O mundo escolar
No Colégio São Luís, eu corria os olhos largamente em torno de mim e analisava todo mundo com atenção, à distância: padres, irmãos leigos, funcionários, professores, bedéis e, sobretudo, meus colegas, mais velhos e mais moços. Depois de um ano, eu já conhecia de modo geral os vários tipos de alunos. Sentia um grande contraste entre o ambiente em que tinha sido educado e o modo de ser deles, muito influenciados pelo cinema e pela transformação de costumes que este causava na época.
Percebia haver uma completa oposição entre o mundo dos padres e o dos alunos. Aqueles ensinavam um modo de proceder, mas pareciam não notar que os meninos faziam exatamente o contrário.
Desprezo pelas famílias…
Na época, as estruturas familiares ainda eram muito fortes, mas, quando um menino era “lançado” dentro do colégio, entrava numa espécie de convenção, pela qual todos os alunos faziam abstração completa dos seus próprios ambientes.
Ele era solto no recreio como numa estepe cheia de antílopes e outros animais selvagens, passando a levar uma vida escolar completamente à margem da família. De maneira que dois meninos, sendo filhos de famílias muito amigas, nunca falariam sobre essa amizade no colégio, pois tal comentário pareceria indicar um enfraquecimento ou “desmasculinização” do caráter arrojado da existência colegial.
Por exemplo, se um aluno se aproximasse de um outro e dissesse:
– Ontem eu conheci seu pai, em casa.
Receberia a seguinte resposta:
– Ha-ha-ha! Você se incomoda com o velho? Bobagem!
Nunca um menino perguntaria para um colega:
– Como vai sua mãe?
Ele seria considerado efeminado. Num colégio de meninas essa atitude se compreenderia, mas entre rapazes jamais. Eles poderiam encontrar-se depois nas respectivas residências, por razões de parentesco ou de relações sociais, e tratar sobre suas famílias, mas no colégio isso não valia. Esse costume era mantido inclusive entre primos: usavam o mesmo sobrenome, tinham fisionomias parecidas e todo o mundo sabia serem parentes, mas não conversavam entre si sobre assuntos familiares.
Tratava-se de uma nova mentalidade, própria a um mundo anárquico, onde parecia não existir família para ninguém.
Então, os meninos levavam duas existências.
A primeira era a do colégio, em extremo revolucionária, onde oficialmente todos eram iguais entre si e não podiam diferenciar-se, sobretudo se alguém tivesse um título autêntico para se destacar. É verdade que os meninos das camadas sociais mais elevadas faziam amizade entre si, pelo fato de a sociedade paulista ser muito hierarquizada. Entretanto, essa afinidade não era causada por uma ideia de estirpe ou de nome ilustre, mas por razões de figurino: a roupa de luxo que vestiam e os objetos de qualidade que usavam faziam-nos separarem-se desdenhosamente dos outros. Porém, as legítimas superioridades de família, de inteligência ou de educação eram negadas e excluídas.
Lembro-me de um exemplo, a esse respeito. Em certa ocasião, visitaram o colégio dois meninos, príncipes da Casa de Bourbon. E, por uma coincidência, propagou-se em São Paulo, naquele tempo, o uso de um fixador de cabelo, muito comum, de marca “Bourbon”, o qual era fabricado por algum industrial qualquer, sem maior importância.
Ora, quando apareceram os dois meninos com esse nome, espalhou-se a notícia entre os alunos no meio de risotas. E um colega perguntou a um deles, D. João de Bourbon:
– Diga-me uma coisa: quem é o seu pai? É o fabricante do fixador “Bourbon”?
Os outros davam gargalhadas e debicavam… Era uma manifestação de ignorância e de brutalidade, mas compreende-se que, para o menino assim tratado, aquilo fosse lancinante.
A segunda vida dos alunos transcorria na família, onde, em geral, não se compreendia inteiramente o colégio e quase não se falava sobre ele. Essas duas existências opostas preparavam tensões futuras.
Mas, o que provocava essa dissociação entre a família e o colégio?
Tenho a impressão de que na origem desse fenômeno havia uma evolução do conceito de ensino secundário. Outrora, o aluno conceituado era o homenzinho precoce, o qual queimava etapas em seu progresso intelectual, saindo da adolescência e da juventude o mais depressa possível. E os campeões desse sistema foram os jesuítas dos grandes tempos e da velha escola. Segundo esses métodos, quando o menino ingressava no colégio, era um pequeno herói, armado para todas as lutas.
Ora, em minha época, a vida escolar já era muito mais arriscada, cheia de surpresas e de incertezas – mas também de promessas – do que fora outrora. De maneira que, no colégio, o menino acabava tomando uma importância maior do que entre seus familiares. O centro da sua vida nem sequer era a sala de aula, mas o recreio com as suas lideranças, no qual os alunos se encontravam formando um mundo não apenas extrafamiliar, mas antifamiliar.
