna da assembléia provincial e, posteriormente, da nacional.
Exímia educadora, Lucília soube inculcar na alma de seu filho, de forma indelével, mas com a suavidade que sempre a caracterizou, a Fé católica, apostólica, romana, pela qual ele batalharia até seu último alento.
Uma existência dedicada à Igreja
O jovem Plinio fez seus estudos secundários no Colégio São Luís (dos jesuítas), em São Paulo. De feitio muito lógico, já em sua primeira infância entusiasmou-se pelos princípios da formação inaciana e a esta devotou viva admiração até o fim de seus dias. Infelizmente, encontrou também, entre alguns de seus colegas de estudo, manifestações de desregramento moral, vulgaridade e igualitarismo. Posto diante do contraste entre esse modo de ser e o ambiente casto e tradicional do lar materno, formou a resolução de dedicar sua existência à defesa da Igreja e à sacralização das realidades temporais. Tal decisão resumiu-a, ele mesmo, nestas belas palavras:
“Quando ainda muito jovem,
Considerei enlevado as ruínas da Cristandade,
A elas entreguei meu coração.
Voltei as costas ao meu futuro,
E fiz daquele passado carregado de bênçãos
O meu Porvir…”
Em setembro de 1928, aos 19 anos, Plinio Corrêa de Oliveira, então jovem estudante universitário, participou do Congresso da Mocidade Católica, onde tomou o primeiro contato com as Congregações Marianas. Em breve tornou-se o principal líder desse movimento em todo o Brasil, destacando-se pelos seus dotes de orador e homem de ação.
Em 1929, pouco antes de diplomar-se na renomada Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, coordenou alguns congregados marianos e fundou a Ação Universitária Católica (AUC). Esta se tornou em breve uma realidade vitoriosa da vida acadêmica de então, estendendo-se rapidamente para as demais escolas superiores da capital paulista.
Em 1933 participou da organização da Liga Eleitoral Católica (LEC), pela qual foi eleito para a Assembléia Nacional Constituinte, tendo sido o deputado mais jovem e mais votado de todo o país. Atuou naquela Casa Legislativa como um dos maiores líderes dentre os deputados católicos.
Terminado o seu mandato, dedicou-se ao magistério. Assumiu a cátedra de História da Civilização no Colégio Universitário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e, mais tarde, tornou-se professor de História Moderna e Contemporânea na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras São Bento e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae, ambas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Ao mesmo tempo, dedicou-se à análise filosófica e religiosa da crise contemporânea. As páginas do “Legionário” – que, sob sua direção, passou de simples folha paroquial a semanário e órgão oficioso da Arquidiocese de São Paulo – registram muitas dessas penetrantes análises. A clarividência com que interpretava a marcha dos acontecimentos levou-o em diversas ocasiões a prever, com surpreendente acerto, o acontecer futuro.
Foi o primeiro presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica de São Paulo.
Em 1951 passou a colaborar no mensário de cultura “Catolicismo”, o qual foi, no seu tempo, um dos pólos de pensamento da imprensa católica no Brasil. Colaborou ainda assiduamente, entre os anos de 1968 e 1990, na “Folha de S. Paulo”, o quotidiano de maior circulação no estado do mesmo nome.
Plinio Corrêa de Oliveira é autor de catorze livros. Dentre eles destacam-se três, que constituem suas obras-mestras.
Três obras-mestras
Em Defesa da Ação Católica (1943), editado com prefácio do então Núncio Apostólico no Brasil, Dom Bento Aloisi Masela, o qual foi depois Cardeal Camerlengo da Santa Igreja. A obra é uma aguda análise de desvios doutrinários constatados em alguns setores da Ação Católica, em nossa pátria.
O livro recebeu calorosa carta de louvor, escrita em nome do Papa Pio XII, por Mons. J. B. Montini, então Substituto da Secretaria de Estado da Santa Sé, e mais tarde Papa Paulo VI.
Revolução e Contra-Revolução (1959, acrescido de uma atualização em 1976 e outra em 1992). É uma exposição de caráter histórico, filosófico e sociológico da crise do Ocidente, desde o Humanismo, a Renascença e o Protestantismo até nossos dias. Esta obra estabelece a relação de causa-efeito entre esses mencionados movimentos e a Revolução Francesa de 1789, a Revolução Russa de 1917 e as transformações pelas quais têm passado o mundo soviético e o Ocidente, até o presente.
