Narrações de Da. Lucília
Quando minha irmã, meus primos e eu éramos meninotes, de doze ou treze anos em diante, tínhamos loucura por ouvir as histórias que mamãe nos contava.
Em geral, essas narrações eram feitas às quintas-feiras, dia em que toda a família se reunia.
O jantar das quintas-feiras
Sendo nossa família muito numerosa, havia em casa duas salas de jantar: uma grande, para os mais velhos, e outra menor, para a meninada – os filhos do meu tio Gabriel, minha irmã, minha prima Ilka e eu –, um tanto longe da primeira, para não atrapalhar a vida dos maiores. Estes tinham uma conversa sossegada, tranquila e séria, enquanto os menores formavam um grupo efervescente e tagarela, inclusive eu, falando às torrentes com voz muita alta.
Estava combinado que todos deviam começar e terminar a refeição na mesma hora, mas a pintalhada ficava assanhada, com grande torcida para ouvir as histórias que mamãe contava e, então, devorava rapidamente o jantar para terminar cedo. As pessoas mais velhas, pelo contrário, comiam menos, mas faziam-no devagar e acabavam mais tarde. Ora, mamãe jantava com eles…
Nessas ocasiões estávamos proibidos de entrar na sala dos mais velhos e, então, começávamos a rondar, esperando por mamãe. Um de nós, mais ousado, abria a porta e dava risada, para que ela ouvisse. Outro punha a cabeça para dentro, a fim de ver se já havia terminado, e recebia do pai ou da mãe um olhar de fuzilar. Então fechávamos a porta e mandávamos outro espreitar.
Rosée e eu nunca nos intrometíamos no jantar dos mais velhos – pois sabíamos que mamãe não o toleraria –, mas, quando não havia mais jeito, os outros pediam que nós olhássemos para ela, e conseguíssemos que viesse contar logo as histórias. Ela permanecia impassível e, com toda suavidade, continuava jantando, sem apressar-se.
Então, algum sobrinho de mamãe entrava correndo, de modo ao próprio pai não perceber – ou não ter tempo de intervir – e falava ao ouvido dela:
– Titia, já terminou? Venha logo! Estamos esperando!
Ela o recebia com muito afeto e inclusive o beijava, mas não se movia, a não ser quando acabava o jantar e todos se levantavam. Não era uma atitude de dureza e nem sequer um desejo de comer à vontade, pois ela acabava antes de todos, uma vez que fazia regime naquele tempo, comendo, em geral, apenas um prato de aveia.
Aliás, sair para contar histórias às crianças seria um pretexto que mamãe poderia dar-se a si mesma, uma vez que já tinha acabado de comer e estava apenas participando da prosa. Mas ela mantinha os princípios, para disciplinar a criançada: não interromper uma refeição, não abrir uma lacuna entre os comensais e não permitir que os mais velhos fossem incomodados pelos mais moços.
Quando, afinal, acabava o jantar, enquanto os mais velhos iam conversar, ela era levada pelas mãos e pelos braços por todos nós, dando risada, para o escritório de meu pai. Recostava-se na chaise longue de molas inglesas, e todos os meninos e meninas formavam uma roda grande, compacta e apertada em volta dela, pois queriam estar o mais perto possível, para vê-la e ouvi-la.
Então, ela começava a contar longas histórias.
Uma excelente narradora
Mamãe não tinha nada de literata. Era uma dona de casa que relatava fatos para seus filhos e sobrinhos, de modo muito claro, sereno e natural, mas com uma capacidade de narrar como nunca vi em ninguém, e com um timbre de voz aveludado, suave e doce, transmitindo eflúvios muito captáveis pelas crianças, e envolvendo-as completamente. Sabia comunicar-nos o que ela mesma sentia a respeito do que dizia, dando movimentação aos episódios e fazendo-nos viver cada uma das situações. Era interessantíssimo! Todos ouviam com enorme empenho, elétricos e extasiados, de tal maneira que preferiam as histórias às algazarras infantis.
Ela nunca iniciava a conversa como quem faz uma conferência, dizendo: “Hoje resolvi falar sobre tal assunto”, mas sempre procurava sondar o que nós estávamos querendo ouvir.
Em geral, começava falando um pouco baixinho, dando os antecedentes da história, e recordando o que havia contado na sessão anterior. Entretanto, às vezes se esquecia do ponto no qual havia interrompido a narração e, então, todos falavam ao mesmo tempo, lembrando-a. Mamãe sorria, deixava acalmar o berreiro e continuava, dizendo:
– Vou recomeçar em tal ponto assim.
E, se levava algum tempo descrevendo fatos já conhecidos, alguns meninos ou meninas diziam:
– Entre logo no tema!
Ela não se deixava apressar, mas continuava a explicar o que desejava, antes de retomar a história.
Romances de capa e espada
Sendo muito imbuída de cultura francesa, mamãe sempre nos contava fatos romanceados da história da França, ou episódios fenomenais extraídos da literatura dessa nação, o que, naturalmente, nos influenciou sobremaneira e abriu os nossos olhos para um horizonte histórico. Com isso, ela ia dando à criançada uma formação tradicional.
Essas narrações eram sobretudo as de um romancista francês do século passado1: Alexandre Dumas2. Contos de capa e espada, que falavam muito à mentalidade de mocinhos e mocinhas, pois não consistiam apenas em simples episódios, mas apresentavam os personagens, os trajes, as atitudes e os diálogos de modo atraente e empolgante. A bem dizer, esse grande romancista fazia do fato romanesco apenas um pretexto para descrever ambientes e costumes históricos, com muita fidelidade. Se ele tivesse escrito sobre a História seria um historiador prodigioso, pois era propriamente o narrador por excelência.
Em especial, o que minha mãe contava para nós, em longas sessões, era a história dos três mosqueteiros, a qual me parece ter sido a obra-prima do Dumas. É um romance caudaloso, desses que os franceses chamam de roman-fleuve – “romance-rio” – por sua enorme duração, e está dividido em três volumes, da mesma série: Os Três Mosqueteiros, Vinte anos depois e O Visconde de Bragelonne.
No tempo de mamãe, devido à influência da cultura francesa sobre o Brasil, ter lido Os Três Mosqueteiros era quase uma obrigação para toda moça ou senhora de sociedade. Esse romance ainda estava em pleno consumo da criançada de meu tempo, mas eu não cheguei a lê-lo, conhecendo-o somente pelas narrações dela. Aliás, eu nunca a vi ler os livros do Dumas, mas desconfiava que ela os lia, para depois contar histórias aos seus filhos e sobrinhos. Entretanto, não o fazia como quem narra um conto infantil, mas de modo sério.
