Montanha escarpada
Em certo momento, comecei a notar em mim mesmo, com grande surpresa, as primeiras reações violentas de medo e de preguiça, que me levavam ao contrário daquilo que eu desejava. O meu temperamento se manifestava oposto ao que as condições exigiam de mim. Faltava-me força para reconhecer a existência da Revolução e para carregar, na minha alma, o peso do arcabouço enorme das minhas convicções, teses e ideias, à maneira de um escargot1 que leva sua concha.
Por outro lado, os prazeres legítimos e honestos da vida me agradavam enormemente e despertavam em mim o desejo de levar uma existência sem pecado, mas, também, sem sacrifícios. A falta de vontade de combater, o horror a problemas complicados que me atazanassem o espírito, e a vontade de levar uma vida despreocupada e contente vinham a mim como águas que me cercavam de todos os lados, cristalinas, adocicadas e deliciosas.
E não bastava fechar a boca para essas águas, mas era preciso fabricar em mim uma energia que eu não tinha e criar um estado de espírito que não possuía.
Tive a sensação de que algo em mim funcionava mal e pensei: “Como é isto?! Alguma coisa está falhando!”
Um guerreiro débil
Nesses momentos terríveis, a minha coragem e o meu ânimo desfaleciam. Sentia verdadeiro pânico de vir a ser como não queria, de deixar-me arrastar pelas circunstâncias para onde não devia ir.
De maneira que a minha situação seria como a de um guerreiro revestido de sua armadura de metal, com olhar muito lógico e querendo, de modo deliberado, fazer a guerra, mas, por paradoxo, sentindo-se extremamente débil. Ele começa a mover-se e percebe que deve travar uma luta na qual todos os azares e imprevistos se voltam contra ele e a favor dos adversários.
Entretanto, eu percebia que bastava dizer uma palavra, dar um sorriso em determinada circunstância ou entrar em certa roda de amigos; bastava ceder num ponto, e o céu plúmbeo se transformaria para mim num céu róseo… Em poucos minutos teria resolvido o problema que me causava tanta infelicidade. Todas as portas estariam abertas para mim e eu teria o que quisesse, literalmente!
A tentação de largar tudo
Lembro-me de mim mesmo diante de um espelho, lavando as mãos com sabão de coco, o qual era sinal de certa largueza – tão simples era a vida em São Paulo! No local onde eu estava, todo branquinho, entrava uma luz muito clara, dando uma ideia da vida fácil e burguesa para a qual eu era convidado, se não me entregasse ao ideal que desejava servir. E perguntava a mim mesmo: “Quero servi-lo ou não? Por que eu não me deixo levar por minhas espontaneidades, livre desse carcan2? No cumprimento desse dever, não há sossego nem tranquilidade! Não posso dar um pontapé nele e seguir o caminho que desejar? Essa batalha que eu me proponho é uma amolação sem fim, um esforço louco, tão difícil e desagradável, que eu não aguento! Sei que tenho culpa, mas é assim!”
Ah! Que vontade de capitular! Que tentação de largar tudo!
Não se tratava de uma objeção doutrinária contra o meu dever, mas, pura e simplesmente, da tentação de jogá-lo de lado como um fardo, porque ele parecia tornar a minha vida impossível.
Um problema cem vezes repetido
Em ocasiões de dor muito profunda, essa ideia se me apresentava quase obsessivamente e eu notava em mim um movimento de alma que parecia dizer-me: “Como é desagradável pensar nisso… Não pense! Deixe correr a vida e você vai agindo como souber…”
Outras vezes, eu fazia a seguinte reflexão: “Não seria mais agradável fingir que pactuo com os maus? Posso renegar, na aparência, aquilo que no interior de minha alma eu admiro, e levarei uma vida quão agradável e cômoda!”
Ora, eu não podia sequer tomar a sério essas hipóteses, nem dizer: “Quem sabe?” E, graças a Deus, nunca o fiz. Nessas ocasiões, imediatamente respondia a mim mesmo: “Mas, que contradição! Como pode ser isto? Onde está a Cavalaria? Onde está a fidelidade? Você não percebe que, se fingir uma capitulação, daqui a pouco capitulará de fato? E que, portanto, isso é uma mentira que você está pregando a si mesmo?! Que trevas entrarão em minha alma?! Isso não pode ser! Tenho de ser fiel ao meu dever! Ou seja, diferenciar-me dos demais, aceitar levar toda a carga do ódio dos outros contra mim, levar uma vida de trabalho, de preocupação, de luta e de contrariedade!”
