No Rio de Janeiro e no litoral Paulista
Eu tinha quatro ou cinco anos, quando meus pais foram passar uma temporada de lazer no Rio de Janeiro. Os trens daquele tempo apresentavam um grande luxo interior e eu ficava encantado com a decoração dos vagões do noturno da Central do Brasil: lindos laçarotes de madrepérola sobre excelentes madeiras nacionais, percorrendo de ponta a ponta a junção entre o teto e as paredes.
Visita ao Conselheiro João Alfredo
Fomos visitar o Conselheiro João Alfredo, que morava na então Capital Federal. Meus pais, desejando que minha irmã e eu conhecêssemos o grande homem de minha família paterna – já muito idoso e podendo falecer a qualquer momento –, me explicaram que ele era um personagem nacional, reputado por sua grande inteligência e pela glória da libertação dos escravos. Mamãe, que também o conheceu por ocasião dessa viagem, disse-me:
– Preste bem atenção: o Conselheiro João Alfredo não é um titio qualquer, mas um grande titio e um dos mais importantes homens do Brasil. Portanto, não se devem dizer coisas de criança diante dele. Veja bem como você vai se comportar.
Todos conheciam meu hábito de comentar tudo o que me passava pela mente, sobre o que via. Às vezes, esses comentários não eram tidos como muito corteses…
Eu esperava encontrar diante de mim um grande homem! Mas, quando cheguei ao seu escritório, no andar superior da residência, deparei-me com um ancião tão acabado que me decepcionou! Eu nunca tinha visto uma pessoa tão idosa! Era de estatura pouco elevada e bastante magro. Entretanto, tinha de fato muito fogo e vitalidade no olhar, junto com uma convicção que parecia penetrar nos seus interlocutores de lado a lado. No seu modo de falar, ele irradiava uma inteligência muito pernambucana, ou seja, nada sonhadora, mas propulsora e cheia de força de vontade!
Era também muito amável. Naturalmente cumprimentou meus pais com toda atenção, mas encontrou qualquer coisa de engraçado em mim, pois recordo que, quando me estendeu a mão, puxou-me para junto dele dando uma risada e dizendo:
– Oh! Você, então, é o Plinio?
Eu pensei: “Que coisa é essa? Recomendaram-me que me comportasse bem e estou sério. Por que ele está achando graça em mim? Não vou responder ao seu riso”.
Meus pais sentaram-se perto dele e começou a conversa. Em certo momento, não achando graça no assunto tratado, escapuli de dentro do grupo e comecei a circular entre os móveis do escritório e do terraço da casa, sem que me deixasse de acompanhar o olhar afetuoso e apreensivo de mamãe, receosa de que eu surpreendesse o tio com algum dos muitos ditos inesperados de que era “useiro e vezeiro”…
Em certo momento, entrei numa sala e encontrei a esposa do Conselheiro, a tia Sinhá, que eu também não conhecia. Apesar de idosa, era a senhora mais bonita que eu tinha visto em minha vida! Minha avó, Dª Gabriela, era uma dama imponente, mas a tia Sinhá deixava-a longe em matéria de beleza. Era alta, majestosa e muito bem vestida. Uma senhora tão superior que fiquei encantado! E havia quatro ou cinco negrinhas acocoradas no chão, em torno dela, que se dispersaram rapidamente quando entrei, como um bando de andorinhas. Ela, percebendo quem eu era, levantou-se logo com muita amabilidade e foi cumprimentar meus pais.
Continuei observando os objetos da casa e de repente parei no meio da sala de visitas, junto a uma estante giratória que tinha, no alto, um pequeno monumento de ouro com a figura de um homem em atitude de discurso, tendo uma perna para a frente e ostentando um brilhante no peito. Era o Conselheiro, representado nessa jóia, que lhe tinha sido dada pelos ex-escravos do Rio de Janeiro, quando assinou o decreto da libertação deles.
Analisei atentamente aquela figura, voltei-me e interrompi a prosa dele – primeira extravagância e infração às boas regras – perguntando-lhe:
– Meu tio, quem é esse homem de ouro, aí?
