O caminhar da esperança para a seriedade e o sacrifício
Desde menina, Dona Lucilia possuía a noção vaga de que um imenso holocausto a esperava, e aceitou sem fraquejar. Era, no fundo, a previsão do isolamento e da renúncia total sem, entretanto, perder a noção de sua dignidade diante de Deus, porque a isso corresponde uma forma de excelência da alma.
Alguns anos atrás, ao ver uma fotografia de mamãe quando moça, na idade em que estava frequentando a sociedade – ela se casou um pouquinho tarde, com trinta anos de idade –, tinha muita incompreensão em relação àquela moda de chapéu como o que ela usava. É curioso, mas revendo a foto hoje, parece-me interessante, muito bem cortado e colocado. Aliás, era mandado fazer sob medida, não se comprava em loja.
Um peregrinar rumo ao sacrifício
Vê-se na sucessão das fotos dela o caminhar da esperança para a seriedade e o sacrifício, até chegarmos ao Quadrinho(1), onde a imolação já está feita. Não é que não haja seriedade na foto da juventude, mas a nota preponderante naquela tirada em Paris já é a seriedade. Mais ainda na inauguração do “Legionário”; e no Quadrinho a imolação está concluída.
Naquela fotografia antes do casamento, apesar de certa juventude, nota-se que “animam suam in manibus suis semper tenens”(2). Na tirada em Paris, a maturidade já está entrando; ela não pensava que se lhe pedisse tanto. Na primeira ela vê de frente um panorama maior do que supunha e está começando a análise. Na de Paris, a análise já se encontra adiantada e na do “Legionário” está avançada a imolação.
No Quadrinho, ela já está pronta para o que vier, como a dizer: “Estou pronta para a imolação!” A imolação está feita. É o que procuro exprimir quando digo, referindo-me a esta pintura: “Ite, vita est”(3). Quer dizer, já é meio entrando na glória. “Consummatum est”(4).
Essa era quase sua fisionomia habitual, mais acentuada até quando eu saía com alguma “truculência”: ela ria, dava uns toquezinhos com os dedos em minha mão, mas com muito comprazimento. Um equilíbrio extraordinário. Em todas as atitudes, mantinha um olhar profundo, uma elevação de espírito enorme.
Aliás, eminentemente brasileira. Não tem nenhuma nota não brasileira aí. Propriamente a vocação unitiva, comunicativa do povo brasileiro, de induzir um certo carinho, um certo afeto; isso ela possuía muito.
Explica-se melhor isso tomando em consideração que as virtudes que Dona Lucilia via em seu pai – Dr. Antônio Ribeiro dos Santos, a quem não conheci – de fato correspondiam às que ela possuía. Às vezes, tinha-se a impressão de que mamãe estava descrevendo a si própria sem perceber.
Um mundo relaxadamente católico
A religiosidade do Brasil era a de Portugal, por onde havia uma continuidade muito marcada do ambiente religioso português no Brasil. Não obstante, havia uma peculiaridade: no tempo de Dr. Antônio, o Brasil era ainda marcado por uma religiosidade profunda de povos que, apesar de estarem decadentes, viviam se iludindo sobre a própria decadência. Aqueles personagens dos quadros de Salinas(5), por exemplo, são uns decadentes “dos quatro costados”, mas não dão a impressão de estar pensando na própria decadência; eles abstraem, por exemplo, a ideia de que uma Inglaterra poderosa e florescente está tomando conta do mundo, e que a Espanha de Dom Felipe II não é mais nada. Eles vivem como se estivessem no píncaro. E Portugal, à maneira menor, fazia tal e qual.
Naturalmente, sabiam haver nações protestantes, mas estas não faziam parte do circuito deles e, neste sentido, não existiam. Para eles o mundo inteiro era católico e não lhes passava pela cabeça que algum dia pudesse deixar de sê-lo.
Mas, por outro lado, era um mundo relaxadamente católico, e também não lhes passava pela cabeça deixarem, eles mesmos, de serem relaxadamente católicos. Logo, a ideia de um mundo fervorosamente católico, como nós o sonhamos, não entrava nessa religiosidade, pura e simplesmente.
