O discernimento dos espíritos e outros dons
Segundo já narrei anteriormente, quando eu era pequeno deram-se comigo certos fenômenos repentinos, por três ou quatro vezes, semelhantes à transmissão de pensamento ou telepatia.
Estando em Paris, por exemplo, eu vi o que se passou com os meus primos, na Suíça1. Lembro-me que esses fenômenos eram precedidos de uma espécie de sensação, como se alguma coisa se movesse no ar e também no meu espírito, à maneira de um dedilhar, dando a impressão de que um fato muito distante abria caminho através dos espaços e chegava até mim.
Entretanto, além disso, havia em mim algo completamente diferente: um dom pelo qual, sem razão aparente, ao olhar uma pessoa, eu conhecia a sua mentalidade. Era propriamente um feeling2, um “ver” as almas com muita facilidade, como se visse fisionomias, às vezes no próprio momento em que encontrava alguém.
Concretamente, como nasceu esse dom em mim? Qual é a sua gênese e como foi o seu alvorecer?
Um dom, acentuado com o tempo
De modo geral, creio que isso se deu quando eu era ainda muito menino, pois a minha primeira noção das coisas, o meu acordar para a vida já foi acompanhado dessa percepção das mentalidades, analisando, por exemplo, as almas deste e daquele menino ou menina com quem eu brincava. Porém, julgava tratar-se de uma capacidade comum, que todo mundo possuía.
Ela foi se acentuando com o tempo, em especial um ou dois anos depois de eu ter ingressado no Colégio São Luís; portanto a partir da minha resolução de ser inteiramente contrarrevolucionário em tudo, e de não conceder a amizade de minha alma a quem fosse revolucionário. Então, certo dia, dei-me conta de que, em determinadas situações, eu percebia, de repente e por completo, o estado de espírito deste ou daquele outro menino, e entendia como deveria proceder com cada um.
Qual é a explicação desse fenômeno? Tratava-se realmente de um dom sobrenatural? Até que ponto contribuía para isso a capacidade psicológica?
Discernimento das mentalidades
É verdade que eu era muito inocente, graças a Nossa Senhora. E, quando ouvia certos maus princípios enunciados por algum indivíduo, no mais fundo de minha alma a inocência me fazia perceber uma espécie de energia malfazeja que se movia nele, pela qual eu entendia não apenas a doutrina contida no princípio, mas também a sua mentalidade. Eu não sabia explicar aquilo, mas pensava: “Esse homem é mau e age com tais e tais intenções!”
Às vezes, simplesmente observando uma pessoa que estava quieta, ou vendo-a de longe, de costas, eu já percebia qual era a doutrina que ela seguia. Por outro lado, analisando-a enquanto falava, através de pequenos movimentos no rosto, eu entendia melhor os princípios que ela transmitia, e fazia a relação da sua mentalidade com os menores detalhes de seu proceder. Assim, em geral, eu não remontava de proche en proche3, do pequeno sintoma até o mau espírito, mas ia do mau espírito até o pequeno sintoma.
Entretanto, sobretudo no relacionamento com meus colegas, tinha também muita facilidade em conhecer a mentalidade deles por inteiro, apenas por notar algum pequeno sinal de espírito revolucionário. Dou um exemplo: era costume entre alguns meninos, quando assinavam uma prova ou um trabalho, pôr embaixo do nome uma linha comprida, a qual descia até à base da folha. Eu olhava aquilo e parecia-me curioso ver o quanto essa linha traduzia o estado de espírito deles.
De maneira que, no pequeno mundo do colégio, esse dom me ajudava a entender o jogo e os manejos da Revolução, mas também me dava meios de ver o aspecto fraco dela. Eu percebia que a influência de Hollywood – a qual penetrava torrencialmente por toda parte, aclamada com entusiasmo –, quando chegasse ao seu auge, não teria contentado o espírito humano por completo, e produziria estragos que causariam a sua própria queda. Portanto, os contrarrevolucionários não teriam de combater contra uma fenomenal cidadela, mas deveriam apenas sacudir uma árvore velha e bichada.