Mamãe já estava com “o coração na mão”… E ele, com aquela afabilidade que o caracterizava, respondeu:
– Meu filho, é seu tio!
– Mas é o senhor que está aí em cima?
– É.
Olhei para ele com atenção e depois procurei o brilhante no seu peito, mas não o encontrei. Então suspirei profundamente e comentei:
– Ah, mas não parece mais…
Senti um olhar de reprovação da parte dos circunstantes, pois, no fundo, estava chamando o grande estadista de decrépito. Naquela época, quando um homem chegava à velhice adquiria uma venerabilidade que todo o mundo admirava e cortejava. Mas ele respondeu muito amavelmente:
– Um dia você passará por isso também. Quando tiver a minha idade, não vai se parecer mais com o que você será quando for moço.
Então mamãe chamou-me para junto dela, a fim de distrair-me, e pediu ao Conselheiro:
– Tio João Alfredo, o senhor não poderia escrever um bilhetinho para o Plinio, a fim de ele conservar uma lembrança?
Ele, com muito boa vontade, respondeu:
– Vou escrever.
Levantou-se, foi junto à escrivaninha e, para o meu assombro, pôs quatro pares de óculos sobre o nariz! Se não me engano, um deles era colorido. O venerando Conselheiro estava com a vista muito gasta…
Eu fui contando: “Um, dois, três, quatro!”. E pensei: “O que é isto? O que aconteceu com esse homem?”. Felizmente, dessa vez contive o meu comentário. Talvez mamãe tenha rezado para evitar uma nova inconveniência.
Ele escreveu um cartão muito amável e encantador, dirigindo-se mais a minha mãe do que a mim, pois a elogiava, juntamente com os homens da família dela, afirmando esperar de mim que eu fosse um continuador deles. O Conselheiro era muito mais célebre do que todos eles, mas tratava-se de uma gentileza.
De fato, essa visita causou-me uma profunda impressão, para agrado de minha mãe que, até o fim da vida, gostava de contar esses episódios, elogiando muito a tia Sinhá e a inteligência do Conselheiro. Mamãe contava também que essa senhora quase nunca saía de casa, nem sequer para fazer visitas, indo apenas à Missa. Entretanto, o tio João Alfredo sempre pronunciava um grande discurso no começo do ano parlamentar e, para essa ocasião, ela mandava vir um vestido novo da Europa, pois o Conselheiro desejava que sua esposa comparecesse lindíssima para assistir a essa solenidade! Depois, voltavam juntos para casa, de braços dados.
Uma gravata furtada sem malícia
Eu faço uma confidência: uma vez cometi um roubo!
Lembro-me do fato perfeitamente. Durante uma temporada de férias no Rio de Janeiro, meu pai foi fazer compras e me levou, com minha irmã, para passearmos um pouco. Entramos numa loja e, enquanto ele estava ocupado, começamos a andar. Em certo momento encontrei uma espécie de tubo onde estavam expostas algumas bengalas. Aquele objeto chegava à altura do meu queixo. Muito curioso, debrucei-me ali para ver o que havia dentro e vi, no fundo, uma gravata. Não sei se era um objeto velho que alguém jogara lá, ou se tinha caído de uma estante, mas achei aquelas cores uma beleza!
Olhei para meu pai: estava longe e falava com um vendedor, tendo um jeito muito sério e decidido. Pensei: “Se eu lhe pedir isto, ele vai pensar que é uma bobagem e não quererá comprar, dizendo que ainda não uso gravatas e que ele não deseja esta para si. Mas eu quero, absolutamente, esse objeto! Então, o que fazer?”.
Enfiei o braço ali dentro, puxei a gravata para fora, enrolei-a e guardei-a na minha roupa. Mas, imediatamente, achei que havia cometido uma ação gravíssima e não tive coragem de confessá-la a papai! Mamãe não estava lá… Então contei para a minha irmã, baixinho:
– Você sabe? Cometi um roubo!
Ela, muito viva, segurou-me com força pelas mãos e disse:
– Você cometeu um roubo?!
– Sim, olhe aqui esta gravata que estou levando!