Esse problema se repetiu cem vezes para mim, de outras maneiras, e outras tantas tive de resolvê-lo pela raiz.
Cavalheiro altivo
Por exemplo, durante as brincadeiras no jardim de casa, às vezes parecia haver dentro de mim uma espécie de mudança de clima, como se o meu dinamismo, a minha vitalidade e toda a minha concepção da vida instantaneamente variassem, trazendo-me uma vontade tremenda de me apalhaçar, de bater, fazer barulho e armar encrencas; de me pôr na atitude de um moleque e de gozar das coisas vulgares e banais, tendo uma verdadeira delícia em ser o contrário do que eu era e dizendo a mim mesmo: “Expanda-se! Por exemplo, aqui, neste jardim, saia em disparada, apanhe uma pedrinha e jogue-a numa senhora! A Fräulein ficará zangada, mas você pode resistir a ela!”
Mas logo rejeitava a tentação e permanecia na minha atitude de cavalheiro altivo. Aquela impressão passava e eu voltava interiormente ao meu equilíbrio.
Por outro lado, percebia que essa tentação se dava também em outras crianças com quem brincava. Por exemplo, estavam fazendo algum jogo ordenadamente, quando, de repente, alguém começava a “escachar” – segundo o termo que se usava no tempo –, ou seja, fazia molecagens, mostrava a língua para os outros e arrebentava com tudo, deixando o jogo num total desengonço… Eu observava aquele menino e percebia que ele estava tomado pelo mesmo estado de espírito que, de vez em quando, me atraía, o qual percorria como eletricidade várias crianças que estavam em volta. E tinha a impressão de que, a partir desse momento, se essas crianças se deixassem arrastar por aquilo, algo lhes conferia certo domínio e uma possibilidade de maltratar quem não fosse assim, de modo quase irresistível.
Rejeitar a ilusão do meio-termo
Percebi que uma outra cobra se levantava diante de mim. Não era mais aquela que me picava de modo direto, convidando-me para uma ação imediatamente pecaminosa, mas era a tendência a achar que as meias concessões ao mal, furtivas e de soslaio, podiam ser feitas, pois eram bem gostosinhas e não constituíam pecado mortal.
“Por exemplo – pensava –, um ato de orgulho bem consciente, não! Mas um orgulhinho meio disfarçado, para fazer-me de inteligente ou de fino, não parece ter tanta importância! Bem… Isso desagrada um tanto a Deus e pode levar-me ao Purgatório, mas depois acabarei indo para o Céu… Ele ama a tal ponto a alma em estado de graça, que é vontade d’Ele que ela O receba na Sagrada Eucaristia. Então, não há tanto mal no pecado venial!”
Mas eu percebia logo que, após uma concessão assim, a vontade de me entregar à má tendência seria muito mais forte. Não teria resistência possível e acabaria por degringolar. E vinha-me a ideia: “Esse modo de guardar a virtude significa, a bem dizer, a nostalgia do pecado mortal, e essa nostalgia se chama pecado venial. Isso não! Devo evitar inclusive o pecado venial! Logo, ou me torno ótimo, ou não serei nada. Ou me mantenho no mais alto píncaro da virtude, ou cairei na mais baixa lama do pecado. Pensar que existe o meio-termo é uma ilusão criminosa que não posso entreter!”
Entendi que eu era demasiado fraco para não ser sumamente forte. Mas, para isso, era preciso adquirir o hábito de vigiar-me continuamente, sem dar-me quartel, pois bastava fechar os olhos para que se apresentasse, de contrabando, a cobra da meia concessão. Chegava à conclusão de que a chave de minha alma era a severidade.
Acusador implacável de si mesmo
Se eu não fosse severo comigo, a minha alma seria como um campo onde entra toda espécie de serpente, de porco, de tudo, fazendo estragos na plantação. Em menos de um mês, eu estaria perdido.