Então, a minha confiança na vitória do bem sobre o mal era motivada, em parte, por aquilo que esse dom me fazia notar.
Posteriormente, à medida que fui me tornando mais velho e as minhas vistas se abriram para um mundo muito maior do que o escolar, não tive senão de aplicar o mesmo sistema – muito ampliado – a outras situações, e assim, com frequência, entendia a mentalidade das pessoas que analisava.
Por exemplo, em frente à minha residência existia uma série de casinhas, não propriamente de nível operário, mas de famílias pertencentes à minúscula burguesia, entre as quais havia naturalmente alguns meninos de minha idade. Eu não sabia o nome de alguns deles, mas olhava-os e pensava: “Já conheço esse… Aquela outra também…” E notava que, se atravessasse a rua e fosse conversar com eles, ficariam encantadíssimos e muito honrados, mas, ao cabo de vinte minutos, se eu manifestasse a minha mentalidade por inteiro, eles romperiam comigo.
Então, fazia-me a pergunta: “Qual é o fundamento dessa atitude nas almas deles? Como são eles? No que são diferentes de mim?” E começava o estudo da psicologia daqueles meninos…
A Revolução no espírito dos indivíduos e dos povos
Assim, a Revolução se apresentava para mim em duas perspectivas.
Uma era individual. Ou seja, quando eu tomava conhecimento das atitudes revolucionárias destes ou daqueles, reconhecia que eram portadores do vírus da Revolução – com os seus defeitos morais –, o qual me parecia quase formar uma personalidade distinta da que possuíam aqueles a quem ele afetava.
Depois, numa perspectiva maior, eu via a Revolução no espírito dos povos, quando lia o jornal – muito raramente – ou quando ouvia notícias transmitidas pelos parentes mais velhos, durante as conversas em casa. Então, a mesma consideração se transplantava da esfera individual para a coletiva; da história deste ou daquele homem – fosse ele uma pessoa importante ou apenas uma qualquer – para a história de um determinado país.
Portanto, eu queria estudar a mentalidade revolucionária numa e noutra pessoa, ou na história de uma nação, e tirar as consequências que daí poderiam provir: como era a Revolução, quais eram os seus lados fortes e também quais seus aspectos débeis. Essa procura do lado fraco já era uma tentativa de encontrar o calcanhar de Aquiles, uma vez que já ia afiando a lança com minha mão de menino nas horas vagas…
Porém, foi só quando eu consegui explicitar para mim mesmo a Revolução e a Contra-Revolução – bem antes de escrever o livro4 –, assim como o importante papel delas nesse jogo de aptidões, que percebi realmente o dom incomum que Deus me havia dado.
Nunca o empreguei para vantagens próprias, para me distrair ou satisfazer a minha curiosidade, mas sempre o utilizei para o apostolado, o que constitui mais uma prova de que se tratava de uma ajuda sobrenatural.
Pela ação da graça, percepção de mentalidades e ambientes
Creio que havia, de fato, uma ajuda da graça divina, através do discernimento dos espíritos, pois não há possibilidade de atribuir à mera natureza o fato de que um menino de tão pouca idade pudesse ver o que muitos homens maduros ou inclusive idosos não viam.
Aliás, esse dom do discernimento consiste exatamente numa ação sobrenatural – que transcende os meios de conhecimento dados pela natureza –, mediante a qual alguém é habilitado a perceber as graças que Deus dá às pessoas e às instituições. É o conhecimento da graça.
Ajudada por esse dom, a alma tem uma espécie de instinto para perceber a influência sobrenatural em tudo aquilo que fala de virtude e santidade, e se deixa encantar por isso, mas o mesmo instinto também lhe faz notar o contrário, e leva a rejeitar aquilo que encontra de mau. Essa capacidade de discernir o bom e o mau espírito nas almas é o sentido capital do discernimento dos espíritos.