– Mas você precisa esconder isso de papai, pois senão ele vai ficar zangado!
– Pois escondo.
Ele terminou as compras e saiu conosco, mas minha irmã olhava em todas as direções, para ver se a polícia estava atrás de mim… à procura da gravata. Tomamos um automóvel, meu pai sentou-se de um lado, eu do outro e ela no meio. De vez em quando, passava um carro da polícia e ela sussurrava:
– Vieram nos pegar! Vieram nos pegar! Esconda a gravata!
Eu empurrava a gravata para dentro da roupa…
A angústia foi tão enorme e passaram tantos policiais – inclusive a cavalo – que, após chegarmos ao local onde estávamos hospedados, dirigimo-nos depressa para o quarto de mamãe, a fim de evitar que eu fosse preso. Ao menos ela me protegeria!
Mesmo assim, não falei com ela sobre isso e fui trancar-me no meu quarto. Se a polícia viesse, pelo menos encontraria um obstáculo… Afinal, os perigos se acumularam de tal modo que não agüentei o peso da responsabilidade e procurei meu pai:
– Papai!
– O que é?
– Eu cometi um roubo.
– O que você fez?
Puxei o objeto, dizendo:
– Roubei esta gravata.
– Que porcaria é essa?
– Eu a roubei…
– Por que você roubou isso? Você por acaso usa gravata? O que vai fazer com ela?
– É linda…!
– Isso é um pano que não vale nada. E você não sabe que não se deve roubar?
– Sei…
– Dê-me cá essa gravata! Amanhã você vai comigo à loja para restituí-la e eu vou dizer que você a roubou.
– Rosée não vai?
– Não vai. Só nós dois.
No dia seguinte, fui apavorado! Mas ele estava tão calmo, que julguei não haver perigo. Entrou lá e disse ao vendedor:
– Olhe, o menino tirou uma gravata daqui e veio restituí-la.
O homem deu risada, mas meu pai tratou do caso com muita seriedade, para me formar, e ainda deu-lhe várias moedas, deixando-o muito contente. O assunto se resolveu sem a intervenção da polícia! Além disso, creio que a gravata era de um pano tão ordinário que meu pai gastou mais com o táxi do que gastaria com ela se a tivesse comprado.
Fiquei aliviado porque, muito mais do que medo, eu estava desgostoso por haver agido mal. Sentia ter feito algo vergonhoso para mim e para toda a família, e achacava-me a idéia de que aquele objeto não era meu, mas de uma outra pessoa e não podia permanecer comigo. Eu percebia, portanto, ser preciso dissociar-me daquela ação de qualquer forma. Era a voz da consciência.
Temporadas em Santos; entusiasmo pelo mar
Durante o inverno e em temporada de férias, as famílias de certa representação em São Paulo iam para Santos e Guarujá, ou, mais raramente, para fazendas no interior. O ponto de reunião no litoral era o Hotel Parque Balneário, o melhor da região.
Estive lá inúmeras vezes, mas implicava com o nome Parque Balneário, pois parecia-me ser uma expressão incorreta. Balneário quer dizer lugar próprio ao banho, o que podia ser normal, já que o hotel estava em frente ao mar, junto à praia do José Menino. Mas por que chamá-lo de “Parque”? É verdade que o estabelecimento tinha um bom parque, mas não compreendia por que não se chamava simplesmente Hotel Balneário. Para mim, era uma extravagância.
A estação ferroviária de Santos era próxima de um braço de mar. E, quando chegávamos, aquele odor da maresia começava a deliciar-me. Tomávamos um automóvel que nos levava até a avenida Ana Costa e eu já sentia a proximidade da praia… Hospedávamo-nos em casa de tia Zili, mãe da Ilka.
O que mais me encantava nessas ocasiões era, sem dúvida alguma, o mar… Eu me extasiava com ele! Já o contemplara durante a nossa viagem à Europa, mas foi em Santos que tive a “explosão” de afinidade com o mar. Era um motivo de entusiasmo fixo, uma “idolatria” simplesmente inimaginável! Aquela água salgada me fascinava além de todo limite! Contemplar o mar e vê-lo mover-se ou estar calmo era para mim um regalo intenso, enorme e colossal, dando-me um gáudio que me tomava por inteiro.