…e pelos professores
Na vida dos meninos, os professores também não pesavam em nada.
Eu ficava indignado ao ver como alguns dos meus colegas tratavam os seus mestres: falavam-lhes como alguém que se dirige a um lacaio! Em última análise, isso acontecia por serem eles filhos de pais endinheirados, enquanto os professores eram pobres. Mas, se um desses aparecesse no colégio com um grande automóvel de luxo, por ter ganhado na loteria e se tornado muito rico, seria tratado com bajulação.
Via-se, pelos trajes de alguns professores, que eram pessoas de vida modesta, recebendo um ordenado pequeno. Então, havia debiques e gargalhadas contra eles, sendo que, às vezes, eram homens de cinquenta ou sessenta anos, dignos de certa reverência. Isso me indignava e me revoltava, pois eu jamais maltrataria um superior dessa maneira! Pelo contrário, reverenciava adequadamente todas as autoridades constituídas e tratava os professores com todo o respeito, mas via que o modo de ser daqueles meninos era próprio a derrubar e corroer toda autoridade.
Um convívio baseado nos defeitos
Existia uma espécie de pacto revolucionário entre os meninos.
Era a amizade vil, a intimidade acachapante, na qual todos se viam mutuamente pelos aspectos defeituosos, e se chamavam por apelidos que lembravam essas falhas. Os filmes de Hollywood inoculavam uma doutrina errônea a respeito da sinceridade, que resultava na brutalidade mais estúpida. Os meus colegas, por meio de uma franqueza mal entendida, faziam-se uns aos outros críticas implacáveis e diziam-se as piores injúrias, como navalhadas, sem dó, nem piedade ou respeito. Era um novo sistema, “franco”, esportivo e hollywoodiano, o que me causava horror, por ser o contrário da civilização.
As brincadeiras degeneravam frequentemente em desaforos. Todos os dias havia brigas e empurrões, e era frequente ouvir um aluno dizer ao outro:
– Vamos nos encontrar na esquina, na hora da saída!
Era uma glória ter dado uma sova em alguém, mas não entrava nessa atitude a ideia do senso da honra. Os que presenciavam as brigas não as tomavam a sério, mas apenas queriam divertir-se, e tudo terminava em piadas. Na realidade, ligavam-se por uma verdadeira cumplicidade e, se aparecesse entre eles alguém sem defeitos, não o quereriam, por não fazer parte da “confraria”. Essa atitude criava um clima em que eles acabavam simpatizando-se mutuamente pelos erros e implicando com as qualidades.
Não havia nenhuma virtude que tornasse um estudante popular aos olhos dos outros. Pelo contrário, o convívio amistoso era estabelecido na base do deboche, do achincalhe e do debique, e na glorificação de certos defeitos.
Os filhos de imigrantes
No São Luís havia alunos das famílias aristocráticas de São Paulo, mas eram admitidos meninos de qualquer classe social. Então, conviviam lado a lado filhos da imigração, ainda com os odores característicos do porão do navio em que os pais ou avós haviam chegado ao Brasil, e alunos nos quais se sentiam resquícios da corte imperial.
Os primeiros descendiam às vezes de um vendedor de sorvete ou de algodão-doce, cujo filho tinha a profissão de contador, mas cujo neto, por sua vez, era aluno rico do melhor colégio de São Paulo. Essas famílias educavam os meninos de acordo com o mito que possuíam a respeito da boa formação: o filho fazia mil gaucheries1, mas tinha algo de anjinho, amável e risonho, penteado com a risca no meio da cabeça, se fosse italiano, ou com franjinha na frente da testa, sobretudo se fosse teuto, belga ou francês.
Procurando ser polidos, eles entravam no ambiente explosivo do recreio e eram “massacrados” logo no começo do curso. Eram deseducados pelos colegas e, ao cabo de um ano, já estavam deteriorados, ou então reagiam e mantinham-se bem comportados. Neste último caso, quando um deles voltava para casa, era o ídolo dos familiares, especialmente do vovô, que o considerava fenomenal:
– Olha como ele é direitinho! Como ele é fino!
No domingo, durante o almoço em família, ele era o prodígio, mas não ousava contar que, na segunda-feira, seria o opróbrio da classe, pois não tinha sucesso junto aos colegas e inclusive apanhava no colégio…
Lembro-me de um menino belga, de boa família e um tanto delicado, o qual morava na Avenida Paulista, numa casa semelhante a um bolo de noiva. Quando ele manifestava qualquer opinião, fora da linha dos mais abrutalhados, estes caiam em cima dele com vaias e deboches, até liquidá-lo.
Os alunos também caçoavam muito dos colegas que usavam óculos, sobretudo daqueles que os guardavam numa caixa, por ordem dos pais. Esses recebiam o apodo de “Caixa d’óculos”.