Nobreza e elites tradicionais análogas, nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana (1993). Neste seu último livro, o Autor comenta as catorze alocuções dirigidas pelo Pontífice ao Patriciado e à Nobreza romana, as quais contêm um apelo a que, nos países com tradição nobiliárquica, sejam preservadas cuidadosamente as aristocracias respectivas. Plinio Corrêa de Oliveira salienta o importante papel que, ainda em nossos dias, cabe às diversas elites, realçando o valor religioso e cultural das tradições de que são portadoras, e a árdua missão que lhes cabe a serviço do bem comum espiritual e temporal no conturbado mundo de hoje. O livro recebeu cartas de recomendação de quatro Cardeais da Santa Igreja.
No plano da ação, fundou – em 1960 – a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), a qual presidiu até a data em que entregou serena e confiantemente sua alma a Deus, 3 de outubro de 1995.
Coerência de pensamento
Tendo a existência de Plinio Corrêa de Oliveira atravessado quase de um extremo ao outro o século XX – no qual a humanidade passou por tantas convulsões e transformações de toda ordem – não se pode deixar de notar sua coerência de pensamento. É o mesmo Plinio que encontramos, tanto em seus primeiros escritos, ao iniciar em 1928 sua militância nas Congregações Marianas, como nos últimos, 67 anos depois, ao chegar ao ocaso da existência terrena. A mesma concepção da vida e do mundo. O mesmo amor abrasado à Santa Igreja e ao Papado. A mesma devoção ardorosa à Eucaristia e filial devotamento à Santíssima Virgem.
Mas, para se entender a fundo sua obra escrita, assim como a linha retrix de sua coerência intelectual, torna-se indispensável expor a essência do seu pensamento filosófico, explanado, sobretudo, no ensaio Revolução e Contra-Revolução, o qual esclarece o sentido mais profundo de todas as outras obras, assim como de sua atuação ideológica.
O que domina a História?
Um dos pressupostos do pensamento de Plinio Corrêa de Oliveira é que – contrariamente à tese defendida por tantos filósofos e sociólogos dos dois últimos séculos – os fatores decisivos da História não são de ordem material. Podem esses fatores ter certa influência no curso dos acontecimentos, como, por exemplo, na economia. Mas, sendo o homem livre e dotado de alma racional, é ele próprio o elemento determinante do curso da História.
“Ora – afirma Plinio Corrêa de Oliveira em seu Auto-retrato Filosófico – o agir do homem se faz normalmente em função de suas concepções sobre o universo, sobre si mesmo e sobre a vida.
“Isto importa em dizer que as doutrinas religiosas e filosóficas dominam a História, e que o núcleo mais dinâmico dos fatores de que resultam as grandes transformações históricas está nas sucessivas atitudes do espírito humano perante a Religião e a Filosofia.”[2]
A Fé católica é o centro da História
Ao defender de maneira convicta, em seus artigos e obras, a centralidade do papel da Igreja na História, Plinio Corrêa de Oliveira explicava a razão de tal posição:
“Segundo a doutrina católica, o homem não consegue, por suas meras forças, praticar duravelmente todos os Mandamentos. Para isto é-lhe preciso o auxílio de um dom criado e sobrenatural de Deus, que é a graça. E esse dom, é por sua união com a Igreja que – segundo o plano da Providência – o homem deve receber. (…)
“Assim, é na medida em que a Igreja é fiel a si mesma, e cumpre mais ou menos perfeitamente sua missão, que a humanidade sobe e desce na prática dos Mandamentos. E com este subir e descer, sobe e desce tudo quanto fazem, em qualquer terreno, os homens.