Não me lembro de ter acordado alguma vez à noite por estar aflito ou preocupado, pois meu sono foi sempre muito sossegado. Em Santos, porém, eu despertava durante a madrugada pelo desejo de ir à praia do José Menino, que estava a trezentos metros da casa. Percebia, pelas frestas das venezianas, que a aurora ainda não tinha raiado e então ia até o terraço, o qual permanecia sempre aberto, para verificar. Olhava as estrelas e pensava: “Mas quando elas resolverão terminar esse itinerário?”. Ficava desacoroçoado por ainda não ter começado o dia, voltava para a cama e dormia mais um pouco, com a esperança do banho de mar. Afinal, quando me levantava de manhã, que alegria! Tal era a minha paixão pelo mar!
Eu via a enseada como uma grande baía e pensava ser aquele o maior oceano do mundo. De maneira que a grandeza de todos os mares estava, para mim, representada ali, e aquele local me parecia a faixa de terra mais parecida com o Paraíso.
O panorama da praia do José Menino era muito aberto e a beleza se apresentava nele em três aspectos conjugados: o mar, a areia e o céu luminoso. Com a vantagem de não haver ainda ali prédios de apartamentos.
À direita, existe uma ilha chamada Urubuqueçaba, junto à qual há um rochedo rosado muito bonito. Os navios entravam e saíam do porto apitando e com suas bandas de música tocando, seguindo no meio de dois cabos de tamanhos iguais, cobertos por muita vegetação, que formavam uma espécie de abertura simétrica. Na parte esquerda, em certa altura, havia uma fortaleza portuguesa bastante pitoresca com um torreão muito bonito.
O banho de mar
Em Santos, acordávamos mais cedo do que o normal e eu saía de manhã, com minha irmã e minha prima Ilka, sob a vigilante tutela da Fräulein, para o banho de mar. Éramos obrigados a ir descalços, percorrendo uns três ou quatro quarteirões, da casa da minha tia até a praia, o que era para mim um tormento, pois qualquer lasquinha de pedra um pouco aguda que me atingisse a planta dos pés causava-me forte incômodo. Chegando à areia, ela me dava uma sensação muito agradável e fazia uma transição aveludada e quase “paradisíaca” antes de entrar na água.
Para mim, aquela era a praia arquetípica! Todas as coisas pareciam sorrir, sobretudo a areia, muito branca, suave, encantadora, seca e muito iluminada pelo sol da manhã, quando este ainda não queimava. O mar estava claro pela luz do dia e suas ondas morriam delicadamente numa certa franja, molhando apenas a parte da areia pertencente ao reino das águas. Um mar “bem-educado”! Ele formava, para mim, um todo com a brisa.
Eu usava maillot de menino, com braços e pernas descobertos e ficava fora de mim de satisfação, com aquele vento! Este parecia-me ser o próprio bafo do oceano e dava-me a impressão de que tudo quanto havia de deleitável no mar vinha até mim, mesmo antes de eu entrar nele, sob a forma da brisa que me envolvia deliciosamente.
A minha prima Ilka tinha uma exuberância própria à família do pai dela, enquanto eu era muito tranqüilo. Quando cheguei diante do mar pela primeira vez, eu me detive e ela disse:
– Bobo! Não perca tempo! Entre aqui comigo!
E já começou a me arrastar. Pensei: “Não vou brigar, pois isso me dará trabalho, mas vou tirar a minha mão da sua. Que ela entre sozinha até o fundo, se quiser, mas eu vou ficar na beirada!”.
Curiosamente, nas primeiras vezes eu tinha um reflexo singular: o receio de molhar o meu corpo e também o meu maillot. O primeiro contato do meu tronco com a água fria parecia-me desagradabilíssimo e, então, eu entrava devagar. Entretanto, certo dia, pensei: “Isto é uma loucura, pois quando eu estiver inteiramente molhado nem vou pensar mais nisso! Então, vou dar um passo difícil: jogar-me-ei na impressão desagradável e em poucos minutos estarei na delícia. Assim devem ser feitas as coisas penosas! De uma vez, num só tranco!”.