Perfume de Cavalaria
Eu gostava enormemente daquelas aventuras dos três mosqueteiros, que na verdade eram quatro: D’Artagnan, Athos, Porthos e Aramis. A meu ver, um dos encantos daquele romance era que esses mosqueteiros realizavam proezas continuamente, saltando e se movimentando à maneira de uma girândola, mas sem perder o equilíbrio. No fundo, o Dumas soube apresentar o brilho do espírito cavalheiresco, criando nos leitores a nostalgia dos sentimentos de honra e de coragem, e restaurando a alegria da aventura. Assim, o livro Os Três Mosqueteiros fez reviver um vago perfume da Cavalaria medieval e, nesse sentido, de certo modo atrapalhou a obra da Revolução.
Naturalmente, mamãe não contava certas partes inconvenientes do livro, mas censurava o que havia de reprovável e apresentava-nos apenas o aspecto edificante. Eram histórias esplêndidas, filtradas, depuradas e adaptadas para adolescentes brasileiros.
Assim, posso dizer que o único incitamento à combatividade que recebi de mamãe foi a história dos três mosqueteiros. Ela não o fazia de modo direto – pois minha irmã e eu, descendentes de pernambucanos, tínhamos um gênio muito categórico e não precisávamos desse incitamento –, mas apenas ensinando-nos a inflexibilidade através da narração.
Mosqueteiros do Rei e mosqueteiros do Cardeal
Segundo ela contava, no exército da França havia dois corpos diferentes de mosqueteiros: les mousquetaires du Roi, que serviam ao Rei Luís XIII3, e les mousquetaires de Monsieur le Cardinal, os quais, por sua vez, serviam o Cardeal de Richelieu4. Esses dois batalhões se distinguiam pela indumentária – bonitos uniformes e chapéus com plumas –, e combatiam com mosquete, a arma de fogo mais recente daquele tempo, sendo por isso chamados de mosqueteiros.
Naturalmente, havia entre os dois corpos de exército uma rivalidade de morte. Eles viviam em rixas constantes, a ponto de travarem duelos e se matarem.
Qual era a posição do Rei diante de tudo isso? Ele desejava que existissem os mosqueteiros de Monsieur le Cardinal, mas não que tivessem preeminência sobre os dele, de maneira que mantinha uns e outros, mas dava dinheiro e tudo quanto era necessário, a fim de que os seus mosqueteiros tomassem a dianteira, assim como também o Cardeal favorecia os seus, com a mesma intenção. E os nossos quatro personagens, D’Artagnan, Athos, Porthos e Aramis, num movimento de lealdade monárquica, eram muito fiéis ao Rei e contavam-se entre os mais destemidos mosqueteiros de Luís XIII.
O corpo deles tinha como chefe Monsieur de Tréville, de boa nobreza e homem de confiança do Rei. Inteligente e flexível como se é na França, ele compreendia bem até onde podia “puxar a corda” dos mosqueteiros em matéria de disciplina, e o fazia com equilíbrio.
Eu lucrei muito em minha vida espiritual ouvindo essa história dos mosqueteiros, pois mamãe explicava bem a personalidade de cada um deles e mostrava, explícita ou implicitamente, que eles apresentavam perfis morais de militares, muito bem escolhidos, mas sobretudo quatro feitios diferentes de homens e quatro padrões humanos.
Quais eram esses padrões?
Athos
O primeiro dos heróis da história era Athos5, personagem concebido como um homem maduro, sério e pensativo, o qual só falava para dizer a última palavra em todas as matérias, mas era também heroico e muito firme, com uma vontade de ferro.
Mais nobre que os outros mosqueteiros, ele possuía o título de Conde de La Fère. Sabia perfeitamente, porém, que não tinha a altura de um Duque de Chevreuse ou de um Duque de Luynes6, pois era apenas Monsieur le Comte7 de la Fère. Entretanto, mostrava-se muito cioso de sua própria condição e sabia valorizá-la, pois entendia bem que, a seu modo, ser um arqui-Comte de la Fère significava apresentar uma figura incomparável e máxima.
Solene, digno e aristocrático, diplomata sutil de maneiras suavíssimas e muito agradáveis, era ao mesmo tempo misterioso e um tanto melancólico, com uma nota contínua de tristeza, pois houvera na vida dele episódios trágicos, que não contava a ninguém.
Como todos os mosqueteiros, Athos jogava, mas com muita calma, à maneira de um cavaleiro, e perdia quantias importantes de dinheiro sem pestanejar. Nessas ocasiões, no dia seguinte ele acordava de madrugada, e a sua primeira preocupação era pagar a dívida. Levantava-se e abria um móvel com segredo, cujas molas permitiam o acesso a uma gaveta, onde ele guardava seus rouleaux d’or – rolos de moedas de ouro que ele embrulhava em papel –, de maneira que podia contar com facilidade o dinheiro que possuía. Depois, chamava o seu valet8 – o qual vivia continuamente ébloui9 diante dele – e mandava-o pagar ao credor. O empregado ia correndo, com a impressão de que esse serviço o nobilitava de certo modo, pois fazia dele um complemento de Athos.
Então, antes que esse credor despertasse, o lacaio de Athos já estava batendo à porta dele, a fim de saldar a dívida feita na véspera pelo seu patrão. Era um modo de ser cavaleiro.
Assim, mamãe contava, enlevada, que Athos era um homem de honra, pois cumpria todos os seus deveres de modo corretíssimo, sempre muito sábio e criterioso. E isso era dito para nos formar.
Aramis
Monsieur Aramis10, nobre também, era um homem diferente.
Culto, letrado e muito inteligente, era entretanto um personagem equívoco, tendo ao mesmo tempo algo de aventureiro e de clérigo. Sentia gosto pela vida eclesiástica e gostava muito de Teologia, mas também lhe agradava a existência de mosqueteiro e, então, balançava entre as duas escolhas.
Os outros mosqueteiros faziam inclusive um pouquinho de taquinerie11 em relação a Aramis, dando a entender que, em parte, ele queria ser Padre por ter medo da guerra… Ora, Aramis era muito corajoso, mas eles o cutucavam assim para que desistisse de tal desejo. É preciso dizer que embora fosse valente, ele não fazia muita questão de combater, pois era um diplomata esperto, finório e jeitoso, tendo algo de sinuoso e intrigante, muito mais amigo da rasteira política do que da luta pela força. Percebia-se que ele tinha capacidade de ser uma espécie de Richelieu.
De vez em quando, os quatro amigos combinavam um passeio, mas Aramis escapava. Eles o procuravam e, mais de uma vez, encontraram-no num mosteiro próximo – onde morava um bom teólogo – vestido com uma roupa um tanto clerical e, no meio de alguns Padres, discutindo sobre Teologia, às braçadas!
Em certa ocasião, após ter sido ferido num duelo, Aramis desapareceu. Então, os três outros mosqueteiros foram à cidade onde o tinham deixado, a fim de verificar o que lhe havia acontecido.