Isso era assim pela América do Sul inteira. Por certo, havia ainda traços ardorosos e até magníficos dessa religiosidade na Espanha como em Portugal, de onde se vê que a Espanha agredida por José Bonaparte reagiu como sabemos. Atacada, depois, por vários outros fatores, inclusive pela revolução de Franco, a Espanha reagiu magnificamente. Também, na mesma linha, agredida a Religião no Brasil; por exemplo, no tempo de Dom Vital, saiu aquela reação. Atacada no México, deu nos Cristeros; Garcia Moreno, no Equador, etc. Quer dizer, era um braseiro de dentro do qual as reações surgiam de repente. Coisas magníficas! Entretanto, um braseiro com algumas brasas fresquíssimas, alguns pedaços de lenha que ainda ardiam, e muita cinza suja, formando um conjunto.
Os tipos ideais desta gente eram, em geral, católicos muito bons, capazes de admirar, por exemplo, um Garcia Moreno e a Religião como devia ser praticada na classe alta da sociedade, onde ter acendradas virtudes morais ainda constituía um adorno necessário do homem.
Como Dona Lucilia pressentia algo da vocação de seu filho
Dona Lucilia idealizava as coisas e considerava que um grande número de senhoras do tempo dela eram assim. Ela, quando jovem, via o ambiente segundo esse prisma, sem perceber até que ponto ele estava podre, e formou a sua alma exatamente dentro desta atmosfera, tendo a Igreja como foco disso. A ruptura com o ambiente veio mais tarde.
Por outro lado, ela contava com grandes graças para o futuro que pelo menos realizariam uma plenitude desejada por sua alma, mas dentro do quadro de uma senhora do tempo e do ambiente dela.
Em relação a mim, ela pressentia um chamado, uma vocação para algo interior ligado a Deus, a um píncaro de alma que ela desejava realizar, ao qual esperava ascender, que de fato correspondia à santidade, mas ela não percebia que se identificava com a santidade.
É preciso levar em consideração que desde muito pequenino senti flutuar a meu respeito, em torno de mim, nas pessoas que moravam em casa – que eram muitas –, uma atmosfera de certa predestinação, não propriamente religiosa, mas na linha de um legado cultural, literário, político, etc., de meu bisavô, Dr. Gabriel, correspondente a uma espécie de herança jacente que ninguém da minha geração estava pegando, e que se sentia que eu era predestinado a pegar; como também a herança de meu tio-avô João Alfredo, ele mesmo tido como o rebento mais glorioso de uma família de muita ilustração e que, portanto, uma parte desta ilustração que nele brilhou tanto, em mim poderia brilhar também, com os talentos, a habilidade, a saliência dele. Então, qualquer prova de um pouco mais de inteligência que eu dava, sentia os olhares que diziam: “Está vendo, é isso mesmo!”
Eu percebia que na cabeça dela isso proporcionava a ideia de um homem brilhantíssimo de futuro, que aliasse a virtude de meu avô ao talento do Gabriel José e com o que passava por cima da genialidade do João Alfredo, e que isso tudo ia confluir em mim. É possível que isso existisse no espírito dela, porque ela mesma me tratava como um menino meio predestinado, discretamente, sem nunca me dizer.
Havia, portanto, uma espécie de espreita em torno de mim, e quando aparecia qualquer coisinha um pouco mais relevante de minha parte, eu percebia uma intercomunicação pelas minhas costas, que tomava com a minha negligência costumeira: “Isso é lá com eles. Eu vou ser aquilo que devo ser, e eles se arranjem lá com esses mitos.”
Entretanto, nisso não entrava da parte dela vaidades, invejas. Nunca percebi nela combates para jugular esse tipo de sentimentos. Notei, isto sim, uma resolução dolorosa, aceita e executada sem hesitação, gradualmente desenvolvida na medida em que os fatos exigiam, mas levada até o fim. As indecisões, as aflições do combate, eu nunca percebi.