Em consequência, passei a ter uma ideia de mim mesmo como um saco de defeitos. E refletia: “Você é tão severo em criticar os outros! Onde está a sua severidade consigo mesmo? Em você, Plinio, dorme um poltrão, um medroso, um preguiçoso incapaz de qualquer esforço, pouco generoso e desleal para consigo mesmo, idolatrando o próprio sossego, e esse indivíduo vai lhe fazer toda espécie de ciladas. Se você não o algemar, ele porá as algemas em você! A coerência exige que você reconheça seus defeitos nas figuras execráveis, nos animais abjetos do inferno da Divina Comédia, de Dante3! Eles moram em você, e você valerá na medida em que os tiver presos! E, primeiramente, seja leal consigo mesmo! Nada de mentiras para si! Recuse a má inclinação de encontrar as suas atenuantes e transforme-se no acusador implacável de si mesmo, pois o seu pior inimigo se chama Plinio Corrêa de Oliveira! Agora, comece!”
O exemplo das minhocas
Lembrava-me de remotos tempos em que, às vezes, brincava na terra com balde e pazinha. Num canteiro do jardim de casa, revolvido pelas mãos vigorosas do seu Joaquim, o jardineiro português, eu podia produzir alguns acontecimentos geográficos sem deitar muito esforço, e minha musculatura de cinco ou seis anos se havia aplicado a isso. Impressionava-me ver que, de repente, do fundo inóspito daquela terra, algo se revolvia: abria caminho uma minhoca e punha a cabecinha do lado de fora. Cabeça que, aliás, me causava horror, pois eu tinha a ideia de que toda cabeça deveria ser mais larga do que o pescoço e não podia ser a continuação do corpo, sem ombros, com uma ponta onde estava uma boquinha. Para mim, aquilo não deveria existir!
Imediatamente liquidava com ela, ora executando-a com minha pá, ora por meio de uma sapecada com a parte inferior do balde, consolidando a terra sobre a cabeça dela e fazendo-me a ilusão de que assim lhe fabricava uma sepultura.
Então, nas lutas de minha vida espiritual, percebi que algumas tentações vinham à semelhança de fortes ventanias, como aquelas que, às vezes, sopravam pela Alameda Barão de Limeira. Mas outras vinham à maneira de minhocas: no fundo de mim mesmo, no subsolo misterioso do meu próprio espírito, eu sentia que alguma coisa se remexia. Prestava atenção: era a tentação, que parecia pôr a sua cabecinha para fora, dizendo: “Quer tal coisa?”
Compreendi então que existiam dois modos diferentes de combater: um era bater a janela e livrar-se do vento; outro era liquidar a minhoca. Havia um denominador comum nas duas táticas: em ambos os casos era necessário agir com força, mas, no segundo, eu devia fazer face a toda a “bicharada subterrânea” que ia aparecendo, pois esmagava aqui e ela reaparecia mais adiante… E pensava: “Ó tentações malditas e plurimorfas! Como nasceis no subsolo de minha alma?!”
O combate do homem contra o polvo
Naquele tempo, já existiam as histórias em quadrinhos. Lembro-me de ter lido uma sobre certo pescador de pérolas, bem como de ter assistido a um filme sobre o mesmo4.
Ele havia descido ao fundo do mar, apenas com um punhal, para buscar pérolas e depois subir à tona, quando encontrava, de repente, um polvo que acabava de sair dentre os rochedos e o olhava fixamente.
Então, dava-se o combate corpo a corpo contra esse animal. Aparecia a cabeça do polvo – bola viscosa, imunda e repugnante – e os tentáculos e ventosas tentando agarrar o homem, o qual cravava o punhal naquele monstro, que deitava um sangue preto e feio.
Eu tinha verdadeiro horror ao polvo, pois era, a meu ver, um ser monstruoso por definição, devido à ligação direta da cabeça com os membros, sem nada de intermediário, o que me dava ideia de desordem, desproporção e desarticulação. O modo de ele mover-se e atacar tinha as características daquilo que não é nobre: mole, indecente, lançando tinta em torno de si, sem nenhuma compostura, o oposto de um peixe-espada, por exemplo. Parecia-me uma materialização nauseabunda do demônio.