Ora, existia em casa um livro de Os Três Mosqueteiros, com algumas ilustrações, que eu folheava enquanto mamãe contava as histórias. Nele, via-se Aramis jantando num refeitório de Padres seculares, onde havia um vitral. Sentado, com um pé inchado e colocado sobre a almofada mais suntuosa e mais cheia de penas que se possa imaginar, ele comia um franguinho, cujas
duas perninhas eram aparentes, o qual me parecia muito gostoso… Ao lado dele havia um ou dois Padres também sentados e outros três em pé. Aramis estava novamente numa roda de teólogos, engolfadíssimo, conversando sobre Teologia! Então irrompiam os mosqueteiros e diziam: “O que é isso?!”
Apanhado pelos amigos, sentiu-se muito desapontado, pois estes perceberam que ele se deixara levar pelo gosto da conversa com os Padres e da vida sossegada, quando já estava praticamente curado… Aramis não gostava de aventuras.
Quando vi aquela cena, pensei: “Que delícia ser Aramis! No total, ele poderia dizer para eles: ‘Vocês todos: fora! Não quero bagunceira nem atrapalhação! Vou permanecer aqui, pensando e falando sobre coisas interessantes!’ Além do mais, olha o franguinho, a boa almofada e a luz doce que entra pelo vitral…!”
No fundo, a narração de mamãe me fazia sentir que existiam essas duas formas de felicidade: uma delas contemplativa e a outra heroica. E isso me defendia contra as solicitações de ser feliz à maneira revolucionária de alguns dos meus colegas.
Entretanto, ela não elogiava Aramis, o qual, para ela, representava certa deformação da Religião. Nós não devíamos ser como ele!
Porthos
O mosqueteiro Porthos12 pertencia a uma família que ascendera havia pouco tempo. Se não me engano, o pai dele era homem muito hábil para os negócios e, então, mais do que propriamente um nobre, Porthos era uma espécie de burguês pintado a ouro, desejoso de enobrecer, mas, antes de tudo, um gastador que fazia do dinheiro o seu ornato. O tipo do nouveau riche13. Possuía um bom apartamento e se fazia notar por ser bom garfo e pelos jantares que oferecia aos amigos. Um tanto vulgar, era de uma truculência e de um apetite perfeitamente plebeus, sendo capaz de comer quantidades indefinidas… Um gourmet pantagruélico, comilão de primeira força, o qual se manifestava contente quando podia gozar à farta dos bens materiais que desejava. Poderia se chamar o “Barão da Fartura”.
Herói também, tendo uma corpulência de carregador, Porthos era o representante da força bruta – mais do que as boas maneiras permitem sê-lo – e realizava proezas musculares extraordinárias, como quebrar as lanças dos adversários e derrubar alguém com um murro…
D’Artagnan
Por último, como a corola da flor, estava D’Artagnan.
Dumas utilizou o nome de um personagem que existiu de fato e era mosqueteiro do Rei e Conde de Montesquiou14 – portanto de uma grande casa nobre da França –, o qual fez uma carreira brilhante e morreu em guerra, atingido por uma bala, quando sitiava certa cidade holandesa.
Naturalmente, a narração do livro não corresponde a toda a realidade histórica. O autor do romance, sendo artista e literato, apresentava D’Artagnan como um gascão15, filho cadet16 de certa família de boa nobreza provinciana. Era o tipo clássico dos “segundões”, provenientes de casas ricas, mas pobres eles mesmos – pois recebiam apenas pequenas heranças, uma vez que os morgados herdavam quase toda a fortuna dos respectivos pais –, e que se lançavam nas aventuras da guerra para serem algo na vida e ganharem algum dinheiro, mantendo assim a sua própria situação social.
Então, o morgado permanecia em casa administrando os bens da família, enquanto os irmãos mais pobres iam para as batalhas, obtendo vitórias por atos de coragem. Assim, na história de uma família, muitas vezes acontecia que, ao chegarem todos a uma idade entre cinquenta e sessenta anos, os mais ilustres eram os pobres de outrora, pois haviam lutado e ocupavam altas situações, enquanto o morgado havia engordado pacificamente na sua terra, e era uma pessoa qualquer.
Para mim, D’Artagnan era um nome lindíssimo, uma maravilha! Parecia-me ter a musicalidade própria a um duelador e a sonoridade da água ao cair numa cachoeira não muito ruidosa, ou me lembrava ainda o barulho de armas leves que se entrechocavam… Uma palavra de coruscações prateadas!
Participação na sublimidade
Antes de tudo, D’Artagnan encontrava o gosto da vida em ser arrojado e em expor-se sempre, de maneira nobre e bela, possuindo aquilo que o heroísmo tem de mais ativo, ou seja, sentindo-se herói durante a ação e fazendo desse desprendimento de si mesmo o ornato da sua pessoa. Era um espírito inventivo, que compreendia quando devia atacar e quando tinha de recuar, fazendo a guerra não tanto com o mosquete, mas com a espada, a qual perfurava e cortava, mas também brilhava ao sol!
Ele não era um Godofredo de Bouillon17, mas, em grau muito menor, tinha certos traços ou resquícios que lembravam um cruzado, ao modo pelo qual se podia ser cavaleiro naquela época, com muitos defeitos, mas ainda com a coruscação de algumas qualidades. Aliás, como mosqueteiro, ostentava uma grande cruz, bordada com materiais preciosos, na bonita capa que eles utilizavam, remoto e último lampejo das Cruzadas medievais.
Assim, as aventuras dele eram como pequenas cruzadas, numa contínua dedicação a alguma pessoa, ideia ou noção de honra, concebidas à maneira inteiramente temporal, mas vendo nelas toda uma beleza, que só poderia ver quem possuísse uma alma muito espiritual, e servidas com uma dedicação, uma agilidade e uma força que tinham certa participação na sublimidade e tornavam luminosa a figura de D’Artagnan.
Por outro lado, era um homem magro de corpo e de atitude frugal, embora sabendo apreciar os aspectos agradáveis da vida.
A personificação do heroísmo francês e do Ancien Régime
Em toda sua conduta, ele agia movido por uma forma de coragem muito francesa. Ou seja, servido por uma grande penetração das situações e dos perigos, e por uma agilidade que fazia lembrar certo tipo de espadas, cujo aço é tão flexível que dá a impressão ilusória de poder ser quebrado com as mãos.
Além do mais, ele representava o ideal da força, também ao estilo da França, o qual não consiste tanto na corpulência, mas na posse de músculos vigorosos, capazes de todas as resistências e permitindo todas as audácias. Personificava também a glorificação do risco, atravessando todos os obstáculos e conseguindo, com a velocidade de que as almas de alta categoria são sedentas, aquilo que outros normalmente levariam anos para obter.
Assim, D’Artagnan era a primeira figura e a nota resumitiva entre os mosqueteiros, por representar melhor do que os outros a valentia, o cavalheirismo e a graça do heroísmo francês. Verdadeiramente gentilhomme18, guerreiro até a raiz dos cabelos, ao mesmo tempo leão de salão e leão da guerra.