Atirava-me, então, dentro da água e logo sentia aquele “delírio” pelo banho de mar.
Após o banho, prazeres intelectuais
Ao voltarmos do mar, às vezes minha tia preparava alguma bebida para nós, nos dias frios. Por exemplo, conhaque à moda portuguesa, com gema de ovo batida e outras coisas, fazendo espuma. Eu era dos primeiros a beber e tomava o cálice maior que houvesse na bandeja, o que mamãe não toleraria se estivesse presente, pois o homem deve ceder sempre a primazia às senhoras e, portanto, eu devia oferecer a bebida a Rosée e Ilka antes de servir-me. Uma delas então me dizia:
– Olha aqui, beba num gole só, para aproveitar melhor.
– Você está enganada: vou beber aos golinhos.
Eu achava aquilo simplesmente delicioso! A bebida alcoólica penetrava por todos os meandros da espuma, como se esta fosse uma esponja, o que era muitíssimo agradável! Depois eu fazia elucubrações, pensando: “Como seria bom se no Céu houvesse coisas assim para tomar!”. Para mim, a clássica idéia do Paraíso, com uma nuvem para sentar, uma harpa ou um violino, só teria sentido se houvesse também comedoria muito gostosa e outras coisas…
Depois, tomávamos banho para tirar o sal do corpo, vestíamo-nos e íamos almoçar. Havia uma velha senhora de cor, empregada de minha tia, chamada Bibi. Ela preparava um feijão com folha de louro, tão delicioso como nunca comi depois em minha vida! E descobri que colocar as migalhas de pão no caldo, para embebê-las, dava um resultado mais gostoso do que morder um pedaço de pão e depois tomar o feijão. Aquilo me dava prazeres intelectuais especiais.
No Hotel Parque Balneário, encantos pelo toldo laranja
Às vezes, almoçávamos na sala de jantar do Hotel Parque Balneário, a qual me parecia enorme. Ao entrar, era preciso descer três ou quatro degraus. Aquela sala estava cheia de pessoas da melhor sociedade de São Paulo, cumprimentando-se e dizendo amabilidades de uma mesa para outra. Os garçons passavam com fisionomia de alegria, carregando quatro ou cinco pratos, permaneciam em atitude de espera, ou davam alguma explicação. Um conjunto musical tocava durante as refeições, localizado num pequeno palco. Sentia-se no ar um aroma de comidas finas.
Eu fazia parte do séqüito de vovó, cuja entrada era um acontecimento! Íamos para uma mesa de lado e começavam a servir o nosso almoço. Não preciso dizer que eu estava com muito apetite.
Para mim, aquela refeição era deficitária, pois constava sempre de peixes – em geral, com molho de manteiga e alcaparra – e de um frango pouco saboroso. Mas havia ali um ótimo pão, uma excelente manteiga e uma água fresquíssima, vinda das montanhas. Sempre de bom humor, eu me contentava com isso e almoçava uma boa quantidade de pão com manteiga. Bebia uma jarra inteira daquela água e parecia-me haver tomado apenas um copo!
Existia no fundo da sala uma grande janela de vidro transparente, tendo por trás um enorme toldo alaranjado. Então, entrava na sala uma luz colorida, ligeiramente dourada, dando-me a impressão de uma laranja iluminada por dentro! E eu queria decifrar o significado daquela cor, que me trazia uma forte sensação de alegria, de esplendor e de segurança de vida. Eu passava uma boa parte do almoço olhando para aquele toldo.
Aquilo fazia um todo com o murmúrio das pessoas educadas e com o tom discreto da música, Eu me sentia bercé [ninado] por todo o ambiente e tinha um grande contentamento, mas o toldo do fundo era a nota dominante do conjunto e sua cor simbolizava o estado de alma que eu desfrutava, parecendo representar todas as grandezas e magnificências da vida.
