O último ano escolar
Naquele tempo o ciclo ginasial constava de cinco anos.
Então, depois de haver estudado no estabelecimento do Prof. Raspantini, resolvi voltar para o Colégio São Luís e ali cursei o último ano.1
Nesse período, como nos anos anteriores, o ambiente foi pouco propício aos meus objetivos, e não consegui a adesão de nenhum dos colegas ao meu modo de pensar.
Entretanto, criou-se entre eles uma espécie de extenuação em relação a mim, como se dissessem: “É fato consumado! Ele é um corpo estranho entre nós e não há meios de liquidá-lo.2 Sendo assim, e não podendo caçoar dele perpetuamente, é melhor deixá-lo viver”. E olhavam-me sem nenhuma admiração, com expressão melancólica e decepcionada, esperando que eu concluísse o quinto ano para o colégio voltar a viver em paz.
Para mim, esse estado ainda foi muito duro, mas havia uma compensação: eu não tinha a consciência pesada de quem calou a verdade, que traiu o bem e chegou a aplaudir o mal por medo de uma risada, para receber o prêmio vil daqueles que se entregam e dobram o joelho diante da corrupção. Ou seja, eu não atraí ninguém para a Contra-Revolução, mas me tinha feito respeitar nos arraiais da Revolução.
Conselheiro da Congregação Mariana
Nesse mesmo ano foi nomeada a diretoria da Congregação Mariana do colégio,3 eleita pelos próprios congregados. Então, certo dia o Pe. Roumanie,4 jesuíta francês, me chamou com ares muito doces, tomou minha mão entre as dele e disse-me:
– Plinio, houve agora uma eleição para a Congregação. Eu lhe pergunto: você acha que foi eleito para algum cargo?
Pensei um pouquinho e respondi:
– Não sei, não tenho ideia.
Ele transmitiu a notícia, como sendo uma grande honra:
– Pois tenho a alegria de comunicar que você foi eleito para conselheiro da Congregação!5
Professores impessoais, aulas anônimas
Como em todo lugar, as aulas eram sucessivas: Religião, Matemática, História Natural… Batia o sino, saía um professor e entrava outro; saia um leigo e entrava um Padre, os alunos se levantavam, rezava-se uma Ave Maria no começo de cada aula, sentavam-se de novo e o professor começava a expor a matéria.
Entretanto, quando eu entrava na sala de aula tinha sempre uma impressão estranha, de completa frieza de alma. Era a sensação curiosa de que os professores eram inteiramente impessoais: um professor de História trataria a respeito da Revolução Industrial do século XIX, nos mesmos termos em que o professor de Química iria falar do hidrato de carbono, sem procurar estabelecer algum nexo entre uma matéria e outra, e sem apreciar o sabor do que ensinavam. Parecia o mesmo homem com a mesma personalidade, dando a mesma aula anônima e obrigando-nos a ouvir e saber o que ele queria: ideias abstratas e definições pré-fabricadas.
Eu sentia que as noções entravam na minha mente, como se fosse uma caixa de correio na qual era depositada aquela “correspondência”. Assim, em apenas uma hora, os alunos eram ingurgitados de matérias que o espírito humano levaria cinco horas para assimilar, e saíam da sala com uma sensação de supernutrição, de indigestão ou de falta de ar.
Por isso, aquelas aulas eram duras para o professor e para os alunos. O primeiro não tinha a alegria nem o gosto de ver que estes as aproveitassem, e eles não se sentiam atraídos por ensinamentos com os quais não tinham nada a ver.
Eu prestava atenção nos meus colegas: alguns tiravam o relógio-pulseira e o colocavam sobre a própria mesinha, de maneira a ir contando quanto tempo faltava para sair correndo em direção ao recreio, e assim assistiam à aula. No fundo, adquiriam um preconceito contra o ensino para a vida inteira.