Entre os quatro, o símbolo da França era ele! E os outros três, sem lhe reconhecerem propriamente o título de chefe, tinham-no como tal, pois D’Artagnan possuía a primeira iniciativa, dava a primeira estocada e ladeava o primeiro perigo, apesar de não mandar de modo ostensivo.
Não creio, porém, que o Dumas tenha elaborado uma definição teórica da coragem em estilo francês, antes de compor a figura de D’Artagnan. Provavelmente, conheceu e selecionou alguns lances e aspectos típicos dessa coragem, num trabalho subconsciente e, com base nisso, escreveu o romance. Entretanto, essa reflexão teórica era para mim uma necessidade. Meu espírito não sossegava enquanto não chegava ao conceito abstrato da coragem enquanto vivida pelos franceses, ou seja, no contexto de outras virtudes e matizada por estas. Depois, revia o personagem para adquirir uma noção inteira sobre o assunto.
Por outro lado, cada um dos personagens de Dumas representava uma faceta do que seria o homem perfeito e acabado do Ancien Régime: valente e brilhante como D’Artagnan; grave, solene, sério, probo e honesto como Athos; truculento como Porthos e culto como Aramis. Esses tipos humanos, assim representados, pareciam-me ter um alcance extraordinário, enormemente atraente.
D’Artagnan ou Athos?
Durante as narrações de mamãe, os ouvintes torciam por D’Artagnan, mas o herói bem-amado dela era Athos. Via-se, no fundo, ser ela entusiasta de um Athos mítico, sublime e colossal; uma espécie de arquétipo do pai dela.
Aliás, para mim, os dois mosqueteiros exponenciais eram exatamente D’Artagnan e Athos, mas tinha certa dúvida sobre qual deles era o tipo do homem mais perfeito. A elegância de Athos era a de um homem de salão que se fazia notar pela elevação de sua conversa, pela sua cortesia e pela maturidade de seu pensamento, e, ao mesmo tempo, sabia combater muito bem. A sua honra não estava posta sobretudo na coragem, mas na linha, na classe, na cultura e na distinção.
D’Artagnan, pelo contrário, era um homem de combate que sabia conversar muito bem quando estava num salão. Era o brilho da improvisação e da aventura, em contraposição aos reflexos nobres do Athos, que davam certa impressão de ocaso. D’Artagnan era o homem do panache francês, feito para se mostrar à luz, enquanto Athos era um grand seigneur, vivendo numa espécie de penumbra e de melancolia aristocrática, com ar de quem já tinha ganho a batalha da vida, mas que, ao mesmo tempo, em algo a havia perdido.
Então, depois de muita vacilação, acabei optando por Athos, pois, além de ser muito valente e nada poltrão, ele possuía uma forma de coragem mais estática e menos saltitante que a de D’Artagnan, com a qual eu também simpatizava, mas que não recebia o máximo de minha admiração.
A verdadeira amizade, um dos maiores prazeres da vida
Na sua ficção, Dumas imaginou quatro mosqueteiros indissoluvelmente amigos.
Mamãe nos narrava como eles haviam se conhecido e descrevia muito o modo de se tratarem entre si, como amigos de vida e de morte. Estavam sempre juntos, constituindo uma roda que não se isolava das outras, mas também nunca se confundia com estas, pois eram incomparáveis e se distinguiam pela coragem posta em comum.
Ela contava, por exemplo, o duelo de um deles contra
alguém estranho ao quarteto. Os outros três iam assistir, assim como o adversário também levava outros tantos amigos e, à medida que cada um ia sendo posto fora de combate, os demais o substituíam, até sobrarem apenas dois. Assim, sempre que um dos mosqueteiros lutava, todos os outros o acompanhavam e, habitualmente, venciam juntos.
Quando ganhavam, iam imediatamente depois a um restaurante próximo. Todos comiam e bebiam abundantemente, exceto Aramis, o qual me dava a impressão de um herói posto na contemplação estável, serena, calma e enlevada da sua própria superioridade, representando uma França ascética e quase monacal.
Assim, eles formavam algo à maneira de um trevo de quatro folhas e funcionavam como um só homem, em torno de um ideal superior. No fundo, o que unia aqueles mosqueteiros era o que De Gaulle19 – homem que possuía um conhecimento simbólico desenvolvido – chamava une certaine idée de la France20. Ou seja, certa ideia que pairava no espírito dos franceses autênticos, feita de coragem e de inebriante entusiasmo pela galhardia,
mas também de habilidade, de agilidade e de capacidade de arriscar tudo a qualquer hora. Isso fazia os quatro mosqueteiros sentirem-se elevados a uma esfera superior da vida humana, que transcendia as pessoas e em nome da qual eles se davam inteiramente uns aos outros, numa solidariedade sem reservas, à maneira dos antigos cavaleiros.
Aquela me parecia a verdadeira amizade! Estar encaixado num conjunto que tivesse brilho, dinamismo, afinidade e união de almas me dava a impressão de ser um dos maiores prazeres da vida.
Por outro lado, a verdadeira genialidade de Alexandre Dumas consistiu em apresentar os mosqueteiros como personagens familiares, com os quais o leitor convive, de modo que este, sem perceber, entra no romance e se sente um mosqueteiro a mais! Eu mesmo sentia o que era a felicidade de ser D’Artagnan, Athos, Porthos ou Aramis.
Dª Lucilia comenta os vilãos da história
Mamãe compreendia na perfeição e sabia reproduzir muito bem o espírito dos mosqueteiros, o que não é fácil para qualquer senhora. Ela entrava nos casos do romance, vivendo-os como se fosse um dos personagens e, ao mesmo tempo, julgando-os à maneira de um juiz, fazendo comentários morais com toda severidade.
Entretanto – de acordo com o seu papel de mãe de família – não era propensa à polêmica. Em geral, falava muito das coisas que tinha de elogiar e pouco daquilo que tinha de atacar, censurando, aliás, menos com as palavras do que com a fisionomia e a expressão da voz. Mais de uma vez a ouvi falar de gente mole: homens que não trabalhavam, não sabiam lutar ou não tinham ideal nem fortaleza de alma para levar a cabo o que desejavam. Ela o fazia de modo tão depreciativo e completo, que o mal ficava reduzido a zero e nos incutia horror!
Então, ao narrar a história dos três mosqueteiros, ela descrevia, às vezes, alguns personagens como sendo os vilãos do caso. Por exemplo, apresentava Lady Clarick21 – uma inglesa intrigante e aventureira, espiã do Cardeal de Richelieu – como mulher péssima, carregada de crimes e, inclusive, comprazendo-se no assassinato. Mamãe dizia:
– Vocês não imaginam quão baixo caiu a Lady Clarick, mulher infame, nessa ocasião!
Essa personagem acabava decapitada e mamãe nos fazia ver como o mal é sempre punido. Daí decorreu que Rosée e eu, de brincadeira, demos o feio apelido de Lady Clarick a uma de nossas primas, sendo imitados por toda a criançada.