Certo aluno era o contrário dos anteriores: o típico débraillé2 das famílias de imigrantes desorganizados, que não visavam a boa educação dos filhos. Ele jogava muito bem futebol e fazia um enorme esforço para se valorizar, na hora das partidas, mas era de uma vulgaridade assustadora e andava com os pés um pouco virados para dentro. Por isso, recebera o apelido de “Pé de gancho”.
Pequenos chefes
O ambiente do recreio destruía a Fé dos meninos, tão metódica e completamente quanto as faculdades eliminavam a Fé dos jovens, e às vezes ainda mais. Muitíssimos dos meus colegas saíram do colégio ateus, enquanto alguns continuaram católicos por algum tempo e perderam a Fé mais adiante, e pouquíssimos a conservaram até o fim de suas vidas.
A grande maioria dos alunos não reagia contra esse movimento, o qual era levado pelo entrain3 de alguns meninos-chaves, que dirigiam a opinião do colégio, possuindo todo o prestígio que o demagogo tem sobre a multidão.
Eles influenciavam do seguinte modo: cada rodinha se constituía por uma espécie de visão da vida – ou pelo menos do colégio – que alguns poucos meninos eram capazes de exprimir bem. Esses eram os pequenos chefes daquele grupo de alunos; líderes do recreio, os quais possuíam muito mais influência sobre os colegas do que os pais ou os professores. Para os meninos, os colegas representavam a época em que eles iam viver, enquanto os progenitores já faziam parte do passado e os professores eram tidos como fósseis.
Então, os alunos não estavam interessados em saber como deveriam proceder na vida, mas queriam saber o que faziam esses líderes, para estar de acordo com o tom e o som deles e, por esta forma, ter o consenso de todos os outros e estar à la page, ou seja, na “página certa” dos acontecimentos.
Ora, os piores meninos eram os mais admirados pelos colegas, pois correspondiam em maior grau ao figurino do dia.
Desejando a salvação dos companheiros
Em nível infantil, eu fazia a análise psicológica de quase todos os meus colegas e pensava: “Como seriam os alunos de minha classe, se todos desejassem ser bons católicos! Esse e aquele outro, quantas coisas magníficas poderiam fazer! Muitos deles estariam à minha frente, e eu os admiraria na alegria de minha alma! Mas não querem e, então, vão se afundando cada vez mais…”
Eu percebia que, na maior parte dos casos, as famílias não aplicavam a severidade necessária na educação deles, nem na repressão dos maus costumes. E refletia: “Se alguém lhes desse uma trancada, muitos deles se endireitariam. Como seria bonito ver um pai corrigindo os seus filhos! Quanto bem ele faria! Ele seria muito impopular e inclusive odiado por isso, mas, empenhando-se fortemente, poderia salvar muitos meninos. Não valeria a pena? Então, como seria bela a atitude de um homem que tivesse a coragem de enfrentar uma onda contrária, qualificando o mal como ele é!”
Os alunos grã-finos
Em cada classe estudavam vinte ou trinta meninos.
Em geral, numa sala havia sempre dois ou três alunos possuidores de prestígio, que arrastavam outros atrás de si, com uma liderança que se exercia de várias maneiras, por meio de figuras clássicas. Uma delas era a do grã-fino4.
Além de serem ricos, esses tinham uma bonita apresentação, eram mais lavados, mais penteados e vestiam-se muito melhor do que os outros. Mudavam de traje com frequência, usando roupas da última moda, possuíam as melhores canetas-tinteiros, os melhores relógios de pulseira, em geral gozavam de uma saúde transbordante e jogavam futebol muito bem. Chegavam ao colégio em bonitos automóveis e tinham bicicletas estupendas – às vezes duas ou três – com os melhores equipamentos mecânicos, inclusive com campainhas, o que era considerado prestigioso. Esse era um tipo de liderança.
Alguns deles pertenciam a famílias antigas de São Paulo, com bonitos nomes aos quais eu era sensível, pois me parecia que musicalizavam o ambiente em que as pessoas viviam, dando-lhes um enquadramento cheio de nobreza, categoria e distinção.
Eles faziam parte da camada dos meninos “demiurgos”, que obtinham as bem-aventuranças terrestres. Entretanto, esses não fascinavam o grosso da classe, mas apenas um pequeno punhado de alguns que viviam eletrizados com eles pela ideia de que assim imantariam uma espécie de quinta-essência, que lhes atrairia a posse permanente da felicidade. De maneira que a frequência ao cenáculo dos mais ricos era tida como grande sorte por esses quatro ou cinco alunos, os quais se separavam e desprezavam o resto da classe, que, por sua vez, os ignorava.