“O campo decisivo do que se passa no mundo é, pois, a vida interna da Igreja.”[3]
Esse era um pressuposto fundamental de seu pensamento, porquanto, de fato, dizia ele que, as civilizações progridem ou decaem na medida em que nelas se pratica a Lei Natural, condensada por Deus no Decálogo. É o que defende também Santo Agostinho, argumentando contra aqueles que apontavam como causa da decadência do Império Romano, o abandono da religião e dos costumes de seus antepassados. Imaginemos, afirmava o Bispo de Hipona: “Um exército constituído de soldados como os forma a doutrina de Jesus Cristo, governadores, maridos, esposas, pais, filhos, mestres, servos, reis, juízes, contribuintes, cobradores de impostos como os quer a doutrina cristã! E ousem (os pagãos) ainda dizer que essa doutrina é oposta aos interesses do Estado! Pelo contrário, cumpre-lhes reconhecer sem hesitação que ela é uma grande salvaguarda para o Estado, quando fielmente observada.”[4]
Origem das crises morais e dos erros doutrinários
Ao se debruçar sobre os acontecimentos, procurando os sinais de Deus e tentando deduzir deles as leis da História, chegou Plinio Corrêa de Oliveira a conclusões de certo modo originais. Enquanto a quase totalidade dos historiadores busca a origem das crises da cultura e da civilização na mente de algum pensador, gerador de doutrinas filosóficas ou teológicas que depois se espalham, de cima para baixo, por todo o corpo social, Plinio Corrêa de Oliveira via o nascedouro dessas crises nas profundidades mais recônditas da alma do homem:
“Pelo próprio fato de pedir ao homem uma austeridade de costumes penosa para a natureza humana decaída, a influência da Igreja sobre cada alma, cada povo, cada cultura e cada civilização está continuamente ameaçada. As paixões desordenadas, atiçadas pela ação preternatural do Poder das Trevas, solicitam continuamente homens e povos para o mal. A debilidade da inteligência humana é explorável por essas tendências. O homem facilmente engendra sofismas para justificar as más ações que deseja praticar ou já praticou, os maus costumes que contraiu ou está contraindo. Disse-o Paul Bourget: ‘Cumpre viver como se pensa, sob pena de, mais cedo ou mais tarde, acabar por pensar como se viveu’[5].”[6]
“Essas tendências desordenadas – detalha o Autor em sua obra Revolução e Contra-Revolução – que por sua própria natureza lutam por realizar-se, já não se conformando com toda uma ordem de coisas que lhes é contrária, começam por modificar as mentalidades, os modos de ser, as expressões artísticas e os costumes, sem desde logo tocar de modo direto – habitualmente, pelo menos – nas idéias.
“Dessas camadas profundas, a crise passa para o terreno ideológico. (…) Assim, inspiradas pelo desregramento das tendências profundas, doutrinas novas eclodem (…) Essa transformação das idéias estende-se, por sua vez, ao terreno dos fatos, onde passa a operar, por meios cruentos ou incruentos, a transformação das instituições, das leis e dos costumes, tanto na esfera religiosa quanto na sociedade temporal.”[7]
O orgulho e a sensualidade
Das paixões humanas – é uma das teses fundamentais de Plinio Corrêa de Oliveira – duas têm importância primordial no processo de decadência da alma, fazendo o papel de molas propulsoras de todas as outras: o orgulho e a sensualidade. Elas correspondem a dois valores metafísicos da mentalidade neopagã de nossos dias: a igualdade absoluta e a liberdade completa. Por isso afirma o Autor ser nesse desmedido anseio de igualdade e de liberdade que está a origem da grave crise de alma que atinge toda a civilização ocidental. E são também essas tendências desordenadas a raiz, ou se quisermos a espinha dorsal, das três grandes revoluções que abalaram nos últimos quinhentos anos a civilização cristã: a Pseudo-Reforma Protestante, a Revolução Francesa e o Comunismo.
Levadas às suas últimas conseqüências, as paixões desregradas, e em especial o orgulho, podem induzir o homem a ter um ódio metafísico a toda desigualdade e até mesmo à negação de Deus. Tal processo é descrito sinteticamente em Revolução e Contra-Revolução:
“A pessoa orgulhosa, sujeita à autoridade de outra, odeia primeiramente o jugo que em concreto pesa sobre ela.
“Num segundo grau, o orgulhoso odeia genericamente todas as autoridades e todos os jugos, e mais ainda o próprio princípio de autoridade, considerado em abstrato.
“E porque odeia toda autoridade, odeia também toda superioridade, de qualquer ordem que seja.