Por outro lado, esse dom possui também um sentido minor5 na ordem da importância ontológica das coisas: ele não ajuda apenas a perceber os fatores sobrenaturais que constituem o espírito de alguém, mas também os naturais, pois quem vê a graça em outrem pode ver também toda a mentalidade da pessoa discernida e do ambiente que a rodeia. Assim, a percepção natural daquele que discerne é aguçada ao máximo e elevada até uma potência inimaginável.
Portanto, esse discernimento das almas serve inclusive para conhecer as disposições naturais de alguém que não esteja habitado pela graça de Deus6.
Durante os “desafios”, manifestação de outro dom
Havia no colégio um sistema de estímulo aos estudos, chamado desafio, o qual consistia numa espécie de torneio entre colegas. Durante alguma aula, eram chamados dois meninos da turma e cada um fazia ao outro perguntas sobre a matéria que estava sendo lecionada, para ver quem vencia. Então, enquanto os outros alunos torciam, o primeiro perguntava, por exemplo:
– Onde fica a cidade de Grenoble7?
Se o segundo não sabia responder, aquele que havia perguntado ganhava um ponto. Depois, era a vez do outro:
– O Rio Amarelo8 recebe quais afluentes?
No fim, quem tivesse respondido mais perguntas ganhava o desafio e recebia de prêmio alguns santinhos.
Em muitas ocasiões eu tomei parte nesses desafios, pois os Padres me escalavam com frequência para tal. E, em geral, o meu concorrente era um menino chamado Francisco Antônio de Queirós Teles Neto, de ótima família tradicional paulista.
Ele tinha o cabelo cortado de maneira a formar uma franja reta sobre a testa, olhos pequenos e nariz adunco. Usava óculos e ainda vestia calças curtas, além de botinas com pequenas alças de cor verde e azul, bem aparentes.
Esse meu contendor tinha mais sucesso do que eu nos estudos e era bem visto pelos Padres, pois memorizava as lições de modo fantástico e recebia muitas condecorações nas distribuições de prêmios. Eu, pelo contrário, era apenas regularmente estudioso, mas agradava-me observar as coisas que me rodeavam e, já aos doze ou treze anos, adquirira certa experiência da vida.
Então, quando começava o desafio, o Padre dizia:
– Francisco Antônio.
Quase sempre era ele quem começava. Apresentava-se, puxava o papel com as questões previamente anotadas e começava a fazer-me perguntas difíceis, as quais me causavam verdadeiros apertos, pois sempre tive má memória.
Descobrindo as perguntas do contendor
Às vezes, havia um intervalo entre um desafio e outro. Então, antes de ele falar, eu permanecia olhando muito a sua fisionomia, para tentar adivinhar a pergunta que iria fazer… E – coisa curiosa! – à força de olhar, com frequência descobria o que ele ia me perguntar. Assim, lia o necessário, preparava-me com antecedência e, quando ele terminava, dava-lhe imediatamente a resposta.
Olhando-o, eu não via somente a pergunta que iria me fazer, mas também o que ele não sabia. E, chegada minha vez, fazia-lhe perguntas inesperadas, que ele respondia apenas em parte. Com isso, eu ganhava facilmente os desafios.
Entretanto, isso não acontecia sempre, pois, em certas ocasiões, eu não conseguia interpretar a fisionomia do Francisco Antônio. Mas, em geral, procurava fazer uso desse dom e adivinhava algumas das perguntas que ele faria.
Não sei se essa capacidade participava daquela espécie de telepatia que eu tivera anteriormente. Talvez fosse apenas certa experiência da vida, com alguma penetração ou percepção psicológica.
No jogo de xadrez, uma aptidão singular
Eu gostava de jogar xadrez, apesar de não ser um grande enxadrista.
