Lembranças de um convívio
Recordando o relacionamento que tivera com sua mãe, principalmente no período da formação de sua mentalidade, Dr. Plinio comenta, na presente conferência, o papel exercido pelo convívio com Dona Lucilia, sobretudo, em seu gosto pela reflexão.
Jamais me esquecerei do olhar de mamãe. Em Dona Lucilia, voz e olhar faziam um todo só com o trato, mas o olhar era mais expressivo do que a palavra. Inúmeras vezes peregrinei dentro desse olhar e, no fim de sua vida, não havia recanto do olhar dela que, como bom peregrino, eu não tivesse conhecido.
Seus olhos, nem bonitos nem feios, eram de um castanho tendente ao escuro. Quando ela olhava de um certo modo, aquele castanho dava a impressão de estar habitado por luzes, proporcionando-lhe um brilho que o levava quase ao castanho-claro. Era a expressão de um determinado estado de espírito. Outras vezes acontecia o contrário. Se ocorresse algo muito sério e grave, com muitas conseqüências, ela fixava a atenção de maneira tal que as meninas de seus olhos ficavam nitidamente pretas.
Imaginem um cristal convexo com uma tonalidade “X”, através do qual se vê uma catedral. Tem-se a impressão de que tal tonalidade ilumina toda a catedral e a transforma em uma feeria com vários matizes dessa cor. Suponham que o cristal se torne côncavo; a luz brinca em sua concavidade, causando outras sensações. Esse é o olhar humano inocente. O olhar de mamãe era assim.
Podemos julgar que o olhar profundo é aquele que olha para nós pensando em outra coisa. Isso na melhor das hipóteses é uma das profundidades do olhar. Há duas espécies de olhar profundo: um é o que vê, outro é aquele que dentro do qual se olha fundo. Em geral, naquele em que se olha fundo, vê-se algo que olha profundo. Conforme as horas, as circunstâncias, o olhar de Dona Lucilia mudava, causando-me a impressão de um vitral que passava de convexo a côncavo.
Truculência e respeito
Nosso relacionamento era mais ou menos análogo ao dos sons de um órgão e os ecos por este produzidos no templo. Ela era a música e eu o eco. Tudo quanto havia nela ecoava em mim de modo muito profundo, mas nem tudo que existe em mim ecoava nela. Não por discordância, mas em razão do número de gamas. Além da truculência, há uma série de outras coisas no meu modo de ser que não era o dela. Fui desenvolvendo tudo isso sem lhe dar explicações, mas ela ia vendo. Apenas em relação à minha truculência mamãe fazia observações, não censurando, mas ponderando. Quanto ao resto, ela foi observando, presenciando, sem nunca me dizer uma palavra.
Dessa forma eu deduzia que ela, embora não fosse assim, compreendia que seu filho o devesse ser. Quanto à truculência, às vezes mamãe ficava um tanto alarmada com algumas coisas que eu dizia. Por exemplo, certo dia, ao sentar-me à mesa, provei a manteiga e notei que estava com gosto de sebo. Pela minha fisionomia, ela percebeu que eu não havia gostado.
— Meu bem, não está boa a manteiga?
Eu lhe respondi:
— Está com gosto exato de graxa de trilhos!
Ela ficou quietinha, como quem diz: “Meça as palavras…” E eu, ao mesmo tempo indignado com a manteiga e encantado com mamãe, apreciava sua reação que era de um tato exato. Ela não se zangava, nem procurava defender a manteiga. Então, com um tom mais baixo, eu disse:
— Meu bem, é uma graxa perfeita…
Mudei de assunto e pouco depois ela estava conversando alegre.
Com freqüência, eu manifestava truculências — evidentemente sem nunca faltar com o respeito e o afeto para com ela.
Seriedade
que impressionava
Dona Lucilia não era de maneira alguma uma mãe abobada, e sim coerente. Com ela “dois mais dois era igual a quatro”. Se não houvesse esta nota dominante, eu não gostaria dela como gosto.
Lembro-me de que, quando eu era mocinho, na época de formação do caráter, mamãe me dizia o seguinte: “Os tempos são muito ruins e você ainda é moço. Ninguém sabe do que é capaz uma pessoa que se extravia. É bom você saber que eu preferiria vê-lo morto a desencaminhado”.
Ela daria a vida para que eu não morresse, mas preferia ver-me morto a colocado numa situação de pecado mortal, em ruptura com a Igreja. É assim que se deve ser. A seriedade dela me impressionava profundamente.
Isto me ajudava a refletir, pois, sendo muito lógico, eu apreciava o encadeamento do pensamento, chegando a cogitações como a seguinte: “É belo que ela seja intransigente e leve a intransigência até o fim do caminho! Esta atitude demonstra como ela é integra. E às pessoas que são íntegras deve-se querer inteiramente”.
Refletindo sobre
a intransigência de
sua mãe
A partir disto eu fazia reflexões doutrinárias: “O que é a intransigência? Se nela é bela, também será em outros. Então, há algo intrínseco na intransigência que torna bela minha mãe. Logo, há algo para além dela que lhe dá a beleza e vale mais do que ela. Isso tem que ser definido doutrinariamente”. Porém, eu percebia não bastar definir a intransigência, pois, uma vez elaborado o conceito, ou essa qualidade existe de modo absoluto em uma outra ordem de coisas que não é a nossa, ou a definição nada significa. E pensava: “Para entender o que é, preciso ter união de alma com mamãe, a fim de ser intransigente como ela”.
Ou seja, minha alma estava voltada para algo que eu não sabia ser o Céu e, portanto, Deus. Deus não corresponde a uma definição da virtude que existe fora d’Ele e com a qual procura se conformar. Ele é a personificação de todas as virtudes.
Esse foi um grande dia de minha vida, em que descobri isso, a propósito de um exemplo tão simples como uma mãe dentro de casa, comentando uma manteiga, contando uma história de família ou tratando de algo doméstico.
A vida de mamãe era marcada por um modo de ser que convidava à reflexão doutrinária e ao ato de Fé. Do mais profundo de minha alma, agradeço-lhe tudo que ela fez por mim.
Com Dona Lucilia aprendi a fazer algumas reflexões e sobretudo a ter enorme gosto de passar da impressão para a reflexão. De maneira que não era preciso cortar a impressão para começar a refletir; a reflexão se evolava da impressão, como o perfume sai de uma flor. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/8/1980)
Revista Dr Plinio 139 (Outubro de 2009)
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