Esse era o defeito das aulas do ensino secundário do meu tempo, mesmo quando muito substanciosas. As matérias não pareciam estar vivas nas almas dos professores, exceto nos poucos casos em que algum deles mostrava mais a sua própria personalidade e entrava numa interlocução com os alunos, dando a comunicação de suas sensações à medida que ia lecionando.
Nas aulas de Lógica, uma dúvida
Nesse último ano escolar estudei Lógica.
Pela posição de umas palavras em relação às outras, pelo modo de exprimir várias modalidades de raciocínios, os alunos podiam descobrir se estes eram verdadeiros ou falsos, em geral com o silogismo clássico: “Todo homem é mortal; ora, Pedro é homem; logo, Pedro é mortal”.
Durante essas aulas ouvi também um famoso sofisma, que era enunciado para embaraçar os alunos: “Todo cavalo barato é raro; ora, tudo quanto é raro é caro; logo, um cavalo barato é caro”.
Pensei comigo: “Eu quereria saber o seguinte: por que tudo quanto é raro é caro? Há aqui um princípio ordenativo que eu deveria entender, e que ele menciona com toda naturalidade, sem explicação. Que sentido tem esse princípio geral? Tudo o que é altamente qualitativo tem de ser raro. É verdade. É verdadeira a recíproca, de que tudo quanto é raro é altamente qualitativo? Não”.
Era um bonito problema de relação entre número e qualidade, mas que eu não entendia bem… De qualquer modo, aquele professor dava a entender que a solução de um problema consistia em escrever o raciocínio e conferi-lo com essas regras da lógica. E o resultado que não fosse obtido na ponta de um raciocínio não possuiria autenticidade demonstrada.
Fiquei abismado com aquilo, pois, apesar de gostar muito de pensar, achava aqueles raciocínios um pouco vazios, e parecia-me que poderia saber muitas coisas sem aprender tantos argumentos. Ora, como isso seria factível, se o raciocínio fosse a base de tudo? E punha-me o problema: “O professor despiu a realidade de uma porção de impressões desnecessárias, extrínsecas a ela e fabricadas por minha imaginação? Ou, pelo contrário, ele amputou a realidade,
por imaginar que ela é conhecida apenas pelo raciocínio?”
Eu tinha vontade de levantar-me e expor aquilo para o professor, mas percebia que ele mesmo não atinaria com a solução… Então, hesitei muito entre uma e outra hipótese, mas depois encerrei o caso: “Se o raciocínio é uma conclusão tirada de duas premissas, ou houve duas primeiras premissas não raciocinadas ou não existiu o primeiro raciocínio. Esse ponto não padece dúvida, pois é totalmente irretorquível! Então, nem tudo é fruto do raciocínio, mas há algo que é fruto da observação. Ora, a observação tem possibilidades de captar a realidade de acordo com os sentidos humanos e, se mais sentidos houvesse, mais realidades captaríamos. Logo, a existência daquilo que é imponderável não se prova principalmente porque eu possuo os cinco sentidos, mas porque tenho uma alma para analisar a mensagem que os sentidos me trouxeram. E o creme da minha percepção não é o que os meus sentidos percebem, mas o que minha alma conheceu do que os meus sentidos perceberam. Esses são os primórdios de meu processo mental! Agora, eu tiro a conclusão: as minhas impressões, formadas retamente na temperança, são afinadas de acordo com a doutrina católica e, portanto, verdadeiras. Os outros podem não ver o que eu vejo e podem ver outras coisas que não vejo, mas as minhas impressões valem, inclusive contra as deles”.
Essa conclusão me evitou o naufrágio criteriológico, e assim eu percebia que tinha o senso da verdade sadio e plácido, e conhecia a Lógica sem tê-la estudado. Se fosse conferir as minhas percepções com as regras da Lógica, teria a sensação de uma pessoa que ouve normalmente, mas lhe oferecem um aparelho de audição para ouvir um concerto musical.