Conhecia bem o funcionamento das várias peças do jogo, naturalmente, mas não fazia muita questão de ganhar as partidas, pois sempre houve de minha parte certa displicência em relação às competições. E pensava: “O que me incomoda ganhar ou perder? Isso dá mais ou menos na mesma! A vitória do adversário – seja ele quem for – não será uma tragédia para mim. Mas… movimentar as peças é interessante”.
Percebia ser comum entre os meninos o gosto de fazer truques, fraudando os jogos, e depois discutir quem havia ganhado. Jogando baralho, por exemplo, tentavam descobrir qual era a carta do outro, ou, inclusive, marcavam as cartas… Eu pensava: “Para que essa bobagem? O jogo é interessante se não há fraudes. Do contrário, é melhor nem jogar”.
Um dos meus tios tinha especial agrado no jogo de xadrez e, nas tardes de sábado e domingo, permanecia à espera de alguns filhos ou sobrinhos que quisessem jogar com ele. Então, muitas vezes me chamava.
Eu jogava, às vezes, duas ou três partidas de xadrez seguidas, mas sem grande atenção e, sobretudo, não querendo demorar muito no jogo…
Entretanto, percebi, em determinado momento, que havia uma diferença entre o modo de meus parceiros jogarem e o meu. Apesar de ser expansivo e ter o costume de tomar iniciativas, em geral eu esperava o ataque do outro, sem saber bem por que agia assim. Muito mais tarde, quando li algo sobre o Marechal Foch9 e também um texto do Clausewitz10, tive a explicitação desse procedimento. Diz este último que o modo mais vantajoso de iniciar uma guerra não consiste em atacar, mas em sofrer o ataque. Entre outras razões, explica ele que, ao caminhar em direção ao adversário, há um dispêndio de energias, as quais, pelo contrário, são economizadas no caso da simples resistência.
Por outro lado, notava que o meu parceiro – meu tio, por exemplo – fazia os seus planos olhando empenhadamente para o tabuleiro, procurando descobrir as minhas jogadas e fazendo cálculos, enquanto eu mesmo não fazia isso, pois pensava no jogo de um modo diferente. Como não era capaz de fazer o projeto da partida nem de formar planos de combate, então permanecia olhando a fisionomia do adversário enquanto ele olhava as peças.
Aliás, eu imaginava que a alma das pessoas “morava” no crânio. Tinha inclusive a impressão de que o pensamento acabava de se formar na testa, junto às sobrancelhas, e que por isso eu era levado a franzi-las, na hora da conclusão.
Então, de modo instintivo, ao invés de observar os olhos de meu parceiro – o que é comum na interlocução humana – fixava o meu olhar na fronte dele, no espaço entre as duas sobrancelhas. Depois olhava um pouco as peças que ele havia fitado e voltava a observar a fisionomia dele, analisando o olhar que ele dava às minhas. Também prestava atenção no movimento dos seus braços, ora mais tenso, ora menos, e no jeito de ele movimentar a mão na hora de fazer as jogadas.
Com isso, eu descobria mais ou menos qual era a disposição temperamental do meu opositor, as suas preocupações e o que ele estava ruminando, e assim previa qual seria o seu próximo lance no jogo; se estava planejando um golpe de longo alcance ou de efeito imediato, uma estocada violenta ou um jeitinho, um avanço ou um recuo. E eu tinha especial implicância quando ele movimentava o cavalo.
Às vezes, jogando com algum colega, eu também procurava resolver a partida de xadrez vendo o pulchrum ou o feio da psicologia do indivíduo. E pensava: “Sendo a alma dele como é, vai evitar o lance bonito e moverá tal peão no canto do tabuleiro. Então, como compreendi nele qual o peão que moverá, já estou percebendo o que deseja, e sei qual caminho devo tomar para acertar!”
De modo que a minha partida era jogada mais com a fisionomia do meu parceiro do que com as peças… Enquanto ele jogava xadrez no tabuleiro, eu jogava na alma dele. E espantava-me constatar que ele não percebia.
