O encontro com Carlos Magno
Naquele tempo, ainda eram raras as boas estradas de rodagem no Estado de São Paulo e quase todas as viagens para o Rio de Janeiro, o interior ou o litoral, eram feitas de trem.
A Estação da Luz, muito bonita e bem arranjada, sempre formigava de passageiros para tomar os trens que rumavam em várias direções. Havia muitas pessoas de nível social modesto, fazendo viagens baratas nos vagões de segunda classe; algumas da alta sociedade que viajavam na primeira classe, e também passageiros ricos que ocupavam vagões de luxo, chamados Pullman, os quais eram realmente muito confortáveis e tinham, às vezes, lindíssimas incrustações de madrepérola, à maneira de bordados, enfeitando o interior das cabines na junção entre a parede e o teto.
O hall principal da estação dava para o Jardim da Luz e nele havia duas escadarias que desciam até a plataforma dos trens. Numa delas existia uma pequena banca onde se vendiam jornais, revistas e livros infantis muito comuns, para encher o tempo durante as viagens.
Um livrinho, na Estação da Luz
Em certa ocasião, viajei para Águas da Prata, com toda a minha família.
Fui à estação com meu pai, em automóvel. Quando cheguei, subi os três ou quatro degraus da escadinha de acesso à entrada lateral, andando despreocupado atrás dele e pensando no trem ou na viagem, como faria qualquer menino. Lembro-me de que subia com certa má vontade, por não ser muito amigo dos deslocamentos em trem. Nesse momento, maquinalmente, olhei a pequena banca e vi, de repente, um livrinho de uma edição muito simples e barata, com quinze ou vinte páginas, que nem sequer tinha encadernação. Até hoje, eu seria capaz de indicar o lugar exato onde ele estava: na escadaria à esquerda de quem entrava na estação, junto ao corrimão constituído por um balaústre de pequenas colunas de alvenaria.
Na capa desse livro havia um desenho que representava a figura de um imperador medieval: homem possante, com ar majestoso e dominador, tendo uma coroa na cabeça e sentado num trono, com a espada na mão direita e um cetro muito alto na esquerda, cuja ponta ficava acima da própria coroa. Havia alguns guerreiros junto a ele, com grandes bigodes. Creio que era uma ilustração inspirada na estátua de Carlos Magno que está em frente à Catedral de Notre-Dame de Paris.
O título do livrinho era mais ou menos assim: “História de Carlos Magno e os Doze Pares de França”.
Pensei: “Mas que homem forte! Que homem bem sentado! Eu não conheço ninguém que se sente assim. Ele domina estando sentado, enquanto outros dominam estando em pé… Carlos Magno! Os Pares! De França! Que maravilha! Este é um personagem formidável!”
Fiquei encantado, tocado até o fundo da alma e entusiasmado sem saber por quê. Ignorava o que eram os doze Pares de França e nunca tinha ouvido falar de Carlos Magno, ou talvez tivesse uma ideia vaguíssima sobre ele. Nem sabia que a palavra magno significa grande, mas li aquele título e tive um choque, achando aquele homem fantástico, como se fosse uma virtude personificada. Entendi que ele representava uma personalidade cujo olhar englobava e dominava tudo, num julgamento lúcido das coisas e numa espécie de poder universal, porque tinha as vistas voltadas para Deus e para as mais altas causas, com um equilíbrio de força, de calma e de entrain.
“Esse é um homem que eu deveria encontrar! – pensei – Ele vale mais do que todos os outros que conheço!”
Percebi que ele era o símbolo de uma época muito mais perfeita do que a nossa. O meu coração bateu de saudades de um passado que não conhecia e de esperança de um futuro que ainda não tinha entrevisto! No fundo, aquela figura de Carlos Magno representava a ideia que eu estava pronto para fazer a respeito de Deus.
Ao mesmo tempo, tive a seguinte reação de alívio, que no momento não sabia explicitar bem: “Encontrarei ali o equilíbrio entre a força e a bondade, que tanto procurava!”
E aqueles dois ou três guerreiros francos – os Pares – que estavam desenhados, pareciam ter com Carlos Magno uma tal união, que cada Par era como uma qualidade ou uma virtude dele, personificada, enquanto ele era a síntese dos Pares. Mas o que me entusiasmou mais do que tudo foi ele, o grande Carlos!
E pedi a meu pai, que me segurava pela mão:
– Papai, o senhor quer me dar dinheiro para comprar um livro?
Ele estava muito apressado e queria descer logo, enquanto eu não tinha pressa nenhuma. Mas parou de andar e perguntou:
– O que você quer?
– Quero comprar um livro.
Naquele tempo, os livros vendidos em estações eram muito populares. Então, ele me olhou espantado e disse:
– O quê? Você vai comprar um livro aqui? Mas, que livro é?
– É aquele lá: Carlos Magno, papai!
Ele caiu das nuvens:
– Hein?! Você quer isso?