Assim, nunca acreditei que as aulas de Lógica ajudassem muito alguém a ser lógico. E pensava com meus botões: “Eu não compreendo porque sou obrigado a estudar essa matéria! Se o homem precisa saber Lógica para ser lógico, ele nunca a aprenderá. Ora, se ele é lógico sem isso, para que aprender? Sendo reto, serei lógico!” E depois concluía: “É bom estudar isto, para provar aos demais que a Lógica tem valor, mas não para utilizá-la como instrumento para pensar”.
Um “painel” interior de problemas
Assim, mais do que procurar formar para mim um método de pensar, aprendi a pensar pensando, e de um modo que talvez seja muito brasileiro: percebendo por experiência direta que determinadas coisas eram verdadeiras.
Às vezes, no ambiente em que eu vivia, nas afirmações dos meus professores, nos jornais ou em algum livro, deparava-me com raciocínios contrários àquilo que eu julgava ser uma verdade, relacionada com a doutrina católica. Ora, eu amava profundamente essas verdades que eu havia “pescado”, mais do que a luz dos meus olhos e do que minha própria vida. Então, dedicava-me a defendê-las contra a dialética daqueles argumentos que, a priori6 e sem saber refutá-los, tinha a certeza de não serem verdadeiros, por notar neles qualquer coisa de oco e de artificial. E pensava: “Vou guardar esses argumentos errados, pensando e pensando… E de tempos em tempos vou esmagá-los. Para isso tenho memória!”
Era um debate interior de meu ideal e de minha lógica contra a falsidade.
Então, tomava tudo quanto honestamente e com probidade servisse para combater o erro: um fato concreto, um raciocínio; ou, às vezes, lendo certa frase de algum escritor, dizia: “Esta frase tem algo que vai me servir! Ainda vou descobrir o que é…” E guardava-a.
Tinha assim uma espécie de “painel” interior – não organizado – com toda espécie de afirmações que atacavam as minhas teses católicas, e ia montando o “antipainel”, à força de raciocínios e leituras.
Estudando Apologética
Nesse último ano escolar também fiz o curso de Apologética, o qual consistia no estudo das objeções contra a Religião Católica e das respostas que se lhes devia dar.
Toda a existência dessa disciplina era baseada na ideia de que tais objeções dos adversários da Igreja, supostamente baseadas
na razão, eram erradas e podiam, por sua vez, ser respondidas com réplicas racionais, uma vez que todos os pontos da doutrina católica são justificáveis por via de raciocínio baseado na Revelação, ou pelos dados da religião natural.
Ora, o professor de Apologética era o que lecionava menos bem no colégio… Ele apresentva boa quantidade de argumentos, alguns dos quais eram muito dignos e me entusiasmavam, e outros menos bem expressos, que não ensinavam a combater o erro. Nesses casos, de vez em quando eu tentava fazer alguma objeção, mas ele me dava respostas nas nuvens.
Por exemplo, para justificar o culto externo que se deve prestar a Deus, ele oferecia uma argumentação superficial:
– Bem, em suma, vou dar o argumento decisivo para provar a necessidade do culto externo: o homem não é apenas alma, mas é também corpo. Está demonstrado!
Era verdade, mas como partir daí e chegar a uma conclusão? Ele precisaria fazer uma verdadeira demonstração, ainda mais para alunos de catorze ou quinze anos! Pensei de mim para comigo: “Não vou objetar mais, pois isso poderia fazer mal aos meus companheiros de aula, que são capazes de entender a minha objeção, mas não de entender a resposta dele. Então, o melhor é permanecer calado… Eu creio no que ele está sustentando, mas, se alguém devesse se basear nesses argumentos para ser católico, poderia até se tornar maometano, pois deles não se deduz nada!”
Um problema no ensino da doutrina
Então, às vezes o professor dizia:
– Vou dar as provas da existência de Deus.
E eu me lembro de haver raciocinado assim: “Provar a existência de Deus é excelente, e eu me sentiria muito contente de fazê-lo, mas, se não compreender essas provas, isso para mim não terá nenhuma importância, pois há em mim qualquer coisa que me diz que Deus existe! Portanto, ou o aluno já era ateu antes da prova ou ele não precisa dessa prova”.