Passeios na praia
À tarde, fazíamos um passeio pela praia, com chapéu de palha, balde e pazinha. Eu usava roupas feitas especialmente para ir a Santos, de um tecido chamado palha-de-seda, que me dava realmente certa impressão de palha. Eram trajes muito folgados e bufantes para ajudar a agüentar o calor. Eu tinha encantos pelo vento e abria os braços, sentindo a ventania da praia que penetrava por minha roupa. Aquela fantástica respiração cutânea e pulmonar me dava uma euforia especial e uma alegria intensa de viver!
Eu também gostava enormemente de ir até as redes dos pescadores ou, na vastidão da praia vazia, olhar certas aves de vôo curto. Elas corriam mais do que voavam, dando saltos, mas, sendo necessário, às vezes voavam até o alto de uma árvore. Eu notava que seus filhotes andavam sozinhos, enquanto os “pais” estavam perto. O pequeno fazia algumas tentativas de vôo e depois o “pai” ou a “mãe” encostava-se nele e ajudava-o a aumentar o pulo, ensinando-o a voar.
Freqüentemente, eu encontrava orifícios na areia, punha o dedo neles e, em geral, tirava alguns caramujos. Estes eram de belezas variadas: alguns comuns, outros bonitos, um ou outro era lindo. Eu gostava de abrir os buraquinhos para ver se encontrava um caramujo lindo e, quando achava um, levava-o para casa e guardava-o, porque era belo.
Às vezes, as ondas traziam à praia umas conchas oblongas com duas placas. Não eram especialmente bonitas por fora, mas, abrindo-as, encontrava-se dentro uma substância cor-de-rosa “esmaltada”, quase vermelha e muito bonita, sobretudo em certos pontos. Eu, que sempre gostei do vermelho, ficava encantado! Passava a mão pela concha, mexia-a e fazia rutilar aquela cor à luz do sol, e depois levava-a também para casa. Contemplando aquela pequena maravilha – ao nível de uma criança, sem valor econômico nenhum –, Nossa Senhora me fazia entender, de modo implícito, algo do Céu, que eu imaginava como estando além daquela massa de ar azul que via nas alturas. Eu pensava que, furando essa capa, poderia encontrar o Paraíso celeste. Então, quando a luz do sol incidia sobre a concha, produzindo um belo efeito, eu tinha a idéia de que em algum lugar do Céu haveria umas “vermelhidões” mais bonitas do que essa.
Eu deixava tudo para poder ver as maravilhas daquele vermelho, ou desta e daquela outra coisa que o mar me fazia contemplar. Guardava aquelas conchas e as admirava escondido, pois certas pessoas não compreenderiam que eu permanecesse tanto tempo olhando-as. Depois jogava-as fora, com certo receio de que minha atitude fosse considerada extravagante…
Às vezes, eu queria simplesmente admirar as águas, com seu característico rumorejar que me extasiava. Tudo isso me encantava, por sentir que era muito maior do que eu, de uma beleza que ultrapassava as proporções que havia em meu espírito, enquanto capacidade de apreender aquilo. Eu me regalava por encontrar-me com algo que era superior a mim, por admirar, sentir-me pequeno e dar glória a Deus, Criador. E gostava de pensar também como seria Ele, autor de todas essas coisas…
Olhando o mar, profundas reflexões
Eu andava também nos canais de Santos, que tinham amuradas de pedras para evitar acidentes. Costumava ir até a extremidade deles, conseguindo assim isolar-me, o que nem sempre era fácil. Ali ficava, afinal, a sós! Delícia das delícias! Sem nenhuma criança de minha idade para estar conversando comigo ou fazendo-me perguntas…
Contemplava então o oceano e pensava: “No outro lado está a Europa, terra dos castelos, dos sonhos e das maravilhas. Os rios da França desembocam neste mar…”. Era como se me encontrasse na ponta de um tapete, em cujo extremo oposto estivesse um conto de fadas… Mas que tapete! Quase mais bonito que o próprio conto! E eu lamentava não poder permanecer sozinho durante horas, olhando o movimento das águas, com aquelas ondas rangées [alinhadas] que avançavam em ordem, mas que de repente se tornavam mêlées [mescladas], num grandioso tumulto marítimo… Aquele rumorejar, aquela variedade, aquela grandeza e aquela massa de água enormemente maior do que eu, me encantavam…
E refletia: “Eu deveria saber pensar e dizer alguma coisa a respeito disso. Vejo que há no meu espírito algo que não sou capaz de pensar nem dizer, em parte por não ter quem converse comigo sobre essas coisas. Se houvesse aqui um menino com quem eu pudesse levantar esses temas! Nós conversaríamos sobre o mar! Mas os meninos não gostam de conversar sobre o mar…
“Eu também não quereria um adulto, pois estragaria a conversa, dando-me informações sobre peixes, siris e quilômetros… E isso não quero! Desejo outra coisa…”.