Verdadeiras lições de moral
Ao mesmo tempo, mamãe fazia comentários morais muito laudatórios sobre aspectos bonitos das pessoas e das situações, os quais me pareciam entrar na alma dela, de maneira que, ao falar das virtudes de Athos, ela se tornava semelhante a ele, e, ao comentar a valentia de D’Artagnan, eu tinha a impressão de que soprava em seu rosto o vento fresco da aventura.
Ela descrevia com tanta admiração e entusiasmo a vida dos mosqueteiros, que eu via vibrar nela uma senhora digna de ter um D’Artagnan por filho. E, de outro lado, ela preservava o filho de ser como Porthos, incutindo-lhe o maior desinteresse pelo espírito dos nouveau-riches e fazendo-lhe sentir o que havia de superior na carreira intelectual, na preeminência do espírito sobre a matéria. Entretanto, dava a entender bem que essa intelectualidade deveria ser completada por uma grande varonilidade, pois a coragem também era superior a muitas outras virtudes.
Assim, ela nos fazia compreender mil coisas, com comentários inspirados na doutrina católica e na tradição, dando-nos verdadeiras lições de moral imensamente atraentes, sem ensinar-nos, entretanto, à maneira de uma aula de Catecismo!
A Rainha mítica e a cobra revestida de púrpura
Luís XIII vivia no esplendor de sua corte no Louvre22, palácio magnífico que eu conhecia por fotografias, e que bem imaginava sendo habitado por um rei. E Ana d’Áustria23, esposa dele, era uma das mais belas e nobres Rainhas da Europa.
A narração de mamãe dava a ideia de uma dama mítica, de beleza fabulosa, colocada numa situação de tensão e de crise permanente, na qual ela tinha que se haver com muito jeito, pelas contínuas dificuldades e problemas políticos criados pela sua condição de Rainha da França, ao mesmo tempo Infanta da Espanha e Arquiduquesa da Áustria. Ela devia conciliar esses elementos, sabendo que se não se mantivesse muito elegante, muito bonita e muito feminina, a presença dela na França se tornava impossível.
Ora, Luís XIII tinha como Primeiro-Ministro o Cardeal de Richelieu, do qual Philippe de Champaigne24 deixou o retrato. Homem esguio, de finura e maleabilidade que lhe davam o aspecto dessas serpentes prestigiosas que se levantam acima dos seus próprios nós e olham os homens de frente, desafiando-os. Uma cobra humana, revestida de púrpura e solidéu!
Sendo ele inimigo mortal da Casa d’Áustria25, a Rainha, enquanto austríaca, não podia deixar de ser contrária a Richelieu. Assim, eram inimigos permanentes: o Cardeal desejava que Luís XIII mandasse a esposa para um convento, e Ana d’Áustria queria que Richelieu fosse enviado para sua diocese.
Por outro lado – segundo a narração de mamãe – a Inglaterra tinha certo interesse em apoiar a casa de Habsburg nesse período, e quis fazer uma aliança com a Rainha da França, a fim de derrubar o Cardeal e promover toda uma outra política, o que Richelieu percebia perfeitamente.
As aiguillettes da Rainha
Então, Dª Lucilia nos contava, com todos os pormenores, um famoso episódio relatado no livro Os Três Mosqueteiros, acontecido com a Rainha Ana d’Áustria e o Cardeal de Richelieu: l’affaire des aiguillettes26.
Em francês, aiguillette é um diminutivo de agulha, e poderia ser traduzido por agulheta ou agulhazinha. Era um ornato, uma joia usada naquele tempo, constituída por um bastonete ou pingente de ouro, todo cravejado de brilhantes. Então, tratava-se de uma coleção de doze aiguillettes, que o Rei tinha dado como presente à Rainha em certa ocasião, talvez no aniversário dela.
Em duas palavras, o caso foi o seguinte:
Certo dia, foi recebido na corte um homem fabuloso, lendário e brilhantíssimo, o qual tinha interferências na política francesa: o Duque de Buckingham27, Ministro favorito do Rei Carlos I da Inglaterra, enviado à França em missão diplomática da parte do seu amo, para tratar de certo assunto com Luís XIII28.
Durante a visita, o Duque de Buckingham foi apresentado a Ana d’Áustria. E aconteceu que, quando a missão diplomática exigiu dele o retorno à Inglaterra, para dar explicações ao seu soberano, foi despedir-se da Rainha e ajoelhou-se diante dela. Esta, por pura cortesia e num gesto irrefletido, tomou as aiguillettes e deu-as a ele como lembrança. Então, o Duque partiu, levando as joias.
Ora, Richelieu, que colocava espiões junto a todo mundo, soube desse fato por alguém que observou a cena, mas não contou nada a Luís XIII. E alguns dias depois, quando o Duque de Buckingham já estava longe, procurou o Rei e disse:
– Sire29, eu aconselho a Vossa Majestade que ofereça à Rainha um grande baile na corte. E, para ela sentir-se obsequiada desde logo, ao convidá-la, manifeste-lhe o desejo de vê-la ornada nessa ocasião com a magnífica coleção de aiguillettes, a fim de que o presente de Vossa Majestade seja bem notado por todos. Que ela não deixe de usar essas joias no baile.
Ora, Luís XIII e Ana d’Áustria estavam um tanto desentendidos, e Richelieu, muito maldosamente, havia preparado essa cilada contra a Rainha.
O Rei concordou imediatamente com a proposta. Foi falar com ela e convidou-a:
– Madame, quero oferecer-vos um grande baile na corte, a breve prazo, em tal dia. Vós sereis o ornato de minha festa, e pediria que comparecêsseis com as aiguillettes de brilhantes que vos dei!
Era compreensível que o esposo lhe pedisse isso. Ela permaneceu gelada e pensou: “O Rei vai me perguntar o que fiz desses bastonetes!”
Entretanto, sendo espertíssima, percebeu logo tratar-se de uma velhacaria do Cardeal de Richelieu. Mas, o que fazer? Como resolver o caso? As aiguillettes se encontravam em Londres! Ana d’Áustria estava apavorada, numa aflição sem par, verdadeira e terrível agonia!
Mamãe contava tudo isso e nós ficávamos pasmos, pensando: “O que vai acontecer…?”
O resgate das aiguillettes
A Rainha, então, chama Monsieur de Tréville, o chefe dos mosqueteiros, e lhe diz:
– Eu lhe peço um homem de confiança absoluta, de vida e de morte, para ir desempenhar uma missão na Inglaterra e trazer de volta certo objeto, que nem o senhor pode saber qual é, mas apenas esse homem. Monsieur de Tréville, até que ponto o senhor está disposto a servir uma Rainha, atraiçoada por um péssimo Ministro e abandonada de todos?
Ele respondeu:
– Eu só conheço um homem capaz de resolver esse caso.
– Quem é?