Mas eu via que a construção racional era apresentada como sendo a via única da convicção religiosa. E pensava: “O ensino desse professor reflete a Igreja, que é infalível, enquanto eu não sou. Então, estarei enganado? E o funcionamento interno de minha mente – o qual me mostra que Deus existe – é arbitrário e gratuito? Uma fantasia sentimental que eu delineei ou que alguém me transmitiu e aceitei, apenas porque me agradou?”
Assim, eu esbarrava nesse ponto, sobre o qual não era dada nenhuma explicação, como se a temática nem existisse. Com isso, acabava sendo que todo o ensino de Religião era sujeito à dúvida, pois o aluno poderia dizer: “Se a prova não der certo, a doutrina está errada”.
Creio que, em parte, vinha daí o desinteresse dos meus colegas por essas aulas. Enquanto ouvíamos aquelas explicações, eu olhava para eles e notava fisionomias de tédio. Além do mais, tais aulas se davam junto à pia das experiências de Física, na qual caía uma gota de água a cada certo tempo… Aliás, ela me servia de ampulheta, pois eu via aquelas gotas e pensava: “Um minuto a menos, um minuto a menos…”
“Olhe e veja!”
De qualquer maneira, eu havia conhecido – por ação da graça, como que misticamente – que a verdade está na Igreja Católica. E, por isso, concluía: “Essa promessa não pode falhar”.
Assim, naquele curso de Apologética aprendi o necessário para utilizar alguns argumentos em discussões, mas, na realidade, não estudei a matéria a fundo, pois a veracidade da doutrina católica me parecia tão razoável e evidente, que não via a importância de fazer tanto esforço para me persuadir daquilo que era para mim uma convicção plena e intuitiva, mesmo sem saber prová-la.
E se me perguntassem por que a Igreja é verdadeira, minha resposta seria: “Olhe e veja! Não precisa mais do que isso”.
Adoração da ciência e subestima da Fé
Nesse último ano hipertrofiava-se de modo fabuloso o estudo de Física, Química e História Natural, matérias muito vastas, ecléticas e insípidas, com as quais eu implicava muito, pela minha enorme dificuldade em aprendê-las e por serem completamente contrárias à minha inclinação.
É preciso tomar em consideração que tais matérias apresentavam naquele tempo grandes novidades, trazidas por descobertas científicas maravilhosas, as quais eram como a expressão de um mundo novo e prestigioso, que desvendava os segredos da natureza. Ora, daí advinha uma espécie de adoração da ciência e das suas verdades indiscutíveis, o que acarretava tacitamente a subestima dos bens do espírito e, sobretudo, da Fé, pois esta não proporcionava certezas palpáveis, mas parecia estar envolta em dúvidas.
Então, quando algum professor dizia: “está provado!”, referindo-se a alguma descoberta da ciência, naquelas palavras era insinuado o seguinte: “Sorva as delícias da prova e não aceite meras imaginações do espírito, as quais não têm o valor da coisa demonstrada. Esta é a certeza!”
Dava-se a entender também que as mulheres tinham Fé porque a inteligência feminina era inferior à masculina e, portanto, não era exigente em matéria de certezas, mas deixava-se levar por sentimentos. Ou seja, se um homem tivesse Fé, concluía-se que ele era mole e efeminado, pois também se deixara levar pelo sentimento, faltando-lhe a rijeza necessária para provar que possuía um feitio másculo.
Considerações sobre o organismo humano
Nas aulas de anatomia, por exemplo, o organismo humano era apresentado e explicado à maneira de uma máquina. Lembro-me da primeira vez que vi um boneco, em pé, representando os músculos humanos: tive desagrado em imaginar que existia aquele horror por minha pele adentro! Recordo-me igualmente da impressão que senti, quando vi em aula um desenho representando o coração: achei-o horroroso!