Então, eu permanecia com uma espécie de idéia inacabada a respeito do que contemplava, com a sensação confusa de que era preciso conversar muito com um menino hipotético, fazendo vários aprofundamentos e abrindo várias “cortinas” intelectuais, para chegar a uma noção e a um conceito. Depois iria “fechando as cortinas” retrospectivamente e diria: “Agora compreendo: cada uma dessas ‘cortinas’ é um comentário do mar, que me ajuda a entendê-lo. Depois analisarei novamente esses vários aspectos e neles compreenderei ainda melhor o mar. Cada ‘cortina’ não é um obstáculo, mas um livro que me diz algo a respeito dele. Abrindo-o, viro página por página e chego assim a conhecer como é o mar. Então volto atrás e digo: ‘Ah, o mar! Eu entendi uma coisa fabulosa, pois cheguei ao fundo do conhecimento sobre ele’ ”.
A morte do Pe. Chico
Mons. Francisco de Paula Rodrigues, chamado “Padre Chico”, era um sacerdote ilustre e eminente que viveu em São Paulo no fim do século XIX e começo do XX, mas que eu não conheci. Era célebre pela sua caridade e compaixão para com os mais necessitados, e muito relacionado com a classe alta da cidade. Obtinha um grande número de donativos que ele mesmo distribuía depois nos subúrbios pobres, sempre conversando com as pessoas e animando-as.
Essa caridade granjeou-lhe uma enorme popularidade e era tido também como o maior orador sacro de São Paulo. Teve uma influência enorme sobre as senhoras e reconduziu a grande maioria delas à prática dos Sacramentos, da qual estavam afastadas nessa época. Por isso, o elemento feminino da classe rica, no meu tempo de infância, era muito católico. Ele foi, portanto, um verdadeiro apóstolo na cidade e, várias vezes, foi nomeado governador ou vigário capitular da Diocese de São Paulo, durante alguns períodos de vacância da Sé.
Ele faleceu no dia 21 de junho de 1915. Recordo-me de que nossa família estava no Hotel Parque Balneário, em Santos, quando notei uma desolação em todas as pessoas. Havia um baile preparado para aquele dia, mas foi cancelado. Muitos vestiram-se de luto e voltaram a São Paulo para o enterro. Percebi, pelo que ouvia, tratar-se do funeral do Pe. Chico. De tal maneira ele era respeitado que muita gente sentiu a morte dele como se fosse a de um parente.
Eu soube depois que, sendo bem idoso, ele foi desfazendo-se de alguns compromissos, entre os quais estava o atendimento a minha família, e aconselhou minha avó a procurar um outro sacerdote. Ela, naturalmente, perguntou-lhe quem poderia ser e ele respondeu:
– Se quiser encontrar um bom sacerdote, inteiramente de acordo com meu espírito e minha formação, procure o Pe. José Marcondes Pedrosa, pároco da Igreja de Santa Cecília.
Ela disse:
– Ah! Mas é o nosso pároco!
A família transferiu, então, ao Pe. Pedrosa toda aquela aura de respeitabilidade que cercava o Pe. Chico. E parece-me que, de fato, ele refletia bem exatamente o estilo de Mons. Francisco de Paula. No seu modo de ser e de se apresentar, era o tipo do sacerdote modelado segundo o gênero em curso nos pontificados de Pio IX, Leão XIII e São Pio X.
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