Um imenso holocausto a esperava
Analisando diversas fotografias de mamãe, pude constatar também outra coisa: desde o começo, o holocausto levado até o último ponto, previsto e aceito. Era, no fundo, a previsão do isolamento e da renúncia total. No olhar dela nota-se uma tristeza de quem já previu o pior.
Cabe aqui a comparação com a agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto, porque Ele, que em nenhum momento hesitou, nem teve aflições de quem se sentia puxado para o lado oposto, entregou-Se inteiramente desde o primeiro instante, mas na medida em que Ele olhava o futuro que vinha chegando, começava a suar sangue. Porém, nunca Se sentindo cambalear. Não quero afirmar se mamãe cambaleou ou não. Desejo apenas dizer que ela viu desde o primeiro instante a crucifixão dela. Isso se verifica na fotografia dela ainda menina: é a noção vaga de que um imenso holocausto a esperava, e ela aceitou sem fraquejar em nenhum momento.
Não sei o que se terá passado no seu íntimo durante as provações que lhe sobrevieram, mas a atitude interna da alma dela, nessas ocasiões, foi de quem não tivesse sofrido a menor diminuição nessa superior elevação de que falei.
Quem analisa as fotografias dela no tempo de solteira não pode fazer a acusação de uma mulher tíbia que não fez nenhum esforço para frequentar os Sacramentos; é por excelência o que não havia. Entretanto, todo o aspecto combativo da Igreja ela veio a aprender comigo.
A meu ver, havia em Dona Lucilia uma tendência metafísica a partir da ideia de elevação, de perfeição moral. De acordo com o conceito existente no tempo dela, os santos eram muito raros. Mamãe não sabia que era contemporânea de uma grande santa, e a ideia de ela mesma ficar santa não lhe passava pela cabeça. Ela queria chegar até esse ponto elevado que vislumbrava, mas achava que ser santo era algo ainda muito mais alto.
A atenção dela estava muito mais voltada para o lado da santidade de Nosso Senhor Jesus Cristo e da alma como deve ser em relação a Ele do que para o lado socioeconômico, por onde a plenitude intuída por ela correspondia à sua missão de mãe de família.
Uma excelência da alma
Não obstante, Dona Lucilia gostava muito daquela dignidade temporal que ela possuía, não por vaidade, mas pela nobreza intrínseca da coisa, dentro do seguinte âmbito: toda família existe necessariamente num meio social e deve prezar sua situação sem menosprezar quem está abaixo, nem invejar quem se encontra acima.
Lembro-me da divisa de uma família francesa, aliás, muito nobre, os Rohan: “Roi ne puis, prince ne daigne, Rohan je suis – Ser rei não posso, de ser príncipe não sou digno, sou um Rohan”.
Ela não tinha no Brasil uma posição correspondente aos Rohan na França, mas era mais ou menos como quem dissesse: “Não sou desses páramos de uma família propriamente nobre da Europa; também não sou uma qualquer. Eu sou Lucilia Ribeiro dos Santos Corrêa de Oliveira, e isto eu prezo altamente.”
Era o valor metafísico da família, entendida como estirpe e com toda a sua patriarcalidade e, enquanto tal, tendo importância diante de Deus, porque a isso corresponde uma forma de excelência da alma. Quer dizer, propriamente, para pessoa de certo meio social convém que haja santidade correspondente à sua classe. É, portanto, um valor de alma. Dona Lucilia não desprezava quem não tivesse, absolutamente; mas quem tem deve valorizar isso e incluir como um dos elementos da sua santidade. Parece-me que isto está direito.
Neste sentido, mamãe era fortemente o contrário da Revolução, embora não fosse polemicamente contrarrevolucionária, pois toda a ideia da Revolução enquanto procurando conquistar o mundo não estava nitidamente presente no espírito dela. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/1/1986)
Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)
1) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia. Cf. Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.
2) Do latim: Sempre teve a sua alma nas mãos.
3) Do latim: Ide, a vida está terminada.
4) Do latim: Está consumado (Jo 19, 30).
5) Juan Pablo Salinas Teruel (*1871 – †1946). Pintor espanhol que se dedicou principalmente a pintar cenas que refletem costumes e ambientes, entre os quais a vida de corte nos séculos XVII e XVIII.
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