“E nisto tudo há um verdadeiro ódio a Deus.”[8]
O ateu – conclui o Autor de Revolução e Contra-Revolução – é um igualitário que, para não dizer que ele próprio é Deus, cai no absurdo de afirmar que Deus não existe.
Plinio Corrêa de Oliveira, como estamos vendo, dá importância primordial à questão do igualitarismo, não encontrando nele apenas uma questão social, como muitos pensam, mas um problema de raiz profundamente religiosa, pois, levado até suas últimas conseqüências, conduz ao ateísmo. Ele baseava sua análise no ensinamento de São Tomás de Aquino, o qual afirma ser a desigualdade querida por Deus, pois é na diversidade das criaturas e em seu escalonamento hierárquico que resplandecem as perfeições do Criador. Por isso, afirma Plinio Corrêa de Oliveira que odiar, por princípio, todas as desigualdades, equivale a odiar a Deus.
O papel do Poder das Trevas na História
Menciona acima o Autor a ação do Poder das Trevas sobre as paixões, atiçando-as contra a Lei Moral. É este também um importante pressuposto de seu pensamento, desenvolvido mais amplamente nos seus comentários à encíclica de Leão XIII, Annum Ingressi, de 19 de março de 1902, a seguir transcritos:
“De fato, a Igreja ensina que o demônio recebe de Deus o poder de agir sobre nossa sensibilidade, exasperando nossas paixões desregradas, toldando com isso nossa inteligência e solicitando para o mal nossa vontade.
“Assim, os efeitos do pecado original são, por si mesmos, poderosos aliados do demônio, e podem ser instrumentos sobre os quais ele age à maneira de um pianista sobre o teclado, para obter os sons – melhor dizendo, a cacofonia – que deseja.
“Os efeitos do pecado original, que são desregramentos, não podem ter senão resultados desencontrados. O demônio, pelo contrário, é capaz de planos articulados. Ele pode receber permissão de Deus para tentar individualmente as almas, por meio de insídias sabiamente urdidas, assim como para suscitar escolas filosóficas, teológicas, políticas, sociais, econômicas, artísticas, capazes de empolgar multidões e perder nações inteiras. Pode, do mesmo modo, suscitar guerreiros, estadistas, legisladores que destruam ou subvertam nações, implantem leis iníquas, proscrevam todo o bem e favoreçam todo o mal.
“Os homens morrem, o demônio não. Em tese, nada obsta que dure séculos, em determinadas condições, o poder de influenciar a fundo o desenvolvimento de um ciclo histórico, a formação e progresso de vícios e heresias, etc.
“Essa ação será possível na medida em que Deus permita. Vencerá ou será vencida, na medida em que o homem queira ou não queira servir-lhe de instrumento.”[9]
O sentido de uma existência
Plinio Corrêa de Oliveira estava convicto de que, para vencer a crise moral do Ocidente, cujas causas ele descreveu sinteticamente, se tornava necessário denunciar os erros metafísicos da Revolução[10], ou seja, o igualitarismo e o anseio desmedido de liberdade, molas propulsoras desse processo que vem se desenvolvendo e agravando ininterruptamente desde a Idade Média até nossos dias.
Toda a sua atividade como parlamentar, professor universitário, jornalista, escritor e, sobretudo, como líder católico, foi impulsionada por esse objetivo, o qual lança uma luz esclarecedora sobre as razões de sua atuação pública e de suas tomadas de posição face aos problemas de seu tempo.
Seu primeiro livro, Em Defesa da Ação Católica, tinha entre outros o intuito de alertar sobre determinadas tendências igualitárias nos meios católicos que pretendiam diminuir a autoridade da Sagrada Hierarquia dentro da Igreja.
Em inúmeras ocasiões propugnou pela indissolubilidade do matrimônio, contra a qual os anseios desenfreados de sensualidade investiram impetuosamente, ao longo de todo o século XX, abalando a instituição da família.
A defesa que empreendeu do instituto da propriedade privada, um dos últimos resquícios de desigualdade na sociedade temporal, não tinha outro objetivo senão o de deter o avanço do vagalhão igualitário, o qual vinha nivelando tudo e apagando os reflexos de Deus na sociedade.
Por fim, seu último livro, Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana, é também contra a ofensiva igualitária. Nessa obra, ele procura prevenir as elites ocidentais, recordando-lhes o importante papel, à maneira de um sacerdócio, que elas devem desempenhar na sociedade temporal, sendo nesta exemplo de perfeição em todas as atividades que exerçam.