– D’Artagnan! Um jovem cadet de Gascogne, simples mosqueteiro que está começando a carreira. Se Vossa Majestade o incumbir de ir à Inglaterra a toda velocidade, viajando por tal estrada assim, eu garanto o sucesso!
Ela manda chamar o herói do romance, o qual entra no Louvre com seu traje de mosqueteiro, numa hora em que todo mundo dorme, chega até os aposentos da Rainha e se inclina diante dela. Ana d’Áustria, chorando, explica a D’Artagnan a situação:
– Eu preciso muito de umas aiguillettes que estão na Inglaterra, com o Duque de Buckingham. Então, em confiança, quero dar-lhe essa missão: vá a cavalo, sem parar nem de noite nem de dia, embarque para a Inglaterra e peça ao Duque as aiguillettes! Mas ninguém pode saber que essas joias se encontram em poder dele. Aqui está o dinheiro para os gastos da viagem. O senhor se compromete a estar aqui no dia da próxima festa, com essas aiguillettes?
D’Artagnan, vendo uma Rainha de tal categoria e com tantas qualidades sofrer daquele modo, sente-se como um homem de espírito poético que visse uma rosa sendo estupidamente esmagada por um cavalo percheron30. Ou seja, seria capaz de entrar em cena, de espada em mão, para salvá-la. No fundo, ele entrevia tudo quanto havia de elevado em Ana d’Áustria e era a serviço dessa elevação que faria aquela proeza.
Então ele diz:
– Para servir Vossa Majestade, eu me comprometo a tudo!
E cumprimenta a Rainha com uma grande reverência, arrastando a linda pluma do seu chapéu no tapete felpudo. Naquele mesmo instante monta no seu cavalo e começa uma correria por vales e montes, até embarcar rumo a Londres. Não preciso dizer que eu não prestava atenção nessa correria, nem me incomodava com o número de horas que D’Artagnan levava no trajeto, do qual, aliás, mamãe não se lembrava por inteiro. Ela contava episódios romanescos de mil peripécias, as mais inesperadas, havidas no caminho: aventuras, um duelo – que eu tinha a impressão de estar vendo –, espadagadas, ciladas e batalhas. Entretanto, o mais interessante era a chegada à Inglaterra.
D’Artagnan consegue varar todas as dificuldades, chega a Londres e explica a situação ao Duque de Buckingham, mas este percebe que faltam duas aiguillettes, pois haviam sido roubadas por um espião de Richelieu31. Então, diz ele:
– Existe um ourives capaz de fabricar outras no prazo necessário, se eu o obrigar!
Vai de pistola em mão à casa do ourives e diz:
– Você receberá tal quantia, se fizer duas aiguillettes como estas, dentro de tantos dias. Do contrário, será morto.
Com muito medo, mas atiçado pelo desejo de lucro, o homem faz as aiguillettes, idênticas, no tempo desejado. Imediatamente o Duque de Buckingham entrega-as a D’Artagnan, o qual se retira, volta à França, salta no cavalo e vai num só galope até Paris.
A vitória de Ana d’Áustria
A Rainha já estava preparada para ir à festa, de pé, majestosa e aparentemente calma, mas aflitíssima e descoroçoada, esperando até o último instante a chegada de D’Artagnan, antes de se apresentar a Luís XIII. Tinha certeza de que, ao entrar para o baile, o Rei se dirigiria a ela e a cumprimentaria, enquanto todos os cortesãos convidados fariam um círculo em torno, para verem o Rei e a Rainha se saudarem. E nessa ocasião ele notaria a falta das aiguillettes… Ana d’Áustria sentia-se nos transes da morte!
Afinal, poucos instantes antes do baile começar, ouve-se o galope de um cavalo que chega… Seria D’Artagnan? Alguém olha pela janela e vê um mosqueteiro que entra no pátio do Louvre, cavalgando com tanta velocidade, que saem faíscas das ferraduras! Então, diz à Rainha:
– É D’Artagnan!
– Ah! Faça-o subir depressa, depressa!
Fazem-no entrar por portas escusas. Ele chega todo empoeirado, mas glorioso, e inclina-se diante de Ana d’Áustria, que lhe diz:
– Senhor D’Artagnan, trouxe o que eu lhe pedi?
– Majestade, aqui estão as aiguillettes.
Com uma correção adamantina, faz outra reverência e entrega as joias à Rainha.
Ela agradece com muita amabilidade e lhe dá a mão para beijar, prometendo-lhe ajuda, enquanto ele permanece de joelhos, humilde, entusiasmado e reverente. Depois a Rainha põe as aiguillettes e vai tranquila para a sala de baile, ao encontro do Rei.
O Cardeal está esperando num canto do salão, conversando com Luís XIII, quando entra a Rainha, radiosa e bonita como uma flor. Mas Richelieu guarda ainda um último trunfo: tem consigo as duas aiguillettes que o espião conseguira roubar ao Duque de Buckingham. Entrega-as ao Rei, dizendo:
– Vossa Majestade, se contar as aiguillettes da Rainha, notará que estão faltando estas duas… Perguntai a ela onde estão!
O Cardeal estava radiante, pois iria deixar a Rainha num grande apuro, uma vez que não teria como explicar a situação. Ele a denunciaria, contando a Luís XIII o que Ana d’Áustria tinha feito dessas aiguillettes, e este, informado, desconsideraria a esposa diante de toda a corte.
Então, quando o Rei se aproxima, a Rainha percebe que ele tem na mão um pequeno objeto. E, após cumprimentá-la, diz:
– Quanto gosto tenho em vê-la com essas joias, madame! Mas é preciso que todos possam contar essas aiguillettes, e ver que são exatamente as doze que eu lhe dei!
A Rainha responde:
– Ah, Sire, pois não! Vamos contá-las juntos.
O Rei deita o olhar sobre os pingentes e conta… Tudo está certo! Ali estão os doze. Ana d’Áustria, muito contente, continua a conversar com ele e Luís XIII chega à conclusão de que Richelieu tinha caluniado a Rainha. Vai para um canto e passa uma carraspana no Cardeal! Este percebe que Ana d’Áustria havia resolvido o caso de um modo que ele não imaginava.
Então, o Rei volta-se novamente para a Rainha e diz-lhe:
– Madame, como são bonitas as aiguillettes em vosso peito!
Tira do bolso as duas joias que o Cardeal lhe dera e continua:
– Para testemunhar a minha confiança, aqui estão outras duas que eu mandei fazer, para aumentar a vossa coleção! Fazei-me o favor de pô-las agora.
– Oh! Muito obrigada!
Ela coloca as duas aiguillettes com elegância e naturalidade, e o Rei convida-a para dançar. Era a grande vitória!