– Quero, sim senhor! Eu tenho entusiasmo por isso!
– Carlos Magno? O que você tem a ver com Carlos Magno, meu filho? Você nem sabe quem foi ele. Para que vai ler essa bobagem? Não precisa. Leia outra coisa.
– Estou querendo esse livro que conta a história dele, papai, para ler na viagem. O senhor não pode comprá-lo para mim? Por favor!
Naquele tempo, circulavam moedas de mil e dois mil réis, cunhadas em ótima prata, que se guardavam numas bolsinhas especiais, feitas de malha de prata. E, na falta de um termo adequado em Português para nomeá-las, usava-se a palavra francesa portemonnaie – porta-moedas.
Papai era um homem de boa paz a toda prova e, apesar de achar o meu pedido muito estranho, abriu o seu portemonnaie, tirou dela uma moeda e disse:
– Menino, você perde o trem! Vá lá e compre depressa.
Contentíssimo, dei o dinheiro para o homem da banca e este ainda devolveu o troco. Nem sei exatamente quanto custou o livro – um preço de ninharia – mas isso não me importava… Enfiei-o no bolso como um tesouro, tendo a ideia de haver feito um achado, e descemos correndo para embarcar. Toda a família já esperava no vagão, o qual estava quase vazio, com muitos bancos livres. Tive de ajudar minha avó, minha mãe e as outras senhoras da família a se acomodarem, como o mandava a educação do tempo, mas logo decidi: “Assim que puder, vou escapar delas, sentar noutro lugar e considerar esta história”.
Antes de o trem partir, papai, enquanto chefe da expedição, verificou se estavam ali todos os membros da família, com as suas respectivas malas. Contou todas as peças e sentou-se sossegado, pois não faltava nenhuma criança ou nenhum pacote. Quando o vi tranquilo, pensei: “Agora, ele não vai mais prestar atenção em mim. Se eu desaparecer, ele não tomará um susto. Então, chegará a vez de Carlos Magno!”
Ouviu-se um apito e o trem começou a cuspir fumaça e ranger ferros, com o seu barulho característico, o qual me deixava muito desagradado, devido a meu gosto pela tranquilidade serena e bem arranjada. Entretanto, naquele momento, eu já não me preocupava com tudo isso. Logo que o trem se pôs em movimento, dei um jeito de levantar-me e escapar depressa, enquanto os membros da família estavam distraídos, olhando pelas janelas. Fui isolar-me, sentando-me num canto do fundo onde ninguém me incomodaria, junto à janela, com vidro aberto – tinha encantos pelo vento! – e com o meu Carlos Magno bem seguro na mão.
Abri o livro e comecei a folheá-lo.
“Este a quem eu procurava”
Atravessamos bairros residenciais e industriais, passamos perto da minha casa e da igreja que eu frequentava e, mais adiante, começou o campo, mas eu não queria saber daquilo, nem prestava atenção na paisagem. Enquanto o trem corria para a estação de águas, a graça começava a tocar a minha alma: eu estava absorvido, “embriagado”, devorando a vida de Carlos Magno e seus doze Pares.
Era uma narração um tanto fantasiosa, mas cuja essência era verdadeira. Apresentava Carlos Magno como um herói da Fé, e isso me agradou enormemente. Ele lutava com a espada, acompanhado por aqueles doze guerreiros que constituíam o creme do seu exército. A ideia de um império que se estabelecia acima dos reis, brilhando com o esplendor sacral de uma instituição fundada pelo Papa e lutando contra os bárbaros, era para mim o suprassumo da realização.
Aquela história apresentava o conceito de um homem supremo, dotado de uma força suprema e de um direito supremo de mandar. Essa ideia do unum na capacidade do direito e do mando me encantou! Então pensei: “Não há mais homens assim, e isso é mais um sinal de que em torno de mim morre tudo quanto deveria viver…”
E continuei lendo: “Os doze Pares…” Essa expressão me pareceu extraordinária e fabulosa, quase como se eles fossem anjos. Pensei com meus botões: “Par de Carlos Magno! Como seriam esses Pares? Que coisa maravilhosa! Esse título comporta uma relação de lealdade varonil, forte e durável, com total confiança mútua. É a união de todos na disciplina e no ideal que deve ser para eles Carlos Magno! Como isso é diferente da criançada com a qual convivo! O nosso relacionamento nunca nos faz pares, de maneira alguma! Que tristeza, eu não ser par de ninguém! Não existe uma pessoa com a qual eu possa ser par… Estou no mundo dos ímpares… Oh! desolação, oh! tristeza, oh! isolamento neste trem! Mas… Oh! esperança! Um dia, conhecerei algo que me dará a alegria de tocar com as mãos esse universo maravilhoso. Vamos para a frente!”