Tinha apenas vagamente as formas e as expressões do coraçãozinho bonitinho e vermelhinho, de contornos harmoniosos, desenhado no baralho, que eu imaginaria pulsando como uma joia feita de rubi. Pelo contrário, era um pelote de carne, sem nenhuma preocupação ornamental, do qual saíam umas tantas veias complicadas, à maneira de tubulações hidráulicas, e se afundavam pelo organismo. Assim, achei que as entranhas são como os subterrâneos da terra, feitos para não serem vistos.
Nessas aulas ainda não se utilizavam as caveiras de matéria plástica que houve depois, mas o verdadeiro crânio de um morto, suspenso num gancho para facilitar as explicações do professor. Às vezes também era mostrado algum osso isolado, no qual eu prestava atenção: parecia-me haver nele uma necessidade clamorosa de voltar à ordem da qual ele fora destacado, e lembrava-me de ossos de animais que eu vira em certas fazendas de café, jogados no chão, brancos de tão calcinados pelo sol. Ninguém os destruía nem os guardava, e ali permaneciam por tempo indefinido, servindo de casa ou de alimento para as formigas, numa espécie de pós-história. Aquilo me dava ideia de algo que bramia, por ter sido separado de uma totalidade para a qual fora feito.
Em outra ocasião o professor expôs o funcionamento do olho humano, com verdadeiro entusiasmo, demonstrando que estudos recentes haviam permitido chegar à conclusão de que ele tem muita semelhança com a máquina fotográfica, e que se pode explicar perfeitamente cada parte e cada função do olho, conhecendo bem a técnica da fotografia. Portanto, descobrindo a máquina fotográfica o homem tinha desvendado também o sistema ótico. Isso me causou verdadeiro interesse.
Recordo a impressão que tive quando o professor explicou a função das papilas. Depois fui para junto do espelho e comecei a olhar as papilas da minha língua, perguntando-me a mim mesmo se a fonte de delectações tão excelentes era realmente essa, ou se a inteligência teria algum papel na degustação…
Aulas de Física
Na aula de Física, certo dia o professor disse:
– Newton,7 um homem genial, descobriu a regra de que a matéria atrai a matéria, na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado da distância!
Eu percebia que ele tinha razão, e não sentia nenhuma implicância com esse atrair de matérias – inclusive, me interessava muito por ímãs –, mas, no fundo, tinha uma vontadezinha de ver se encontrava um furo naquela afirmação, para mostrar que o Newton estava enganado. O que me indignava era a mentalidade do professor e de todas as pessoas que enunciavam uma regra e ali paravam, como se tivessem dito tudo sobre o assunto, dando a ideia de que o mundo da Física se explicava a si próprio e que não havia mais nada para ensinar, além de todas aquelas regrinhas.
O que eles diziam era inteiramente verdade, mas ali não estava a verdade inteira. E eu refletia: “Exposta a regra, como pode ele deixar seu pensamento a essa altura do raciocínio? Tudo isso são prolegômenos! Ele não compreende que, depois de ter dito isso, há uma outra pergunta, que é a seguinte: ‘A matéria atrai, mas, por quê?’ Ele pensa que está tudo descoberto!”
Ora, toda a Física era ensinada assim. Aquilo era totalmente inaceitável para meu espírito, pois eu não me contentava em saber apenas isto e aquilo, mas queria conhecer a razão das razões pelas quais essas regras existiam.
Experiências de Física: os vasos comunicantes, o vácuo e o ar
Por exemplo, na explicação sobre a lei dos vasos comunicantes – que aprendi bem porque me pareceu muito simbólica – o professor utilizava um pequeno aparelho, feito de vários vasinhos cujo fundo se comunicava com um tubo, de modo que o líquido de um passava para o outro e vice-versa. Ele então dizia:
– A pressão atmosférica atua assim sobre os líquidos.
Era mais uma regra. Eu pensava: “Está bem, mas, por que tal regra é causa dessa outra?”
Ainda no estudo de Física se fazia a famosa experiência para provar que o ar pesa. O professor trazia um recipiente de vidro, coberto por uma membrana e, com a ajuda de uma bombinha, extraía dele o ar. Em certo momento estourava a membrana, e ele concluía que esta havia sido rachada pela coluna de ar que pesava sobre ela.