Entretanto, começaram a aparecer naquele tempo certos grã-finos muito mais ricos, ostentando um luxo de mau gosto, extravagante e desproporcionado à sua própria situação, que esmagavam com arrogância os de famílias aristocráticas. Estes últimos, então, não se encontravam nem brincavam com os primeiros, numa atitude de quem os empurrava para longe, apesar da igualdade ser proclamada como a regra do bom viver.
Passei então a analisar esse contraste entre os meninos de bonitos nomes e os novos grã-finos, que se me apresentava com muita clareza. Depois fui percebendo que os primeiros decaíam lentamente e, ao longo dos anos, iam se trajando cada vez pior e relaxando em tudo.
Glorificação da força física
Outro tipo de prestígio era o do aluno esportivo.
Para ser tido como muito varonil, um menino devia destacar-se sobretudo na luta de boxe, sabendo agredir os outros com golpes no rosto, o que me causava horror.
Os campeões do esporte eram muito apreciados e considerados, e eu via que os alunos praticavam os jogos com certo espírito, o qual lhes trazia uma posição de naturalismo e de glorificação da força física. Eu ficava indignadíssimo, pois percebia que isso fazia crescer nas almas deles o processo de brutalização, forçando-os a andarem um pouco mais depressa no caminho da Revolução, o que eles gostavam de sentir.
Quando acabava o recreio, se estivéssemos, por exemplo, no mês de Maria, eles iriam à capela, cantando um hino cuja letra dizia:
“Ide, vamos todos, vamos todos a Maria,
Vamos todos à porfia, porque Ela é nossa amável Mãe”.
Aquela música produzia neles um estado de espírito de doçura que era o contrário da brutalidade, levando-os a imergir por alguns momentos num ambiente religioso. Porém, a passagem semissubconsciente de um mundo para o outro insinuava, no fundo, que essas impressões não tinham importância nenhuma, pois eram inteiramente irrelevantes e só uma pessoa détraquée5 refletiria a respeito delas. E essa modificação contínua seria própria da natureza humana.
Tal sucessão anárquica levava os meninos a uma espécie de vazio da mente, o qual, em última análise, desfechava na seguinte ideia: o caos hollywoodiano, com a correria contínua e a transmutação precipitada de modalidades e de estilos que os filmes apresentavam, era o ritmo ideal de uma processividade que no passado fora demasiado lenta. Então, era preciso jogar-se no “hollywoodismo” desenfreadamente…
Os primeiros da classe
Havia também alguns alunos tidos como ridículos: os mais estudiosos, que eram sempre os primeiros da classe. Quase não brincavam no recreio nem entravam na “turbinagem” dos outros e, possuindo certa facilidade de memória, gostavam de decorar tudo o que era necessário para passar de ano. As cinco declinações do Latim, por exemplo, constituíam para eles um “sorvete”, uma maravilha! Eram também gigantes da Geografia, sabendo dizer qual era a população de Bombaim, qual o rio que passa pela cidade de São Luís do Maranhão ou ainda quais são os limites entre Paraná e Santa Catarina.
Naturalmente, na hora dos exames eles recebiam as melhores notas, o que conferia prestígio diante dos professores e fama entre os parentes, mas nunca junto aos colegas, pois havia o preconceito de que o aluno estudioso era um molengo, não servindo para o futebol ou para a briga, e nem para nada daquilo que caracterizava um homem de ação. Então, ser um bom estudante, com a mentalidade do primeiro da classe, era tido inclusive como um desdouro e ficava feio. De fato, tirar um primeiro prêmio nos estudos glorificava um aluno muito menos do que ser um esportista competente.
Esses meninos eram completamente desprestigiados, mas em toda classe havia dois ou três assim que, no fim do ano, tinham o peito constelado de medalhas e a cabeça cheia de desprezo, pois todos os colegas riam deles. Eram os errados da turma.
Eles gostavam de ter os seus livros muito limpos, bem cuidados e protegidos, e arranjavam umas capas de papel para cobri-los, com o nome da matéria escrito em cima. As pontas dos lápis deles eram um primor, pois possuíam estiletes que utilizavam para fazer uma espécie de ziguezague na madeira, como um rendilhado perfeito. Em algumas ocasiões, tentei fazer o mesmo, mas o meu lápis voava em estilhaços, eu cortava o dedo e quebrava a lâmina… E um deles, que estava perto, certamente me considerava um candidato à barbárie e pensava: “Um homem que nem sabe fazer uma ponta de lápis…! Imagine o que ele pode vir a ser!”
Em geral, os alunos tinham umas pequenas caixas de madeira, usadas naquele tempo para guardar objetos escolares. As minhas viviam pingadas de tinta, mas as desses meninos eram impecáveis! Eles eram também muito jeitosos para consertar os relógios de pulseira, com um objeto apropriado. Então, às vezes faziam-no durante o período dos estudos, como verdadeiros pequenos mecânicos.