Um curso de Contra-Revolução
Pode-se imaginar a fenomenal torcida que causava em nós tudo isso narrado por mamãe! Mas, muito mais do que a torcida, encantava-me o modo com que ela descrevia a vida cavalheiresca da nobreza. Por exemplo, a cena do Duque de Buckingham diante da Rainha; as portas de Paris que se abrem sobre seus velhos gonzos para deixar passar D’Artagnan, que se retira da cidade adormecida; o trote do cavalo que acorda os burgueses, os quais saem à janela, com carapuça e vela na mão, para ver o que está acontecendo… Depois, a chegada do mosqueteiro ao Louvre, a distensão da Rainha, o ambiente do baile e o xeque-mate no Cardeal de Richelieu. Tudo isso fazia-nos sentir todo o gosto de um ambiente de corte, com alta distinção e muito esplendor.
Mamãe também nos estimulava a admirar os personagens, sobretudo Ana d’Áustria, que ela apresentava como uma espécie de cisne, pelas suas virtudes, bem como o Duque de Buckingham e, de modo especial, D’Artagnan!
Assim, ao contar a história dos três mosqueteiros, ela me incentivou no encanto pela douceur de vivre do Ancien Régime. Eu ficava deslumbrado com tudo aquilo e fazia o contraste entre o ambiente de corte que ela descrevia e o modo de viver moderno. Nesse sentido, a narração dela era um curso de Contra-Revolução, e me ajudava a defender-me contra a influência revolucionária.
A fortaleza defendida por mortos
Na história dos três mosqueteiros havia também o episódio do cerco de La Rochelle32, durante uma guerra. D’Artagnan estava sozinho numa fortificação e, durante a noite, colocava em cada ameia das barbacãs um homem morto, com chapéu e fuzil. Na hora de os inimigos se aproximarem, ele ia correndo atrás de cada morto e dava um tiro, para causar a impressão de que os franceses eram numerosos e se defendiam com um fogo nutrido. Então, os adversários pensavam que a fortaleza estava muito guarnecida, não ousavam avançar e por fim se retiravam. De fato, era um só que atirava contra eles.
O quarteto dissolvido
Nos livros Vinte anos depois e O Visconde de Bragelonne, a história dos mosqueteiros toma outro aspecto. Eles maturaram, foram sendo promovidos e chegaram a uma idade em que, forçosamente, tinham de se separar e cada um segue um rumo diverso.
Aquilo dava uma ideia da frustração das coisas deste mundo, pois aquele quarteto era dirigido a uma carreira, mas foi dissolvido quando cada um dos seus componentes atingiu razoavelmente a sua meta. Compreendia-se assim o vazio da realização mundana, mas também a venalidade própria da idade madura.
O Conde de La Fère: esplendor, contemplação e tristeza
Athos, tendo adquirido muita categoria, não podia mais exercer o ofício militar na vida de caserna, mas apenas nas horas de combate. Então, após perder o contato com os outros três amigos, passou a ter uma existência muito bonita. Drapé33 na sua sublimidade, na sua seriedade e na sua intangibilidade, foi levar uma vida de viuvez esplendorosa, de contemplação e de tristeza nobre, morando num castelo de sua propriedade, no antigo feudo da família. Ali cuidava de um filho, entretendo-se em dar-lhe aulas, e via-se bem que, sem uma criança brincando, correndo e pulando, o castelo de Athos seria quase lúgubre.
Esse menino – o qual usava o bonito título de Visconde de Bragelonne – era símbolo do passado e da tristeza do mosqueteiro, mas também da esperança dele, e poderia chegar a ser um grande homem, frequentando as cortes da Europa. Na realidade, Bragelonne foi um grande guerreiro. Era o mesmo fogo de D’Artagnan que renascia em outra geração, a qual depois tornar-se-ia, por sua vez, também cansada e venal.
Em certas horas, quando a tarde caía e Athos havia terminado de cumprir seus encargos como diretor da agricultura e da pecuária do lugar, retirava-se para o pátio interior do castelo – onde não era visto de fora –, no qual havia trepadeiras com plantas aromáticas e, no centro, um chafariz, cujas gotas musicais caíam num reservatório, de modo muito bonito. E Monsieur le Comte de la Fère andava de um lado a outro com passo compassado, até a hora do jantar, acariciando tristemente as condecorações que trazia no peito.
Jantava sozinho, servido por lacaios, numa grande sala com lâmpadas acesas. Aliás, era muito apreciador de vinhos e sabia dar-lhes valor, o que conferia certa animação à vida dele. Daí a pouco havia silêncio em toda a propriedade, e apenas o conde permanecia acordado. Andava mais um pouco pelo castelo e depois ia dormir também. Quando a luz dele se apagava, todo o feudo estava inteiramente escuro. Era a vida de Athos.
O Bispo Aramis: majestade e esperteza
Aramis tinha vocação de ser Padre, e entrou na carreira eclesiástica com passo decidido, deixando de lado as armas. Com seus jeitos políticos, não tardou em ser nomeado Bispo de Vannes, na Bretanha, onde passou a levar a vida característica dos prelados observantes daquele tempo, morando num pequeno palácio episcopal. Usava uma enorme batina que se abria à maneira de sino, com cruz peitoral, corrente de ouro e solidéu, e possuía uma excelente biblioteca, numa sala com vitrais medievais. Administrava a diocese com muita grandeza, aplomb34 e reflexão, amando e respeitando verdadeiramente a sua condição de eclesiástico, mas sabia também intervir nos assuntos humanos de modo inteligente, e estava sempre informado de tudo que se passava na corte.
Lembro-me bem do exemplar de O Visconde de Bragelonne, que mamãe possuía: tinha gravuras magníficas apresentando, por exemplo, Aramis passando de uma sala para outra, com seu traje episcopal e com o ar majestoso de um homem completamente estável na sua condição de Bispo, mas, ao mesmo tempo, com o olhar esperto de alguém que se encontra disposto a pular de repente, do primeiro andar de um prédio sobre um cavalo que já está pronto, esporeá-lo e partir para a fronteira.
Porthos, o barão parvenu
Tendo-se retirado também da carreira das armas, Porthos, homem oportunista, casou-se com uma mulher muito rica, a qual lhe pagava as comilanças… Além do mais, tendo herdado toda a fortuna do pai, ele passou a morar num castelo que mandou enfeitar, engalanar e dourar. Engordou prodigiosamente e possuía uma bonita carruagem, com uma espécie de figura mitológica esculpida em madeira dourada e tocando uma cornetinha, a qual era o símbolo de Monsieur de Porthos, cujo luxo um tanto cafajeste deixava epatée35 a cidadezinha onde ele residia.
Era uma espécie de barão parvenu36.
A morte de D’Artagnan, na aventura e no panache
Recordo-me que, apesar de os quatro mosqueteiros não terem mais contato entre si, houve um impasse em que D’Artagnan – o qual, sempre pobre, continuava na carreira das armas – precisava ser apoiado pelos antigos amigos. Então, todos eles, inclusive Aramis, saíram de suas confortáveis tocas e entraram novamente em cena. Eu sentia um alívio quando a trama dos acontecimentos recompunha a relação entre os quatro.