O resultado é que meus lances eram rápidos, pois minha elaboração mental acompanhava a dele. Enquanto ele ia pensando, eu “filmava” o seu pensamento e, quando ele fazia a sua jogada, a minha já estava pronta e eu logo empurrava o cavalo, a torre ou qualquer outra peça.
Então, de minha parte não se tratava propriamente de xadrez, mas de “psicoxadrez”. E assim, apesar de não jogar muito bem, ganhava muitas partidas. Posso dizer que agia com a maior boa fé e na honestidade de minha alma, pois apenas décadas mais tarde – quando já não jogava mais xadrez – percebi que fraudava o jogo, tirando proveito daquela aptidão para ganhar. Por outro lado, essas partidas me ajudaram a entender que as almas de todas as pessoas são como tabuleiros, animados por certas forças internas que condicionam o movimento de reis, rainhas, cavalos, bispos, peões e torres. E, a todo momento, cada um está jogando dentro de si uma “partida”. Aquele me parecia ser um método razoável para aprender certas coisas, pois, ao prestar atenção nesse “xadrez” interior dos outros e de mim mesmo, eu podia perceber, sem muita dificuldade, o quanto era previsível o acontecer de amanhã.
O tinteiro do Dr. Murtinho
Entretanto, eu tinha tantos assuntos para pensar, que era incapaz de prestar muita atenção no olhar dos outros. Às vezes, inclusive, ouvia comentários assim:
– Viu como Fulano olhou para Sicrano naquela hora?
Eu dizia para mim mesmo: “Não olhei para nenhum deles…” Naquele momento, estava pensando em outra coisa, por exemplo, na forma de um objeto que possuía o Dr. Murtinho Nobre, médico do qual minha família era freguesa e a cujo consultório eu ia de vez em quando11.
Segundo certa convenção daquele tempo, um tinteiro sobre uma escrivaninha era o símbolo da importância e do poder do dono desta última. O tinteiro do Dr. Murtinho, porém, era de inspiração bonapartista e, portanto, pouco explicável na mesa de um médico, mas, para meu olhar de menino, era monumental. Feito de um ônix verde-claro, muito bonito e um tanto translúcido, com dois canhões de bronze cruzados e, sobre estes, num suporte, um relógio contido numa esfera de cristal reluzente, a qual servia ao mesmo tempo de tampa, de um lado e de outro, e de lente, dando ao mostrador um aumento prestigioso.
Então, quando eu ia ter consulta com o Dr. Murtinho, recebia uma instrução de mamãe:
– Você conte ao médico que sente isso, aquilo e aquilo outro, e preste bem atenção no que ele disser, pois depois precisará explicar tudo a sua mãe, a fim de fazer o tratamento.
No entanto, quando chegava lá, a minha ideia era: “Vou ver o tinteiro do Dr. Murtinho!” E isso me interessava de modo invencível, muito mais do que minha saúde… Tinha verdadeira fascinação pelos canhões, pelo ônix, pelo jogo de luz dentro do cristal e nem um pouco pela máquina que se via na parte de trás do relógio, que não me interessava nem me agradava…
E fazia a seguinte reflexão: “Esse relógio é sério e monumental, e, comparando-o com o ambiente da rua, ele oferece um contraste saisissant12, frappant13! Mas… que relação há entre esse relógio e esse homem? Ele o pôs aí por gostar dessa seriedade, ou apenas para manter certa forma de importância social que ainda existe, mas já não corresponde ao geral das pessoas na rua? Então, esse relógio é o vestígio de um modo de ser que vai desaparecendo? Em última análise, o que deixará de existir? O ambiente da rua ou o relógio? Pois terá de se fazer a homogeneidade entre uma coisa e outra, e uma devorará a outra. “Esse relógio impressiona bem as pessoas de bom gosto que vêm aqui para consultas, enquanto o ambiente da rua impressiona bem as de mau gosto. Então, há uma luta entre umas e outras? Quem vai vencer? As segundas. Por quê? Por serem mais poderosas? Não. Por serem mais numerosas? Também não! O número é um fator negligeable14 e desprezível nesse caso, mas acontece que, na mente das primeiras, há algo, pelo qual inclusive elas desejam a vulgaridade. Também vão esconder, quebrar e aniquilar objetos como esse relógio. E esse médico, quando tiver envelhecido, vai usar as mesmas roupas das pessoas mais vulgares que há na rua, assim como as senhoras finas que hoje o consultam, se viverem até lá… Apenas eu não farei isso, in universa terra15! Então, o que vai me acontecer? Já sei, pois estou vendo… Sou tão isolado em meu modo de ser, que, se disser a outros o que estou pensando, responderão que sou desequilibrado e vão pedir ao médico uma pastilhinha para me equilibrar… Entretanto, sei que tenho razão!”
