Introdução histórica
10 de fevereiro de 1919 – Começam as aulas no Colégio São Luís
Quando fiz dez anos, pedi a meus pais que me matriculassem no Colégio São Luís, dos jesuítas.
Fui levado a tal solicitação pelas promessas de um primo. Este, já aluno desse colégio, insistiu comigo para que eu também me inscrevesse ali. Como é natural, perguntei-lhe a respeito do que eu encontraria no São Luís, e suas explicações me agradaram muito. Em certo momento de nossa conversa, ele, na tentativa de me fazer decidir, disse que no pátio de recreio havia muitas árvores, nas quais os alunos podiam subir para comer frutas. Era uma idéia que me pareceu bem atraente…
Indaguei-lhe:
– Mas, que tipo de frutas existem lá?
Ele, muito esperto, em vez de responder, perguntou-me:
– Quais você imagina que há?
– Cerejas?
– Claro!
– Então eu entro para o São Luís! – concluí, decidido.
Formado num ambiente conservador
Para se entender o que ocorreu comigo nos meus primeiros tempos de colégio, é preciso considerar as transformações pelas quais estavam passando os costumes naquela época. Em virtude da crescente influência exercida pelo cinema norte-americano, tivera início uma profunda divisão: de um lado, os hábitos antigos, fruto da tradição, que visavam a realçar nas pessoas a grandeza; e, de outro lado, os mais recentes, em cujos trajes, modo de se apresentar, de falar e de saudar, insinuavam-se a banalidade e a falta de polidez.
Eu cresci numa dessas casas de outrora, amplas, silenciosas e tranqüilas, onde um menino podia brincar com largueza, mas dispondo igualmente de tempo para se recolher e se entregar à reflexão e ao pensamento. Hábitos nos quais, aliás, cedo procurou me formar D. Lucilia. Com ela aprendi, outrossim, as maneiras corteses, afáveis, atenciosas.
Em suma, fui educado num meio especialmente conservador, em que todos os familiares se mantinham, de um modo ou de outro, dentro de uma clave tradicional, numa existência calma e compassada. De modo profundo, afeiçoou-se minha alma às qualidades e características desse ambiente, pelo que, desde pequeno, fui muito cerimonioso, gostando de tratar os outros com respeito e levando-os a me respeitarem também.
O choque de mentalidades
Naquele primeiro dia, tive inicialmente a impressão de que tudo correria com normalidade, tendo participado com interesse da aula inaugural, tomando notas das palavras do professor. Saímos em fila para o recreio, formamo-nos no pátio, e um padre deu um longo apito… Tudo mudou de repente: alguns meninos se puseram a correr freneticamente e, num piscar de olhos, os vários campos se encheram de times de futebol. Fiquei atordoado ao ver-me cercado de barulheira, algazarra, de gente pulando, se empurrando, contando certo tipo de piadas e tudo o mais. Alunos davam rasteira em outros, ou faziam pior, como um conhecido meu que, logo de início, atirou-me uma pedra, gritando: “Você está arranjado demais!”
Chocou-me, sobretudo, a familiaridade no trato.
E as cerejas? Não vi cerejeira alguma. Procurei meu primo, a fim de lhe cobrar essas árvores, e ao vê-lo passando com um grupo de colegas, agarrei-o:
– Você me disse que havia cerejeiras.
– Aparecem logo! – foi só o que encontrou para me responder.
Enfim, não existiam as frutas que eu tanto cobiçava. Não joguei futebol, nem tomei parte nas diversões do recreio. Em vez disso, comecei a prestar atenção nesse mundo novo, em tudo diferente daquele com o qual eu estava habituado. Sentia-me um corpo estranho, malvisto, mal compreendido.
Com o passar dos dias, na medida em que fui conhecendo melhor o colégio, essa diversidade se tornava mais patente, e me levava a entender também a completa oposição entre os padres e certos meninos: aqueles ensinavam uma maneira de proceder respeitosa, educada e moralizada, e esses meus colegas comportavam-se de modo contrário.