Militar brilhante, D’Artagnan foi promovido pelo Rei a um alto grau no exército. Então, ele deixou a espadachinada para se tornar um chefe sábio, de cujo chapéu havia sido retirada a pluma da aventura.
Posteriormente, quando comandava tropas francesas em Maastricht37, numa batalha contra os holandeses, foi elevado ao marechalato, mas, no momento de receber o bastão de marechal, atingido por um tiro, caiu do cavalo e expirou.
D’Artagnan morre como tinha de morrer, na aventura e no panache. Se tivesse se casado com uma duquesa e falecesse abastado, na sua cama, esse fim não lhe seria conveniente, pois ele sempre havia compreendido bem que sua vida estaria realizada se morresse no campo de batalha.
A torcida dos ouvintes
Assim Dª Lucilia narrava Os Três Mosqueteiros, com muito mais objetividade do que eu o estou fazendo. Ela era minuciosa e dava um grande número de pormenores, para que a história fosse viva. Mas, com isso, alguns sobrinhos tinham uma espécie de sofreguidão de chegar à conclusão e pediam a mamãe que se apressasse. No fundo, o que havia no espírito deles era a torcida.
Eu fazia o contrário deles: interrompia-a, pedindo mais pormenores, o que ela aceitava com bondade, enriquecendo os fatos como podia.
O fim da história
Lembro-me também que, às vezes, durante a narração nós ouvíamos de repente passos no corredor – sinal de que uma pessoa mais velha vinha chegando – e tínhamos pavor de que entrasse na sala alguém da família para tratar de um assunto com mamãe. Isso produziria um enorme desagrado! E podia acontecer que esse assunto a obrigasse a se levantar e dar por encerrada a sessão. Seria o desastre!
Porém, em certas ocasiões, alguém já ia dizendo de longe:
– Lucilia!
Ela respondia dali mesmo e a pessoa logo se retirava. Que alívio!
Tenho lembrança de que essas histórias de mamãe duravam uma hora ou mais, com enorme agrado para mim. Naturalmente, os pais dos meninos percebiam que os filhos estavam interessadíssimos pela narração, a qual lhes ajudava a cultivar o espírito. Então, eles mesmos não saíam logo de nossa casa, mas permaneciam conversando por longo tempo.
Entretanto, em certo momento, chegava a hora de se retirarem. Os pais entravam na sala, rindo amavelmente, mas dando sinais de que não estavam dispostos a esperar mais, e os filhos entendiam que tinham de sair.
Então, mamãe se levantava e estava encerrada a história.
1 O século XIX.
2 Alexandre Dumas Davy de la Pailleterie (1802-1870), escritor francês, famoso por seus dramas românticos, baseados na História.
3 Luís XIII (1601-1643), Rei da França, filho de Henrique IV e de Maria de Médicis.
4 Armand Jean du Plessis, Cardeal de Richelieu (1585-1642). Prelado e político francês, sucessivamente Secretário de Estado e Ministro do Rei Luís XIII. Favoreceu o absolutismo régio e a preponderância francesa na política europeia. Foi reformador das finanças e do exército, impulsionou o poderio colonial de seu país e fundou a Academia Francesa.
5 O Athos imaginário do romance de Alexandre Dumas foi inspirado num personagem histórico: Armand Sillègue d’Athos d’Autevielle (1615-1643).
6 Títulos de alta nobreza na França.
7 Em francês: o Senhor Conde.
8 Em francês: criado.
9 Em francês: cheio de admiração, maravilhado.
10 Para criar esta figura, Dumas inspirou-se num personagem histórico, da época do romance: o mosqueteiro Henri d’Aramitz, do qual se ignoram as datas de nascimento e morte.
11 Em francês: ação de taquiner. Divertir-se contrariando outrem em pequenas coisas, sem maldade.
12 O Porthos imaginário do romancista também foi inspirado num personagem verdadeiro da época da narração: o mosqueteiro Isaac de Portau (1617-?).
13 Em francês: literalmente, novo-rico; pessoa de nível modesto que enriqueceu em pouco tempo.
14 Charles de Batz, Conde de Montesquiou e senhor D’Artagnan (1615-1673), fidalgo francês, capitão de mosqueteiros sob o reinado de Luís XIV.
15 Natural da Gasconha, antiga região francesa, entre o Rio Garonne e os Pirineus.
16 Em francês: apelativo dado aos filhos não primogênitos.
17 Godofredo de Bouillon (1061-1100), Duque da Baixa-Lotaríngia (nos atuais Paises-Baixos e Bélgica) e um dos chefes da Primeira Cruzada. Eleito soberano de Jerusalém em 1099, recusou-se a utilizar o título de Rei.
18 Em francês: gentil-homem, fidalgo.
19 Charles de Gaulle (1890-1970), general e estadista francês. Organizador e líder da resistência francesa contra a invasão alemã durante a Segunda Guerra Mundial, e Presidente da Quinta República Francesa de 1959 a 1969.
20 Em francês: “Certa ideia da França”.
21 Milady de Winter Clarick, um dos personagens imaginários de Os Três Mosqueteiros.
22 A fortaleza do Louvre, construída em Paris pelo Rei Filipe Augusto no ano de 1204, foi utilizada como residência por diversos Reis da França.
23 Ana Maria de Habsburg (1601-1666), Rainha da França, exerceu a regência durante a minoridade de seu filho, Luís XIV, após a morte de Luís XIII.
24 Philippe de Champaigne (1602-1674), pintor francês de origem flamenga.
25 Historicamente, o Cardeal de Richelieu mantinha uma política externa tendente à luta contra a casa de Habsburg.
26 Em francês, literalmente: o caso das agulhetas.
27 George Villiers, Duque de Buckingham (1592-1628), personagem histórico, favorito do Rei Jaime I da Inglaterra e, posteriormente, também do filho deste, Carlos I.
28 Historicamente, o Duque de Buckingham foi enviado à França com a missão de solicitar a mão da Princesa Henriqueta de França para o futuro Rei da Inglaterra, Carlos I.
29 Em francês, tratamento dado aos reis, equivalente a senhor.
30 Em francês: cavalo de tração, grande e forte, originário da região de Perche (França).
31 Na obra de Alexandre Dumas, as duas aiguillettes que faltavam haviam sido roubadas ao Duque de Buckingham por Lady Clarick, a mando de Richelieu, e já se encontravam em poder deste.
32 Em 1627, o Cardeal de Richelieu fez sitiar a cidade de La Rochelle (França), a qual se encontrava em poder dos calvinistas, e obteve a sua rendição.
33 Em francês: envolto, coberto de cortinados.
34 Em francês: aprumo, desenvoltura.
35 Em francês: admirada, pasmada.
36 Em francês: diz-se daquele que foi elevado a uma alta condição, sem adquirir a educação correspondente.
37 Cidade da província de Limburg (Holanda). Foi durante o cerco dessa praça forte que faleceu Charles de Batz, o D’Artagnan histórico.
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