As botinas deles estavam sempre bem engraxadas. Mantinham o cabelo rigorosamente penteado com fixador norte-americano, reluzente como um assoalho sintecado. Especialmente o primeiro aluno da classe costumava ter uma listra impecável no meio da cabeça. Possuíam inclusive um temperamento próprio, muito calmo e tranquilo, sabendo ser afáveis e gentis. Dir-se-ia que eles e os turbulentos deveriam constituir partidos contrários, mas não era assim. Eles não defendiam o bem e, por isso, não combatiam os piores, mas ignoravam-nos.
Quase por via de regra, esses primeiros da classe possuíam pouca inteligência. Por quê? Por uma razão curiosa: eles não gostavam propriamente de saber, mas de estudar. Eram iludidos pela ideia de representarem um bonito papel junto aos outros, mas de fato não tinham um interesse vital pelo estudo nem desejavam satisfazer uma necessidade de conhecer. Tanto fazia uma matéria escolar quanto outra, pois a questão era apenas repetir uma série de pontos que os professores ensinavam e depois receber os primeiros prêmios.
Podia-se esperar que, quando terminassem o curso secundário e passassem para as faculdades, eles seriam grandes universitários. Porém, vários deles fracassaram nessa primeira ponte.
Diferenças entre inteligentes e estudiosos
Quais eram, então, os alunos do meu tempo que tiveram verdadeiro sucesso?
Aqueles que de certa forma entendiam as matérias ensinadas nas aulas e possuíam alguns dotes para se sobressaírem no campo intelectual, mas não eram os primeiros da sala. Em geral, meninos que não tinham a preocupação de uma carreira nem de fazer um bonito papel, mas possuíam a seguinte qualidade de espírito, que eu considero muito importante: não lhes interessava apenas saber se, por exemplo, um par de sapatos estava na última moda, um relógio era de boa qualidade ou uma piada era engraçada; entretanto, tinham o desejo de conhecer com maior profundidade algumas realidades sérias.
Deus, que governa toda a Criação com sabedoria e bondade, configura a mentalidade dos homens de maneira a desejarem saber determinadas coisas e é a partir dessas legítimas curiosidades que Ele promove o progresso da humanidade, pois esses descobrem as novidades, enquanto os que aspiram a fazer um papel prestigioso não inventam nada. Os primeiros têm uma vontade quase sem fim de saber. Por isso, eu não digo de alguém: “Nasceu inteligente, portanto quer saber”, mas o contrário: “Quer saber, portanto se tornará inteligente”.
De maneira que havia duas categorias de alunos nessa ordem de coisas: os verdadeiros inteligentes, que desejavam conhecer, e os autênticos ineptos, que não o desejavam. Esses últimos eram com frequência os mais estudiosos, cujo horizonte medíocre tinha o tamanho das lições deles e dos pequenos problemas de todos os dias, para além dos quais não tinham vontade de saber nada. Mas o horizonte largo, os problemas políticos, sociais e ideológicos de um país – temas que me agradavam enormemente –, não eram conhecidos por esses bonzinhos da turma, pois estavam além das pessoinhas deles. Não possuíam visão de conjunto e por isso eram nulidades, beldroegas que não tinham o espírito nobre da verdadeira curiosidade e não aprofundavam nada.
Nunca consegui ser amigo de nenhum deles!
O pseudopiedoso
Assim como era malvisto o primeiro aluno da classe, também era desprezado o que tomava ares piedosos. Os meninos mais religiosos eram com frequência os mais bobos da sala e pareciam ter a razão atrofiada ou deformada em certos pontos. Por outro lado, eram doces e suaves, e gostavam de rezar diante das imagens, mantendo o pescoço torto. Não eram muito corajosos e, quando lhes diziam desaforos, engoliam-nos com um sorriso covarde.
Até o modo de cortar e pentear o cabelo era característico neles: puxado para a frente e fazendo uma franja, de um modo chamado naquela época “a la bebê”. De maneira que, às vezes, via-se uma fisionomia onde já começava a esboçar-se um projeto de bigode, mas com aquela franjinha…
Os desordeiros
O grande foco do prestígio era constituído pelos alunos engraçados que sabiam contar piadas:
– Soube da história do caipira e do tatu? Conhece a história do inglês com a lagartixa?
Eles narravam anedotas de todos os jeitos, que eu não conhecia nem queria ouvir, pois me parecia que pactuaria com o mal se as aprendesse. Saberia replicar com argumentos numa discussão, mas não tinha graça nem facilidade para responder com outras piadas ou com uma palavra brilhante.