Eu tinha uma objeção interior, pois parecia-me que havia uma sucção que acabava por rasgar a membrana de baixo para cima, e não de cima para baixo. E perguntava-me: “O que é essa coluna? Então, o ar vai passando por sucessivas colunas? Por que esse peso se exerceu ali? E todo o ar em volta…? Por outro lado, quando alguém absorve um líquido há uma força de atração, não por causa de coluna alguma, mas pela via atrativa da sucção. Então, por que não foi a sucção da bomba o que arrebentou a membrana? Essa coluna de ar está na cabeça do professor…”
Evidentemente, na hora do exame, eu dizia: “A Física ensina que se trata de uma coluna de ar”, mas a minha objeção permanecia.
Aliás, tive uma surpresa quando o professor de Física disse:
– O gás dentro do qual nós vivemos…
Veio-me à lembrança o gás da cozinha e perguntei-me: “O que ele está dando a entender? Eu vivo num vazio agradável que domino, e agora ele vem dizer que estamos dentro de um gás?” Mas depois pensei: “O que faço quando respiro? Ponho algo dentro de mim. É ele quem tem razão!”
Na experiência com a eletricidade, uma analogia
Havia outro exercício prático nas aulas de Física, que me parecia muito curioso. Um irmão leigo da Companhia de Jesus mandava todos os alunos darem as mãos, e o menino que estava na extremidade tomava um fio – o cátodo ou polo positivo – enquanto outro segurava uma ponta desse mesmo fio, conectada a um aparelhinho elétrico que depois era ligado, fazendo circular a corrente de eletricidade. Todos sentiam um fluído e, em certo momento, o irmão mandava:
– Agora tentem largar as mãos uns dos outros.
Os alunos tentavam abrir as mãos, mas não conseguiam, pois perdiam a liberdade de movimentos, atados àquela corrente. E quando alguém, fora da roda, tocava a mão de qualquer um, saía uma fagulha, o que provava existir ali uma energia que passava entre todos, mas que só se mostrava pelo contato de outra pessoa que permanecia de fora. Era uma festa geral entre os alunos!
Ora, essa experiência me parecia um símbolo, que explicava a situação que eu notava no colégio.
Existiam personalidades superiores aos alunos que, atuando sobre todos eles, davam-lhes uma solidariedade, uma união e uma espécie de fusão de almas, muito mais potentes do que parecia. Acontece que eu estava fora dessa “corrente” e, quando “tocava” neles, fazia sair a “fagulha”. E eles, notando que eu não tinha aquela carga, evitavam o contato comigo, pois sentiam que eu tornava evidente o mal que havia em muitos deles, cuja existência não queriam reconhecer, pois essa evidência os machucava.8
A dança das figuras, harmonia entre formas e sons
Assim, alguns aspectos do curso de Física me interessavam prodigiosamente. Por exemplo, numa aula sobre vibrações, em certo momento o professor fez uma experiência: colocou pó de giz numa placa de cobre ou de bronze, posta num pedestal e, depois, passou sobre ela um arco de violino, como se tocasse uma partitura musical. Então, o pó de giz ia se ordenando e tomando formas geométricas diversas, à maneira de desenhos, segundo aquela espécie de sinfonia. Era quase uma dança de figuras, que visualizavam a harmonia entre as formas e os sons! A analogia entre ambos era tal, que eu me perguntava se seria possível executar uma bonita peça musical desse modo e, ao mesmo tempo, fotografar as formas geométricas. Depois, poderia se apresentar a sucessão dos desenhos, como sendo aquela mesma música desenhada. Que álbum interessante seria esse!
Ora, nunca tive uma conversa com alguém sobre isso, nem sequer com o professor, o qual nem soube responder quando eu lhe fiz algumas perguntas.