Então, o pescador e o polvo iam descendo para o fundo do mar, o qual se tornava cada vez mais obscuro.
Aquilo me deu a impressão da luta do homem contra seus próprios defeitos! A meu ver, Deus fez o polvo para simbolizar o pecado. Nós temos um “polvo” dentro de nós, chamado pecado original, cujos efeitos em certos momentos nos agridem como tentáculos na escuridão.
A poterna de Château-Gaillard
Não posso me esquecer que, nessa época de minha vida, lendo a história da batalha de Bouvines, ganha pelo Rei Filipe Augusto5, encontrei a narração do cerco de um castelo chamado Château-Gaillard.
Páginas do livro Le Moyen Âge, da coleção Cours complet d Histoire, pertencente a Plinio – Narração da batalha de Bouvines – Na leitura da narração sobre o cerco de Chãteau-Gaillard (apresentado nestas ilustrações), Plinio obteve uma lição para sua vida espiritual.
Este era muito bem defendido, mas aconteceu que o adversário achou em certa parte da muralha uma poterna6 aberta, por descuido, a qual era utilizada para o serviço de limpeza. Quando os defensores da cidadela menos esperavam, viram o inimigo dentro. A batalha estava perdida7.
Quando eu li esse episódio, veio ao meu espírito a ideia: “Se você não prestar atenção, esse castelo é você! É preciso travar uma batalha inclemente contra as poternas abertas de sua própria alma. Se fizer uma boa defesa em todos os lados, mas relaxar em algum ponto, por aí entrará o pecado venial e depois o mortal, em disparada dentro de sua própria alma! Você tem a obrigação de transformar a sua personalidade em cidadela e a sua vida em combate! Sem isso, você não será nada!
Florência e as galinhas
Às vezes, também sentia tentações de ceder à pena de mim mesmo, devido ao meu isolamento. Eu não gostava muito da história de Robinson Crusoe8, mas a comparação me acudia e sentia-me uma espécie de náufrago, abandonado na ilha da ortodoxia, sem ter sequer o pequeno “Sexta-Feira”!9
E pensava: “Pobre de mim! Isolado e sem nenhuma perspectiva de vir a ser compreendido! Robinson, pelo menos, estava só, mas eu me encontro rodeado daqueles que não me compreendem! Não é dizer que sou ignorado pelos outros, mas odiado! Que situação miserável a minha! Não há, em meu horizonte, exemplo de alguém que tenha aguentado essa infelicidade!”
Entretanto, percebia que essa tendência me levaria ao sentimentalismo e traria a destruição de minha força moral. Logo, era preciso vencê-la também. Eu não podia ter pena de mim mesmo, mas, com os olhos secos, devia conservar a serenidade. Então, reagia: “Não posso me permitir nem sequer isso!”
Lembro-me de uma comparação que eu fazia a esse respeito.
A cozinheira de casa era uma mulher com ar de soberana dominadora, mas sempre alegre, chamada Florência. As conquistas dela eram fáceis, pois se davam no galinheiro. Certa vez, a vi entrar nesse local com passo resoluto, e as galinhas imediatamente se dispersarem. Ela fitou uma, apanhou-a pelo gasnate e, já a caminho da porta do galinheiro, torceu-lhe o pescoço, antes que oferecesse resistência. À medida que ela saía, eu notava o alívio das outras galinhas. O resto era lamentável: o pescoço pendente, o sangue escorrendo pelas penas, a galinha morta e Florência triunfante!
Ela nem prestava atenção em mim, mas, do lado de fora, eu observava aquela cena, que me parecia tremenda, e fazia uma reflexão: “Florência não tem pena da galinha? Eu mesmo estou com pena… Mas, deve-se ter pena de uma galinha? Ela vai ser uma canja que eu comerei e da qual vou gostar muito. Eu não faço o papel de mole e de bobo, tendo pena da galinha? Mas, de outro lado, esta Florência não é um tanto brutal com a galinha? Como é essa história? Como acertar nisto? Eu tenho um sentimento errado ou algo na vida está errado? Não posso perguntar a ninguém, pois vão dar risada de mim, dizendo que estou louco. Então, tenho de resolver por mim mesmo”.