Esses piadistas sabiam disseminar a alegria em torno de si e conduziam a farândola dos revolucionários, agindo como falsos profetas que levavam os cegos a caminharem para o abismo. Eram aqueles que promoviam a maior desordem, fazendo micagens na hora de rezar e desrespeitando os professores, armados da sátira e da macaqueação. Tinham cotação junto aos colegas e eram muito apoiados, possuíam verdadeira liderança e eram os reis da situação.
Na minha classe, cada vez que um desses enfrentava o professor ou era irreverente para com ele, subia da plateia dos alunos um “uuuh” de admiração por aquele “corajoso”. Pelo contrário, os poucos meninos sérios e corretos, que rezavam bem, eram vistos com desprezo e postos à margem da festa, execrados pelos festeiros como pessoas insípidas, insignificantes e sem personalidade. Talvez não fossem caluniados, mas se fazia em torno deles uma atmosfera que lhes tornava a vida desagradável. Era uma espécie de excomunhão.
Lembro-me bem da atitude de um menino de certa família muito tradicional. Ele tinha ares de desdém e fazia pouco caso daquilo que era ensinado, mas sobretudo da virtude. Ao ouvir qualquer afirmação dos padres, ele dava um riso de sarcasmo superior e os outros alunos se encantavam de ver aquele pequeno líder na primeira fileira. Alguns desses revolucionários eram tão insuportáveis no modo de tratar os professores, que eu cheguei a ver um padre chorar por causa das atitudes de um aluno, o qual constituía para ele um verdadeiro tormento.
Outros chegavam a gostar de serem caçoados e faziam palhaçadas para atrair o debique da classe, o que, para a minha mentalidade, era inconcebível! Um dos meus colegas, por exemplo, tinha uma especialidade horrível, na qual era campeão: quando o professor se zangava com ele, virava as pálpebras pelo avesso com as mãos e continuava assistindo à aula daquele modo. Viam-se então aqueles olhos saltados e aquelas pálpebras vermelhas como chagas. Então, se ele era repreendido por estar conversando no fundo da sala, por exemplo, todos os colegas se debruçavam para ver os olhos dele e caíam na gargalhada, enquanto o padre fingia não ver nada…
Em certo momento, porém, vinha o castigo:
– Venha cá e permaneça de pé, olhando para a parede.
Ele ia para um canto da sala e tinha de ficar até o fim da aula junto ao quadro negro, mas, de repente, todos os alunos davam uma risada: o punido tinha virado novamente as pálpebras e voltava-se para eles assim. O padre não percebia logo, pois quando ia verificar o que acontecia, o menino desvirava as pálpebras e se apresentava com uma fisionomia muito natural. Apenas o padre recomeçava a lecionar, ele repetia a brincadeira… Eu nem o olhava, pois ficava horrorizado com aquele espetáculo.
Depois, o mesmo aluno fazia micagens com os pés, tirando os sapatos e as meias, sem que o professor o notasse. Líder revolucionário de primeira ordem, com grande popularidade por fazer o papel de palhaço, as atitudes desse menino eram tidas como proezas.
Apóstolos do mal
Eu soube distinguir muito cedo esses turbulentos, os quais eram também os ideólogos do colégio. Fortemente marcados pelos filmes de cowboys, eles eram muito mais influenciáveis pelas novidades revolucionárias do que os alunos de uma natureza mais plácida e tranquila, que aderiam a elas arrastados por covardia, medo ou preguiça. Estes últimos não apoiavam as novidades sponte sua6, mas movidos pela pressão dos líderes, e entendiam logo quais eram os pontos que não podiam atacar, para não serem criticados por todos.
Os agitados, entretanto, iam galopando de encontro à modernidade. Verdadeiros diabinhos, dotados do senso do mal, esses sempre apoiavam, favoreciam e levavam à frente a Revolução, tendo uma espécie de intuição “profética” para os avanços dela e fazendo um proselitismo específico no ambiente escolar. Autênticos apóstolos do mal, odiando e combatendo qualquer forma de bem.
Para desempenhar esse papel, eles possuíam certos carismas e dons naturais, que lhes davam a capacidade de serem companhias agradáveis e fascinantes para os outros alunos: eram engraçados, tinham boa pontaria para jogar pedras, sabiam pular muros e mostravam-se sempre insouciants7. Qualidades de enorme importância para um líder infantil.
Afetando um soberbo analfabetismo e grande ódio à cultura, esses meninos detestavam o estudo, por horror a qualquer aplicação da inteligência e por terem assumido precocemente certo tipo humano feito de impressões e não de raciocínios.
Em geral, esses alunos eram também os promotores da imoralidade.
Impureza e brutalidade
No colégio, a Fé era ensinada oficialmente, mas a impureza o era clandestinamente, de uns alunos para os outros.