Depois eu voltava para casa e encontrava mamãe com as suas mil bondades. Ela perguntava:
– Meu filho, o que disse o Dr. Murtinho?
Eu era capaz de descrever o relógio, mas não sabia falar da minha saúde. Então, eu lhe transmitia um vigésimo das recomendações do médico, pois só havia prestado atenção na metade delas, e depois me esquecera de tudo durante o percurso. Por outro lado, sentia que, se tomasse nota do que ele dizia, isso atrapalharia as minhas ideias.
Mamãe, já percebendo o que havia acontecido, misericordiosamente acabava telefonando para o Dr. Murtinho, perguntando-lhe o necessário. Ele também dava uma explicação misericordiosa e o caso se resolvia.
“Santo Inácio mexeu na minha cabeça”
No São Luís – apesar de ser um colégio da Companhia de Jesus – Santo Inácio de Loyola não era dos santos aos quais se rezava, mas a quem se admirava. Costumava-se rezar a Santo Antônio de Pádua, Santa Rita de Cássia e outros.
Além do mais, parecia-me que o métier16, a especialização dele no Céu não era entrar em contato com o orante, pois devia estar entregue a cogitações altíssimas. Inclusive, a minha ideia subconsciente era de que um grand seigneur17 de tanta categoria não iria debruçar-se para olhar um Plininho que estava lá em baixo, com as mãos postas, pedindo-lhe um favor. E, sendo eu muito amigo de todas as hierarquias, achava aquilo natural.
Entretanto, certo dia em que o Pe. Costa foi especialmente feliz nas suas demonstrações de lógica, pensei: “Que extraordinário é ser jesuíta! Como seria Santo Inácio?”
Então, de um modo que não sei explicar, entendi que, para ser verdadeiramente jesuíta, era preciso ter por completo o espírito de Santo Inácio, de quem eu via, naquele mestre, um traço, através do qual podia compreender toda uma mentalidade. Percebi que existia uma espécie de auge do espírito lógico, que Santo Inácio havia alcançado e que eu talvez pudesse “instalar” no meu espírito.
Enquanto o mestre falava, eu aplicava minha atenção em ver se aprendia essa posição interna da alma, a partir da qual seria possível possuir a lógica. E, em certo momento, quando ele fez um daqueles raciocínios brilhantes e irrefutáveis, concluí: “Olha lá! Esse é o ponto de vista, o mirante da lógica!”
De modo concomitante, nesse momento passou-se algo de singular dentro de mim, à maneira de um flash, como se eu visse uma lâmina de espada refulgindo. Tive a impressão de uma discreta ampliação da minha inteligência, operada de fora para dentro, em minha cabeça. E pensei: “Curioso…! Parece-me que tive agora uma visão das coisas, pela qual vislumbrei o fundo de todas as coerências possíveis, e adquiri um domínio e uma posse da lógica, além do comum. Isto é raciocinar! Agora sinto todas as minhas apetências de raciocínio desenvolvidas até o máximo. Esta é uma espécie de superlógica, idêntica à que Santo Inácio teve”.