Creio bem que foi por intercessão de Santo Inácio de Loyola que acabei chegando à seguinte conclusão: “Se os nossos sentimentos são bons, eles devem ser agradados, mas, se não são inteiramente razoáveis, devem ser tratados como Florência trata a galinha!”
Assim, em várias ocasiões, eu “torcia o pescoço” de minha própria pena e sempre procurava raciocinar: “Este sentimento tem algo de razoável, mas é ridículo. Em geral, os animais vivem de se comer uns aos outros, pois essa é a ordem posta por Deus. Desconfio muito que as galinhas se alimentam de certos insetos, pois eu as vejo fazerem uma comilança dentro das próprias penas. Então, que bobagem é esta? Essa galinha foi feita para mim e, por isso, deve ser morta! E na hora de comer a canja, vou pensar: ‘Como foi bom matar a galinha!’”
Descobri então que, se eu quisesse, podia pôr os meus sentimentos nos eixos e, assim, evitar de me tornar sentimental. Essa ordem de raciocínios me fez muito bem para manter a virtude, pois, quem começa a ceder ao sentimentalismo deixa de se dominar a si mesmo e se torna um patife.
Se eu não tivesse sido ajudado pela graça para evitar a pena de mim mesmo, não teria tido a coragem necessária de ver até onde o mal havia conquistado a sociedade, pois, quando alguém compreende inteiramente o mal que pode habitar dentro de si e se acostuma a lutar contra ele, passa a conhecer melhor o mal que há nos outros.
Batalha contra as aparências
Naquele tempo, o bem e o mal se confundiam bastante e, em muita gente de todas as idades e de todos os meios, havia uma série de tendências más encobertas sob alguma aparência tradicional ainda boa. Em numerosos casos, não era fácil dizer se certas pessoas eram boas ou más, razão pela qual alguém poderia ser levado a pensar que o normal era aquela coexistência entre bem e mal.
Então, pensava: “Eu – que não sou tão pior do que eles – preciso travar esta batalha para ser bom. Como são eles, sem travá-la…? Se eu vivesse à maneira desse ou daquela, seria péssimo! Logo, eles também são péssimos, pois somos todos farinha do mesmo saco: criaturas humanas da mesma natureza… Ah! Cuidado! Quanta gente parece boa, mas não é!”
Então, feneceu completamente a minha antiga ideia de que todo mundo era bom, substituída pelo horror à amizade sentimental, a qual me poderia levar a considerar as pessoas como elas não eram. Eu queria romper essa tendência, arrancar a máscara dos bonachões e despreocupados, feitos da composição impossível entre o bem e o mal, e formar um juízo interno para mim mesmo: “Não terei ilusão! Muitos dizem a respeito deste ou daquele: ‘é bom!’ Eu digo: ‘é mau!’ Por exemplo, esse senhor tão elegante, fino e bem vestido; aquele modelar chefe de família, que assiste à Missa quatro ou cinco vezes por ano; aquela senhora que é uma verdadeira dama. Vou desenvolver a minha análise psicológica, fazendo uma caçada dentro dessas pessoas, até montar inteiramente as suas psicologias e compreender o mal que há nelas”.
Lembrava-me de um exemplo dado por Nosso Senhor no Evangelho: “Se vós, que sois ruins, dais coisas boas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai Celeste…!”10 E pensava: “Olha lá! Eles eram bons pais. Uma pessoa pode ter bons aspectos e ser ruim. Alguns desses bons pais iam ser deicidas depois!”
E fazia-me a pergunta: “Quem não é ruim?” Olhava para todos os lados e não podia deixar de notar que o número dos maus era enorme. Adquiri a persuasão de que, no ambiente geral, o bem era apenas uma aparência; a última brisa de um dia que já declinara ou a última claridade de uma luz que já estava além dos montes. Eu tinha de batalhar contra essas aparências, mas, sobretudo, contra a vontade de me contentar com elas, de dizer a mim mesmo que eram reais e, assim, poder levar uma vida despreocupada.