Fé no triunfo da Igreja sobre o mal
Plinio Corrêa de Oliveira viveu numa época na qual a crise moral do Ocidente chegou a um auge que muitos julgariam inatingível quando o século XX despontou no horizonte, envolto nas ilusões de um ilimitado progresso tecnológico e científico.
Desde sua juventude, ele discerniu essa grave crise que abalava o mundo ocidental, e a partir do momento em que ingressou no Movimento Católico, não cessou de denunciar os males de seu tempo e oferecer a solução para debelá-los. Sua longa existência, toda ela dedicada ao apostolado no campo do laicato, foi consumida inteiramente com esse objetivo.
Atribui-se a São Tomás de Aquino a afirmação: temo o homem de um só livro.[11] Apesar de a obra escrita de Plinio Corrêa de Oliveira não se reduzir a este caso, não deve ela ser vista apenas como uma abundante e requintada produção literária que poderá interessar ao historiador, como ao sociólogo ou ao teólogo. Ela é, primordialmente, um testemunho das insignes virtudes de seu Autor, sobretudo de sua Fé inabalável. Em primeiro lugar, Fé em todas as verdades ensinadas pelo Magistério da Igreja. Mas também, Fé na centralidade da própria Igreja, na História. E Fé, por fim, no triunfo da Esposa Mística de Cristo sobre todas as crises e todos os seus opositores, em nossa época.
Convicção esta que ele professava com ufania, como se pode constatar no excerto do discurso a seguir transcrito – proferido na sessão solene da Semana Eucarística de Campos, em 23 de abril de 1955, diante do Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jayme de Barros Câmara, e de numerosas personalidades eclesiásticas – que nos servirá de conclusão a estas linhas:
“No momento em que a iniqüidade está chegando ao seu cúmulo, nesse momento, a graça e a misericórdia chegam ao seu cúmulo, também. À fortaleza do vício e do mal, Deus opõe uma indômita fortaleza do bem. O triunfo da Igreja Católica se dará no mundo moderno. Esse triunfo se dará certamente pelo embate gigantesco entre as forças pequenas do bem e as forças enormes do mal. Mas nós veremos talvez, e, a meu ver, provavelmente nos próprios dias em que existimos, nós veremos este fato: que a Igreja há de marcar uma das maiores vitórias de todos os tempos. E essa vitória será a vitória da Sagrada Eucaristia, fonte de graça aberta para o mundo, por intermédio da intercessão de Nossa Senhora que rezando sempre a Jesus Eucarístico consegue para nós as graças de que precisamos.”[12]
São Paulo, 8 de dezembro de 2008
Solenidade da Imaculada Conceição
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
[1]) Esprit de M. Olier, t. II, p. 346, apud, Ad. Tanquerey, Compêndio de Teologia Ascética e Mística, Apostolado da Imprensa, Porto, 1955, p. 721.
[2]) Exemplar mecanografado, guardado em meu arquivo pessoal, p. 1.
[3]) “Os ene-a-ene-e”, “Folha de S. Paulo”, 5/4/1970.
[4]) Epist. CXXXVIII al. 5 ad Marcellinum, cap. II, n. 15.
[5]) Le Démon du Midi , Plon, Paris, 1914, vol. II, p. 375.
[6]) Auto-retrato filosófico, p. 9.
[7]) Revolução e Contra-Revolução, São Paulo, 1993, pp. 34-35.
[8]) Revolução e Contra-Revolução, São Paulo, 1993, pp. 62-63.
[9]) “O Adversário”, revista “Dr. Plinio”, nº 56, novembro de 2002, p. 30.
[10]) Pelo termo Revolução o Autor não designa esta ou aquela revolução, em concreto, mas sim o processo de exacerbação das paixões da alma humana, especialmente o orgulho e a sensualidade (suas molas propulsoras), iniciado no fim da Idade Média e que deu origem às três grandes revoluções do Ocidente: Protestantismo, Revolução Francesa e Comunismo.
[11]) Timeo hominem unius libri.
[12]) Anais da Semana Eucarística de Campos – 17 a 24 de abril de 1955, pp. 101-113.
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