Depois, passou-me pela mente a seguinte ideia, muito fugazmente: “Se fosse possível, dir-se-ia que Santo Inácio mexeu agora na minha cabeça, e enxertou algo da lógica dele em meu espírito!”
Não se tratava de uma visão, mas de um fenômeno indizível e sobrenatural em minha alma, o qual também não foi acompanhado de consolação alguma ou de alegria vibrátil. Era algo à maneira da transfusão de uma graça existente na alma de Santo Inácio, uma espécie de transplante, de interpenetração de mentalidade com ele ou de troca de vontades, como se naquele momento o espírito inaciano tivesse tomado conta do meu.
Curiosamente, percebi que, se eu quisesse aceitá-lo, esse espírito poderia “viver” em mim, mas que também me era possível recusá-lo. E tive a tentação de fazê-lo, apenas para sentir a infantil experiência de exercer a minha liberdade e para verificar se o fenômeno era real, pois aquilo me deixava muito intrigado. Mas Nossa Senhora me ajudou e entendi que não podia agir assim, mas, pelo contrário, deveria aceitar aquela influência para a vida inteira.
Eu deveria ter onze ou doze anos nessa ocasião, da qual me lembro perfeitamente. Poderia inclusive dizer o local do colégio em que isso se deu: uma sala de estudos, mais espaçosa que as salas de aulas, onde os alunos eram obrigados a permanecer durante alguns períodos. Esta ficava no primeiro andar, dando para a quadra de tênis, e eu seria capaz de indicar o lugar da carteira na qual eu estava sentado.
Porém, nem o Pe. Costa nem os alunos presentes na sala perceberam nada do que me tinha acontecido. Por outro lado, parecia-me impossível que isso se desse com um ente tão insignificante quanto eu! Além do mais, nunca tinha ouvido dizer que houvesse acontecido algo semelhante com alguém, nem sequer com um santo, de maneira que, depois, não pensei mais no fato, nem o contei a ninguém.
Entretanto, creio que foi uma graça obtida por Nossa Senhora a rogos de Santo Inácio, e que eu agora18 agradeço a ele, cheio de reconhecimento!
A mentalidade de Santo Inácio
Naquele momento, percebi de modo claro e vivo como era a mentalidade de Santo Inácio. Para mim, ele estava acima de todos os elogios que eu lhe pudesse fazer, pois era mais do que um gigante: era um anjo!
Propriamente, o que me parecia caracterizá-lo – mais do que a lógica – era a vontade de chegar ao último termo na compreensão de todas as coisas. Para ele, todo caminho percorrido até o fim constituía uma epopeia, a qual dava o verdadeiro sentido à vida do homem na Terra. Por exemplo, ele viu até onde poderia chegar a Igreja do tempo dele, em matéria de oposição ao mal, e desse modo a quis inteiramente, de maneira a empregar todos os meios possíveis para que ela se definisse assim.
Evidentemente, a lógica tinha um grande papel nessa atitude. Porém, o mais importante era o da vontade, a qual desejava por inteiro e rejeitava o meio-termo com desprezo.
Os efeitos de uma graça
Com essa graça, foi-me dada uma espécie de criteriologia, ou seja, uma tonificação do meu modo de raciocinar e uma facilidade em caminhar até os últimos promontórios da lógica, assim como a faculdade de pensar mais rápida e agilmente, tendo especial vigor na aplicação do princípio de contradição e construindo minhas frases com um desembaraço maior do que o nativo.
Essa capacidade tão inaciana é, por excelência, o instrumento da minha missão, que não seria concebível sem uma lógica muito especial, da qual provém a minha energia.
A imagem perfeita que encontro para explicar isso é a de alguém que sobe a um mirante e assesta um farol sobre o panorama que se lhe apresenta, ou também a de algum homem que está a bordo de um navio com certo amigo, o qual, ajudado por um binóculo, descreve inúmeros aspectos do mar, que o primeiro não vê por não possuir esse instrumento. Então, em certo momento esse amigo lhe oferece o binóculo, e ele passa a enxergar o que antes não conseguia.