A graça de ser um rapaz casto e enérgico
Havia na capela do colégio um quadro milagroso, de Nossa Senhora do Bom Conselho. Fora ele trazido para nossa Pátria, após o fechamento da Companhia de Jesus no séc. XVIII, por um sacerdote brasileiro, remanescente desta Ordem religiosa. Depois de um tempo de exílio na Itália, retornou ele ao Brasil com a preciosa relíquia, e ainda viveu por longos anos aqui, rezando ardentemente pela restauração da Companhia e pela volta dos filhos de Santo Inácio ao Brasil. Contudo, faleceu sem ver realizado seu desejo.
Quando, em 1868, os inacianos reiniciaram suas atividades em nosso País, abriram seu colégio – o São Luís – na propriedade daquele antigo jesuíta, situada em Itu, interior de São Paulo, sendo aquele quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho entronizado na capela do novo educandário. Quando este estabelecimento foi transferido para a cidade de São Paulo, em 1918, o quadro o acompanhou.
Eu rezava muito diante dessa imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho, que, na minha época, ficava no altar-mor da antiga capela do colégio. A Ela recorria amiudadas vezes e, não raro, com aflição, devido às perigosas circunstâncias que então ameaçavam minha integridade espiritual.
Com efeito, meu temperamento cordato me levava sempre a estar em conformidade com todo mundo, de modo a evitar brigas. Assim, entrei para o Colégio São Luís como cordeiro inocente, pronto para ser tosquiado… E, de fato, durante o primeiro ano letivo, inúmeras vezes fui objeto de riso e zombaria. Até que, refletindo sobre minha situação, Nossa Senhora me concedeu a graça de compreender o seguinte: “Ou eu deixo de ser mole, ou passarei a vida apanhando. Ora, não desejo apanhar, nem quero me perder. Logo, tenho de ser enérgico! Mas, como vou ser assim? Não tenho zanga, sou a personificação da calma! Onde vou tirar de mim essa energia?”
Maria Santíssima, porém, misericordiosa, paciente, bondosa para comigo, veio em meu socorro, infundindo em minha alma o dom mais precioso que tive na vida: a devoção a Ela, associada à compreensão de que, por mais mole e inútil [que] eu fosse, Ela me queria bem. Desde que eu Lhe pedisse, conseguiria duas graças: primeiro, a de perseverar na pureza; em segundo lugar, a de ser um verdadeiro leão de energia.
Imbuído dessa confiança, dirigia-me a Nossa Senhora, dizendo: “Minha Mãe, considerai como sou mole. Vejo que Vós, no alto do Céu, sois ao mesmo tempo virginal e forte. Eu quero ser puro e forte como Vós. Revesti minha alma de santa indignação, de força, de coragem, de lógica, de coerência. Erguei-me, porque não consigo ficar de pé.”
E Aquela que a ninguém desampara ouviu minhas preces. Aos poucos fui adquirindo maior vigor de espírito, à maneira de um pássaro que enceta seus primeiros vôos, ainda hesitantes, algumas vezes frustros, até o momento em que se alça e começa a fender os ares, meio tocado pelo vento, meio pelas próprias asas. Assim fui crescendo em energia, um tanto incentivado por justas indignações, um tanto pela firme resolução de não me deixar escangalhar pelos outros.
Afinal, dei início aos meus vôos, que nunca mais cessaram. Celestial favor este, que eu devo à Mãe do Bom Conselho.
Apreensão de D. Lucilia
Entretanto, essa maior envergadura de força espiritual implicava num grave corolário no modo de me apresentar. Quer dizer, cheguei à conclusão de que minhas maneiras muito afáveis eram completamente inviáveis na atmosfera do colégio. Se eu quisesse permanecer inteiramente fiel à moral e aos ideais que eu amava, deveria impor-me ao ambiente, tomando atitudes mais rudes, fora de meu círculo familiar.
Operei essa mudança deliberadamente, de um dia para o outro.
Anos depois, já bem idosa, mamãe me contou a imensa apreensão que teve a meu respeito, por ocasião dessa minha metamorfose. Com freqüência, na hora de eu chegar do Colégio São Luís, ela se dirigia ao terraço de casa para me esperar. Invariavelmente, me via comportar-me com calma, de modo distinto e ajuizado.