Dentre os Pares, o mais importante e mais valoroso era um sobrinho de Carlos Magno, chamado Roland. Então, ele fazia tal proeza e Olivier fazia tal outra… Eu refletia: “Está vendo? Isso é atitude de homens! Eles enfrentavam inimigos, mas se tratavam entre si com respeito. Essa gente tinha grandeza! Tempo de Carlos Magno! Que época formidável era aquela!”
Depois era narrada a morte de Roland, ferido por pagãos, quando voltava vitorioso da Espanha. Ele cambaleava, se arrastava até a sombra de uma árvore e ali começava a rezar, todo armado, enquanto o sangue escorria sobre a sua armadura. Ele pedia a Deus pela salvação de sua própria alma, mas também pelo imperador e pelo “doce reino dos francos”.
A história contava que o Arcanjo São Miguel, padroeiro de toda a Cavalaria Celeste, aparecia no céu e descia até ele, pedindo-lhe sua luva de metal da mão direita para levá-la a Deus. Ele, então, tirava-a e entregava-a: era um símbolo de vassalagem feudal, mas também um sinal de que Deus o acolheria no Céu. Pouco depois, ele expirava e São Miguel levava a sua alma até o Paraíso, apresentando-a a Deus.
Aquilo me dava uma noção de enorme contraste com o mundo moderno, em especial com o ambiente do recreio do meu colégio. Pensei: “Carlos Magno! Era este a quem eu procurava e esperava! Encontrei! O futuro está contido nesta história, pois um dia terá de existir alguém como ele!”
E uma voz interior parecia dizer-me: “Você terá algo à maneira disso! A sua meta é essa e a sua vitória será semelhante à dele!”
Cheguei à conclusão de que, para fazer vencer os meus ideais, não bastava conquistar um pequeno espaço em torno de mim, mas era preciso reivindicar a vitória dessas ideias no mundo: “Vou combater as dificuldades em minha vida, como Carlos Magno lutou contra os seus adversários! Aqui encontrei o equilíbrio que procurava! A junção harmoniosa da força e da bondade se dá na grandeza! E só possui verdadeira grandeza quem tem a verdadeira Fé. Mais uma vez, penso nas coisas e concluo que o centro, a lei e a luz que ilumina tudo é a Fé Católica Apostólica Romana”.
Não conversei com ninguém durante o percurso. Fui lendo até chegar a Águas da Prata, depois fechei o livro, guardei-o na mala e não tratei com ninguém a respeito de Carlos Magno. Talvez tenha perguntado algo a mamãe, mas, provavelmente, ela possuía ideias muito vagas a respeito desses assuntos.
Um ideal de grandeza
Julgo que, quando vi aquela estampa de Carlos Magno – popular e ingênua –, tive um primeiro encanto com a grandeza carolíngia, à maneira de um flash, o qual não tem feito senão se confirmar aos meus olhos, com o passar do tempo. Esse encontro com Carlos Magno foi como um primeiro toque de alaúde da Idade Média para mim e assim se acendeu a luz da minha admiração por ela, juntamente com o amor à honra. Se eu tivera, pela gargalhada de uma criada, a revelação de um mundo que não queria conhecer1, vendo Carlos Magno vislumbrei um universo que desejava encontrar e me entusiasmei até o fundo da alma!
Na realidade, tratava-se de uma ação da graça de Deus.
É pena que esse livrinho se tenha perdido, pois gostaria de conservá-lo entre as minhas recordações. E quando alguém fala sobre o grande imperador, vem-me à memória esse episódio, como se tivesse ocorrido ontem. Lembro-me de tudo isso com tanta expressão, que, se não fossem as perpétuas ocupações em que sou obrigado a viver, desejaria passar um dia pela Estação da Luz, olhar e dizer: “Aqui eu conheci a Idade Média!”
Ao ler aquele livrinho, vi em Carlos Magno uma certa forma ideal de grandeza, com um conteúdo de universalidade que beneficiava e cobria todos os povos, e que algum dia haveria de ressuscitar. O grande imperador me parecia a fórmula adequada para o futuro, e aqueles que não andassem nas vias dele, seguiriam verdadeiros descaminhos.
Depois, tratando com inúmeras pessoas ao longo da vida, notei que havia algo de profético no modo de se referirem a Carlos Magno. Alguns professores de História, por exemplo, mencionavam-no com mau humor, mas, depois de atacá-lo, quando continuavam a falar, alguma coisa os detinha e uma certa admiração lhes embargava a voz.
Creio haver nisso algum auxílio sobrenatural que acompanha todas as pessoas quando tratam sobre Carlos Magno. Se elas correspondem à graça, abre-se uma espécie de luminosidade dentro de suas almas, acompanhada de uma promessa de futuro. Algo as leva a compreender que Carlos Magno não é um caminho que se estancou, nem uma glória do passado que permaneceu parada num monumento de pedra. Ele é como uma luz que desce do Céu, indicando uma caminhada que deve continuar.
1 Cfr. Corrêa de Oliveira, Plinio. Notas Autobiográficas, Vol. I, São Paulo: Editora Retornarei, 2008, p. 661 ss.
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