Assim também se deu comigo: por um fenômeno de discernimento dos espíritos em relação a Santo Inácio, algo da mente dele passou a funcionar como um binóculo do qual eu me apropriei, colocando-o na minha inteligência e na minha vontade, não à maneira de uma fulguração, mas para toda a minha vida. A partir daquele momento – e ainda hoje19 – vejo a mentalidade dele e, através dela, compreendo melhor o universo.
Uma hipótese
Vou levantar uma hipótese remota.
No Colégio São Luís, eu via todos aqueles jesuítas com a mesma facies20, porte e atitude… Tudo isso não indicava a presença de Santo Inácio em todos, por essa união mística?
Toda a grandeza da Companhia não se explicaria por um fenômeno desse tipo?
1 Cf. Volume I desta coleção, pp. 82-83 e 166-168.
2 Em inglês: sentimento, intuição.
3 Em francês: aos poucos, passo a passo.
4 Trata-se do livro Revolução e Contra-Revolução, publicado pelo Autor no ano de 1959, o qual contém as suas teses principais sobre o processo revolucionário.
5 Em latim: menor.
6 Sobre esse dom, assim explica Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP: “Segundo São Tomás (Summa Theologiæ, I-II, q.111, a.4, ad.1), o discernimento dos espíritos é uma graça gratis data, porque revela o que excede à natureza humana, pois pertence somente a Deus conhecer os segredos de consciência. Supera, portanto, incomparavelmente, o que está ao alcance de um mero senso psicológico natural. Na generalidade dos casos, o discernimento dos espíritos aplica-se apenas às almas, individualmente, com vistas à sua direção espiritual. Muitos santos foram favorecidos com ele, como o Cura d’Ars, que no confessionário discernia os pecados do penitente, recordando-os, caso este tivesse omitido declará-los; também sabia, por revelação divina, de circunstâncias e fatos relacionados com seus interlocutores, podendo dar-lhes orientações úteis à sua santificação. No caso de Dr. Plinio, tal carisma tinha um alcance mais amplo. Além de ser constante, não se aplicava apenas a indivíduos, mas também – e com mais acuidade de penetração – a conjuntos humanos, povos, ambientes e à História”. (Clá Dias, João Scognamiglio. O dom de sabedoria na mente, vida e obra de Plinio Corrêa de Oliveira. Medellín – São Paulo: UPB – Instituto Lumen Sapientiæ, 2010, pp. 321-322.)
7 Cidade do departamento de Isère, na região de Rhône-Alpes (França).
8 O Rio Amarelo (Huang Ho), no nordeste da China, é um dos maiores do país e recebe numerosos afluentes em seu curso de 5.464 km.
9 Ferdinand Foch (1851-1929), Marechal da França, teve grande papel nas vitórias de seu país durante a Primeira Guerra Mundial, e escreveu a obra Memórias de guerra.
10 Karl von Clausewitz (1780-1831), general e teórico militar prussiano, exerceu grande influência no pensamento militar contemporâneo com a sua obra A Guerra.
11 Dr. Antonio Murtinho de Sousa Nobre (1878-1946), ilustre médico homeopata, originário do Estado de Mato Grosso do Sul, exerceu sua profissão no Rio de Janeiro e em São Paulo, e foi médico da família de Plinio durante muitos anos. Cf. Volume I desta coleção, p. 581 ss.
12 Em francês: cogente.
13 Em francês: impressionante.
14 Em francês: insignificante.
15 Em latim: na Terra inteira.
16 Em francês: ocupação, ofício.
17 Em francês: senhor de alta nobreza.
18 A presente anotação é do ano de 1973.
19 A presente anotação é do ano de 1983.
20 Em latim: aspecto, fisionomia.
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