Ora, certo dia ela me viu entrar dando um pontapé no portão de casa, carregando sob cada braço uma pilha de livros e cadernos mal-arranjados, e subir correndo, de dois em dois degraus, a longa escadaria. Ela pensou consigo: “Aí está, ele já começou a mudar, e agora ninguém sabe onde isto pára.”
Não sendo aquelas ações más em si – empurrar portão com o pé não é pecado, nem o subir uma escada de dois em dois, nem tampouco o carregar sem compostura uma pasta de livros –, D. Lucilia não teve matéria para me manifestar sua preocupação. Ela pensou: “Não comentarei nada. Vou esperar que ele diga ou faça alguma coisa ruim e, nessa hora, agirei com energia.”
Mamãe passou alguns dias na apreensão, prestando extraordinária atenção em mim, e percebeu que eu, em casa, continuava inteiramente o mesmo! Meu comportamento na volta do colégio eram apenas maneiras exteriores. Seja como for, a preocupação dela derivava de uma análise muito fina, pois significava, no fundo, o seu receio de que o filho estivesse aderindo à vulgar mentalidade hollywoodiana.
Contemplando o vôo do urubu
Desse meu tempo no São Luís, porém, não guardo apenas recordações das lutas interiores e difíceis circunstâncias pelas quais passei. Conservo, outrossim, interessantes impressões que muito contribuíram para meu desenvolvimento espiritual.
Por exemplo, através das janelas da sala de aula era possível descortinar uma ampla visão do céu e áreas adjacentes. Com freqüência, durante o árduo estudo, meus olhos fugiam para a ponta das árvores verdes balouçando ao capricho dos ventos, e depois para as nuvens e o azul do infinito.
Às vezes eu vislumbrava um urubu cortando o firmamento. Não sabia tratar-se de uma ave feia, como depois me foi dado constatar. Dele eu conhecia apenas a linda silhueta, seu estupendo jogo de asas e o vôo elegantíssimo. De determinado ângulo, uma de suas asas me parecia curta e a outra, longa. Quando o pássaro virava, era esta asa que crescia e a anterior parecia diminuída. Agradava notar, sobretudo – a mim, pouco amigo do esforço físico – que o urubu planava e não voava, ao sabor das correntes de ar.
Diante desse espetáculo da ave deslizando pelo azul do céu, eu refletia: “Como deve ser gostosa a existência do urubu! E como seria deleitável se, a esta hora, pudesse eu me desprender desta carteira, deste vigilante, deste papel em que, com uma letra perenemente feia, estou rabiscando coisas ou deixando cair gotas de caneta tinteiro, e sair voando pela janela! Elevar-me no ar como o urubu, morar dentro do azul, sentar-me ou dormir um pouco sobre as nuvens, e brincar com o vento de tal maneira que ele me levasse delicadamente para onde eu quisesse, ou me permitisse desfrutar do prazer de fendê-lo sem grande esforço! Isso seria para mim um entretenimento muito agradável, num mundo de sonho, que não existe…”
Dali a pouco, eu precisava estar de volta à dura realidade da vida, porém um tanto mais imbuído da idéia de que o espírito humano fora criado para se erguer às alturas e nelas plainar, como a elegante silhueta do urubu.
Benéfica influência da Companhia de Jesus
Uma preciosa vantagem que me adveio do contato com os jesuítas, durante meu curso secundário, foi a grande influência da mentalidade de Santo Inácio de Loyola, exercida sobre mim, e das qualidades da Companhia de Jesus. Graças à Santíssima Virgem, essa influência penetrou-me a fundo na alma. Constituiu-se para mim um todo harmônico entre a minha tradição familiar e a tradição de uma Ordem Religiosa especificamente combativa.
De fato, um dos inestimáveis frutos que colhi no convívio com a Companhia foi esse influxo da verdadeira combatividade cristã, que robusteceu em mim a personalidade militante, a lógica, a perspicácia, a penetração, a resistência. Tudo fundamentado na sapiencial norma estabelecida por Santo Inácio, de agere contra: ir de encontro às nossas más inclinações, bem como enfrentar nossos adversários, combatendo sem esmorecimento.
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