A síntese das cores
Também no estudo de Física fazia-se uma experiência muito notável, que obtinha grande êxito entre os alunos. Tomava-se um disco de papelão ou de qualquer outra matéria, com todas as cores do arco-íris, e prendia-se num eixo ligado à corrente elétrica. O disco girava em alta velocidade, fazendo as várias cores se sucederem quase simultaneamente e, então, via-se o branco, pela impressão produzida na retina, o que era feito para provar que o branco é a síntese de todas as cores.
O gargalo estreito e a admiração silenciosa
Outra experiência que me intrigava era a de certos líquidos, os quais, postos em recipientes de gargalo muito estreito, não saíam destes, mas ficavam retidos por uma espécie de “rolha” invisível. O professor de Física explicou a pressão do ar que vem de baixo, a qual mantém o líquido em cima, por ser mais forte que a ação de gravidade. Contentei-me com essa explicação, mas, ainda sem entender bem o fenômeno, julguei que um dia o compreenderia em função de alguma realidade mais elevada.
Anos mais tarde, consegui entender: essa imagem do líquido no gargalo estreito é como a pessoa admirativa, a qual, posta diante de uma grande majestade, permanece muda, sem saber se expandir, pois seus movimentos de alma são tão grandes, que o gargalo da voz humana é insuficiente para transmiti-los. Então, já que não possui outros meios de expressão, admira pelo silêncio.
O fenômeno da ressonância dos cristais
Ainda no estudo da Física, também me interessava muito um princípio chamado lei da ressonância.
Por essa regra, numa mesa sobre a qual há vários objetos de cristal, tocando num deles com a ponta de uma colher, por exemplo, e produzindo certa nota, todos os outros cristais capazes de emitir o mesmo som ou notas harmônicas com ele começam a vibrar ligeiramente e “cantam” com o primeiro, sem que ninguém toque neles. Esse me parecia um dos mais belos símbolos que há na natureza, da união entre as almas que são afins e consonantes entre si.
Entretanto, o professor fazia essa exposição sem muita graça, utilizando uns pobres pratinhos que ele guardava num armário, com enorme cuidado de não quebrá-los. Mas, de qualquer modo, entendia-se o que ele explicava.
Um método de construção de hipóteses
Estudando ciências naturais, também me interessou a metodologia de pensamento dos cientistas. Eu via que alguns deles eram sábios de valor, os quais haviam atravessado situações com muitas incógnitas, dotados de poucos instrumentos de análise concreta, mas possuindo uma opulenta dose do que em italiano se chama comprendonio.9 Eles tomavam os dados de que dispunham e elaboravam inúmeras hipóteses, as quais, tidas como reais, eram objeto de contínua reanálise durante cinquenta ou cem anos pelos pesquisadores.
Estes, porém, às vezes acabavam descobrindo que algumas delas eram falsas, mas aquilo lhes servia como critério de análise para fazer uma depuração das aparências que viam diante de si. Assim, as hipóteses tinham servido de andaime para a construção de alguma realidade. Isso me parecia muito bonito!
Um curso ideal de ciências naturais
Entretanto, a aula de ciências naturais que eu desejaria assistir naquele tempo seria do seguinte modo: o professor tomaria um determinado corpo no seu estado natural e faria a análise deste, segundo os valores simbólicos que seu aspecto, sua cor e sua consistência poderiam representar. Depois estudaria as propriedades físicas do corpo, relacionando-as com essa análise anterior.
Então, por exemplo, eu gostaria que o professor me dissesse: “Está vendo este cristal? Olhe-o à distancia e opine: ele deve ser leve ou pesado, para ter todo o seu sentido? Se for leve, isso deve-se a que a transparência é o contrário do peso, uma vez que ela procura indicar o nada, enquanto o peso significa o que existe e, portanto, a leveza parece própria a tudo quanto é luminoso. Porém, se o cristal for pesado, essa característica num corpo brilhante será particularmente interessante e vitoriosa, pois poderá dizer-se que a verdadeira densidade e a força nascem do brilho. Então, a transparência não é apenas uma qualidade passiva, mas é algo que resiste à luz, e a difunde resistindo. Agora, tome o cristal!”