Durante o recreio, os padres permaneciam vigiando e andavam pelo pátio, prontos para intervirem no caso de qualquer briga de tapas e pontapés. Quando se aproximavam dos meninos que conversavam, estes em geral agiam com certa correção, por receio de serem castigados, receberem notas baixas ou terem problemas com os respectivos pais. Mudavam o assunto, de modo que o padre nem imaginasse do que estavam tratando, mas, apenas ele voltava as costas e se afastava, a conversa se tornava a mais imoral possível.
Portanto, toda a vida real dos alunos era rodeada de um segredo, mantido sob a forma de uma cumplicidade completa e de uma hostilidade em relação a quem não fosse como eles.
Desta forma, o menino era prestigiado na razão inversa de sua pureza. Aqueles que conhecessem a palavra mais impura e a anedota mais inconveniente brilhavam entre os colegas, eram aclamados como colossos e lideravam a penetração das ideias e maneiras hollywodianas. Tinham uma espécie de alegria imanente e comunicativa, que dominava o ambiente e deixava subentendido que eles caminhavam para uma apoteose, sendo destinados a fazerem grandes carreiras.
Eles se ufanavam de cometerem pecados contra a castidade como algo prestigioso, contando uns para os outros como os tinham praticado. Por outro lado, quase todos afirmavam que iriam frequentar lugares suspeitos, tão logo se tornassem mocinhos. Alguns moravam em ruas próximas desses lugares e, não podendo entrar neles por serem ainda meninos, iam passear a pé ou em bonde nas proximidades dessas casas, para fazerem gracejos e brincadeiras com as pessoas que lá estavam. Eram também precoces na compra de más revistas e possuíam fome e sede de pecado, enquanto eu tinha fome e sede de pureza.
Não me custou perceber que a revolta, a falta de asseio e outros defeitos eram ramificações da impureza, enquanto as pessoas castas sempre procuravam admirar e respeitar, e tinham encantos pelo cerimonial e pela pompa. Aqueles que praticavam ações contra a pureza, mas sobretudo os que se gabavam disso, muitas vezes eram os menos limpos, os mais brutais e se relacionavam com a camaradagem mais cafajeste. Por outro lado, não gostavam de admirar, mas faziam questão de serem admirados e desejavam derrubar toda superioridade.
Então, compreendi que o modo de ser dos impuros, completamente desprovido de amenidades e gentilezas, era promovido por alguns meninos, entregues a influências malfazejas das piores, que introduziam esses costumes e desprezavam os que não se deixassem modelar por eles. Existia, portanto, uma pressão armada para levar todos os alunos numa determinada direção.
Eu presenciei cenas assim: às vezes, algum menino procurava fazer palhaçadas, para entrar no grande “clube dos engraçados”, mas, como ainda possuía algumas raízes de bem, tornava-se um palhaço sem graça nem jeito. E os outros tinham um modo de rir da piada dele, que indicava, no fundo, o seguinte: “Apenas com isso, você não entrará. Só poderá fazê-lo se pecar contra a castidade, pois, aí sim, terá adquirido certo ‘fermento’ que fará de você um homem engraçado. Nós sentiremos sua impureza e, assim, você será louvado e recebido no clube. Do contrário, permanecerá de fora”.
Por causa disso, o menino que tinha intenção de ingressar naquela roda acabava jogando-se na impureza para pôr-se em dia… Às vezes, era uma mediocridade no clube ou, pelo contrário, salientava-se como um pequeno demônio.
Esses líderes da imoralidade eram os piores alunos: sentavam-se, em geral, nos últimos lugares, não prestavam atenção nas aulas, atiravam bolinhas de papel e viviam no frenesi pela hora do recreio. Além do mais, moviam a perseguição contra os que não queriam pactuar com o mal.
A perseguição
Se um aluno se levantasse em sentido contrário aos piores, difundindo as boas ideias, seria imediatamente visado, caracterizado, ridicularizado, isolado e completamente neutralizado. Tornava-se um menino sem prestígio, sem influência e sem capacidade de ação.
Como eu percebia isto? Vendo em torno de mim um ou outro colega, o qual se manifestava na linha do bem, de modo tímido e, às vezes, por deixar transparecer inadvertidamente um bom reflexo de algo que aprendera em casa. Isso bastava para começarem logo as gargalhadas e os apelidos. Aquele estava condenado.
Por exemplo, o menino delicado, amável e culto, que conversava sobre os livros que lia e possuía gosto musical ou maneiras finas, era pelo menos suspeito de falta de varonilidade. Por causa disso, muitos alunos que, por natureza ou vocação, teriam uma tendência contrária ao modo de ser dos outros – brutal e boçal – eram irremediavelmente caçoados, sobretudo se quisessem conservar-se castos.
Quem tivesse o propósito de nunca pronunciar uma palavra indecente, de jamais dar risada diante de um dito inconveniente e de evitar as ocasiões próximas de pecado, era apresentado a todos como um efeminado, merecedor do maior desprezo e recebia as acusações mais desagradáveis.