A “sofritiva” e o propósito de previdência
E refletia: “Eu noto que possuo um grande depósito de energia, o qual pode ser transformado em força vitoriosa, desde que esteja resolvido a sofrer o que for preciso. Se aproveitar esse potencial, que eu poderia chamar a minha “sofritiva” – ou seja, capacidade de sofrer –, algo me diz que vencerei. Assim eu sofrerei menos, na realidade, do que se for mole e me deixar esmagar. Poderei ter insucessos, se Deus, em seus desígnios, o permitir para me provar, mas por culpa minha não será! Então, que devo fazer? Percebo que, quando não prevejo o que pode acontecer, tudo acaba sendo pior. No total, a previsão torna mais fácil e menos pesada a vida do lutador”.
Naturalmente, eu detestava essa previsão do pior, mas tomei a resolução: diante de toda hipótese desagradável, eu deveria prever tudo que poderia acontecer e preparar-me para isso. Desse modo, se a previsão se confirmasse, eu não passaria pelo susto da surpresa e, se não encontrasse em meu caminho o pior, mas apenas o menos péssimo, a minha situação ainda seria vantajosa e eu me pouparia algum sofrimento.
Inclusive, às vezes me punha o seguinte problema: “Se acontecesse tal e tal coisa agora, você teria coragem de enfrentar? Examine-se a si mesmo!” E sentia que não encontraria em mim a força que tal circunstância exigiria.
Essa era uma pergunta mal calculada, pois Deus concede graças extraordinárias, nas situações de provação extraordinária. Mas eu pensava: “Está vendo? Nem isto! Você é um pulha! A força é algo que a pessoa extrai de dentro de si mesma, como o dono de uma jazida extrai dela o metal de que precisa!”
Desse modo, acabei por me tornar planejador, adquirindo uma qualidade que era o oposto da minha tendência natural. Assim construí a minha previdência.
Uma nova força de impacto
Também tive de fazer uma espécie de reajuste interno em mim mesmo, sob outro aspecto.
A minha relutância em andar e em estar de pé, decorrente do meu desvio na coluna, acentuou-se muito com o tempo e me tornava os movimentos lentos e penosos. Eu, por falta de discernimento, sem nunca relacionar a causa e o efeito, chamava esse mal-estar de preguiça, e entendi que essa tendência tinha de ser vencida através de uma vida ativa. Porém, isso só era possível se eu entrasse no ritmo acelerado que todo mundo começava a adotar. Por exemplo, tomar o bonde correndo para ir ao colégio, voltar também correndo, ir para o dentista e retornar a casa naquela mesma velocidade.
Lembro-me da ocasião em que eu obtive essa vitória da minha vida espiritual, na escada de entrada de minha casa. Eu costumava subi-la com lentidão, mas, em certo momento, fiz o seguinte raciocínio: “Em vez de subir devagar, terei muito menos desagrado se o fizer correndo, pois aquilo que é feito rapidamente pesa menos”.
E ali mesmo tomei a decisão de, tanto quanto possível, fazer as coisas desagradáveis de uma vez, depressa e com coragem, para combater a preguiça. Resolvi nunca deixar para depois aquilo que podia fazer logo e, tendo a opção, começar sempre pelo mais duro. Devia enfrentar as situações mais difíceis logo que estas se apresentassem e chegar às conclusões mais duras no primeiro lance e sem tréguas. Pois, se fosse fazer um sacrifício a prestações, faltar-me-iam as forças.
Entretanto, em meio a esse corre-corre, conservava a tranquilidade do meu modo de ser, de maneira a harmonizar a minha estabilidade antiga com essa force de frappe11, abrindo assim uma via nova para mim mesmo.
A combatividade, montanha escarpada
Desse modo, em várias circunstâncias assim, a Providência conduzia minha alma no bom caminho, mas eu não percebia que estava num dos períodos cruciais de minha vida.
Entretanto, não me foi fácil manter a continuidade nessa combatividade, a resolução de combater tanto contra mim mesmo que o combate se tornasse uma segunda natureza, de maneira que, quando não tivesse mais de combater, não soubesse mais viver!
Ó montanha escarpada, difícil e dura!
Como foi preciso que eu olhasse até o fundo toda a vilania aonde a moleza me conduziria, através de mil sofismas e manobras desleais, que entendesse o quanto ela era contrária aos sagrados Mandamentos da Lei de Deus! A manutenção da minha inocência dependia dessa atitude de alma e, nesse sentido, ajudou-me a lógica de Santo Inácio e da Companhia de Jesus, expressa nas aulas do Pe. Costa12.
Naturalmente, mamãe tinha um papel muito grande nessa luta contra o mal, como que simbolizando para mim o próprio bem e a própria verdade. Ela era a aliada de tudo quanto existia de bom, e não pactuava com o que em mim havia de ruim. Então, percebia que, obedecendo-lhe, eu seria fiel a algo maior do que ela, ou seja, a Religião e a virtude.
Porém, o que mais pesou para determinar os meus sacrifícios sucessivos foi entender claramente essa alternativa: se eu não tivesse uma seriedade profunda, que tomasse o meu pensamento e minha atenção de ponta a ponta, de maneira a viver no combate contra mim mesmo, a Fé me escaparia, eu acabaria por romper com a Religião e perderia a minha alma. Tinha de escolher entre a glória – senão aos olhos dos homens, ao menos aos olhos de Deus – e a infâmia; o Céu ou o Inferno. Se eu não cresse na vida eterna, nada teria sido suficiente para me alentar, nem sequer os incentivos e exemplos de mamãe. Então, pensava: “Esta luta é horrorosa e eu estou morto de preguiça, mas não quero perder a Fé! Farei o que for preciso, na adesão profunda e inteira de minha alma à Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana! Vamos para frente!”
“Si vis pacem, para bellum”
Assim, com o tempo, acabei fazendo violência a meu temperamento, naturalmente afetivo, e tive a graça de vencer a minha tendência à moleza em boa medida, movido por uma resolução proveniente do espírito católico, com a nota especial que havia na Companhia de Jesus daquele tempo. De modo que se poderia aplicar a mim o provérbio latino: “Si vis pacem, para bellum”13 – “Se queres a paz, prepara a guerra”.
E tornei-me um batalhador.
1 Em francês: caracol.
2 Em francês: canga.
3 Analisando as ilustrações de Gustave Doré para a Divina Comédia, Plinio identificava os seres monstruosos da obra de Dante Alighieri com os defeitos reinantes na sociedade da época. Cf. Volume II desta coleção, pp. 523 e 526.
4 Muito provavelmente o filme The toilers of the sea (Os trabalhadores do mar), baseado no romance do mesmo nome, Les travailleurs de la mer, de autoria de Victor Hugo (1802-1885), editado em 1866.
5 Na famosa vitória de Bouvines, no dia 27 de julho de 1214, o Rei da França, Filipe Augusto, derrotou a coalizão das tropas do Imperador da Alemanha Oto IV de Brunswick, do Rei da Inglaterra João “Sem-Terra” e de alguns vassalos do próprio Rei Filipe, em revolta contra o seu suserano.
6 Pequena porta ou passagem oculta, numa praça fortificada.
7 Em março de 1204, a fortaleza de Château-Gaillard, na Normandia (França), em poder do Rei da Inglaterra João “Sem-Terra”, foi cercada pelas tropas do Rei da França, Filipe Augusto. Considerado inexpugnável, o famoso castelo se rendeu quando os sitiadores penetraram no recinto através de uma poterna mal defendida da muralha externa – segundo a tradição – ou de uma janela da capela.
8 A famosa obra de Daniel Defoe (1660-1731), Robinson Crusoe, a qual narra as aventuras de um náufrago refugiado numa ilha deserta e que, vivendo isolado durante longo tempo, tornou-se um símbolo do sofrimento causado pela solidão.
9 No mencionado romance, o único companheiro do náufrago era um jovem selvagem, a quem ele dera o nome de “Sexta-Feira”, por havê-lo encontrado nesse dia da semana.
10 Cf. Mt 7, 11.
11 Em francês: força de impacto.
12 O Pe. João de Castro e Costa foi um dos professores jesuítas do Colégio São Luís que mais influência teve na formação da mentalidade do jovem Plinio. Cf. Volume II desta coleção, p. 245 ss.
13 Provérbio enunciado no livro Epitoma rei militaris (Resumo de assuntos militares), de autoria de Vegetius Flavius Renatus, escritor latino da segunda metade do século IV.
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