Então, crianças ainda incapazes de organizar uma conspiração se entendiam tacitamente, para perder os que eram puros. Nem precisavam combinar entre si! Bastava entrar no colégio um menino bom e direito, ou desejoso de praticar a castidade, para eles se entreolharem e darem uma piscada. Faziam certo “gelo” inicial em relação ao novato e, quando percebiam que o vazio estava constituído em torno dele, começavam as brincadeiras para ridicularizá-lo e fazer dele um pária.
Essas brincadeiras iam se transformando em debiques e apelidos cada vez mais cáusticos, após os quais vinham os pontapés, as caneladas e os empurrões, até jogar o menino no chão e exigir que dissesse uma palavra imoral, pois do contrário apanharia. E se ele dissesse: “Eu sou casto! Quero manter a minha inocência!”, seriam capazes de cuspir-lhe na face.
Era quase impossível, ou pelo menos dificílimo, manter-se bom no meio daquela situação insuportável. Então, os meninos puros, sentindo-se isolados, bloqueados e temerosos de enfrentar a onda de hostilidade e de perseguição, acabavam cedendo, na sua imensa maioria, e passavam a utilizar a linguagem dos impuros.
Por que acontecia tudo isso?
A lepra do espírito
Antigamente, havia em certas regiões do Brasil bandos de leprosos com a face desfigurada, andando de um lado para outro e pedindo esmolas. Eu cheguei a presenciar essa cena, mais de uma vez, em Poços de Caldas, cidade agradável e elegante, próxima de Águas da Prata.
Durante os passeios que fazia com minha mãe, eu via aqueles homens que passavam a cavalo, estendendo canecas de metal amarradas nas pontas de umas varas compridas, para os transeuntes depositarem moedinhas. Algumas pessoas tinham tanto pavor que nem se aproximavam deles – a lepra era incurável na época –, enquanto outras eram mais misericordiosas e resolviam correr um risco para ajudar aqueles pobres coitados. Mamãe, por exemplo, tinha muita pena deles. Os leprosos agradeciam e continuavam a passear lentamente pela cidade.
Nas primeiras vezes, não entendi bem do que se tratava, mas depois comecei a ouvir uma série de boatos que havia naquele tempo, os quais me causaram pânico e horror. Dizia-se que os leprosos tinham a seguinte ilusão: sarariam quando conseguissem contagiar sete pessoas com a doença. E as canequinhas seriam utilizadas por eles para tocar naqueles que lhes davam o dinheiro e contaminá-los. Então, quando íamos a
Poços de Caldas, eu não saía mais à rua, mas permanecia no hotel, cheio de desconfiança em relação à maldade humana.
Essa suposta ilusão dos leprosos explica a frequente atitude do homem impuro diante da pureza. Ele vive agitado por uma espécie de trepidação e de mal-estar interior, causados pela desordem do pecado, e sente-se magoado em seu amor-próprio pela superioridade do puro, sua paz, seu bem-estar e seu frescor luminoso, que o fazem viver num verdadeiro paraíso interior. Resultado: ele odeia o puro e tem a tendência de imaginar que se libertará dos seus males se conseguir prejudicar, manchar ou destruir essa ordem.
Assim, quando os meninos impuros conseguiam que um aluno inocente se perdesse, experimentavam a sensação passageira que poderia ter o leproso ao contaminar uma pessoa: um aparente sossego interno. Mas imediatamente começava o remorso: “Eu não deveria ter feito isso! Olha como ele está: um monstro, semelhante a mim! Que horror! Que horror! Qual é a solução? Fazer a mesma coisa com vinte outros!”
“Crianças boazinhas”
Entretanto, naquele tempo, muitos adultos ainda conservavam o mito de que todas as crianças eram boazinhas, inocentes por definição e se relacionavam entre si como anjinhos. De vez em quando, alguém me dizia:
– Olhe lá, tal criança é inocente, como você.
Às vezes eu respondia:
– Será? É preciso ver… Eu noto inclusive indícios do contrário.
Por duas ou três vezes, aventurei-me a contestar essa ideia de todos os meninos e meninas serem bonzinhos, e obtive a réplica da Fräulein:
– Homem! Eu esperava que você tivesse uma alma mais elevada e não estivesse procurando defeitos naqueles que lhe são tão próximos!
Pensei comigo: “Não entendo mais nada! Pois, se uma alma não-elevada foi posta ao meu lado, devo achar que é elevada apenas por tratar-se de um conhecido, muito próximo de mim? Isso não tem propósito!”
1 Erros em relação às boas maneiras.
2 Desalinhado, desbragado.
3 Ardor, empuxe.
4 Elegante, atualizado na moda.
5 Desequilibrada.
6 Por iniciativa própria.
7 Despreocupados.
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