Esse curso me teria interessado prodigiosamente! Mas seria fechado dois ou três dias depois de haver começado, e o professor seria demitido, pois no estudo dessas matérias era insinuado o contrário, com o seguinte pressuposto: “Todas essas considerações são figurações bobas e fantasmagorias imbecis, uma vez que na natureza não existe relação alguma entre o aspecto externo dos seres e a sua essência. A composição química de uma pedra, por exemplo, não tem relação ontológica de nenhuma espécie com a sua aparência, nem há sequer critérios racionais para ponderar e mensurar essa afinidade. Portanto, um homem sério apenas aplica sua atenção no conteúdo da pedra, e diz, por exemplo: ‘É um silicato’”.
Também a Química me teria interessado muito, sobretudo se eu pudesse fazer experimentos, e pensava que, se tivesse um pequeno laboratório, me distrairia enormemente fabricando produtos fabulosos. Mas creio que, se meus pais possuíssem dinheiro para me dar esse laboratório, eu teria cometido inúmeras inabilidades, com o risco muito provável de causar explosões e fazer a casa voar pelos ares…
Então, habituado a me contentar com pouco, adquiri o hábito de interromper o estudo nas horas de tédio e me distrair com certas experiências, nas ocasiões em que devia me preparar para exames de Matemática, Física, Química ou História Natural.
Estudando em casa, pequenas distrações
Quando eu era menino, minha prima, minha irmã e eu estudávamos com a Fräulein Mathilde na sala que em alemão se chama Kindstubbe,10 o nosso quarto de estudos e de brinquedos. Mas, depois, quando fiquei um pouco mais adolescente e a Fräulein saiu de casa, aquele já não era um lugar adequado para mim e passei a estudar em meu quarto de dormir, diante da janela. Mais tarde, como o escritório de meu pai era um aposento amplo e agradável, dando para a esquina da Alameda Glete com a Alameda Barão de Limeira, então mandaram pôr uma mesinha de trabalho para mim num canto, também perto da janela.
Ali eu sempre tinha um copo e uma jarra diante de mim, e ia bebendo água, o mais das vezes gelada.
E em certas ocasiões, quando passava por minha mesa um inseto, mosquito, mosca, aranha ou formiga, eu parava de estudar, agarrava-o e jogava uma gota de tinta sobre ele. Impedido de voar, começava a andar enquanto eu o assustava e ele ia fazendo um desenho com a tinta no papel. Chegava a passar meia hora divertindo-me assim!
Também fazia experiências com certo produto chamado Eureka, um líquido feito para tirar do papel as manchas de tinta, o qual havia entrado recentemente no mercado de São Paulo, e que eu comprava na papelaria. Mas essas experiências eram fracassadas, pois o Eureka devia ser usado com um mínimo de habilidade e cuidado, e eu manobrava aqueles dois vidrinhos e aquela pazinha de vidro apressadamente, pingando o líquido em quantidade excessiva, para acabar logo…
No fim, a pazinha me servia para raspar o papel, com mão “de pilão”, e o resultado era um rombo na folha, imortalizando a memória daquele adversário meu que era a gota de tinta. Um fracasso!
Uma gota de tinta na água
Naquele tempo escrevia-se, em geral, com caneta de pena de aço e tinta de tinteiro. Em quase todas as escrivaninhas havia tinteiros de vidro, com tampa de galalite, um recipiente para depositar tinta vermelha e outro para a azul ou a preta, e na base duas concavidades: uma para colocar a borracha e os clips, e outra, comprida, para nela caberem os lápis.
Ora, já existia a novidade das canetas-tinteiro, entre as quais as melhores que chegaram ao Brasil eram de certa marca suíça chamada Mont Blanc. Essas, quando recebidas por algum menino no dia de seu aniversário, eram motivo de ostentação no Colégio São Luís.
Então, estando em casa, de vez em quando eu abria a bomba da minha Mont Blanc e fazia o mais modesto dos experimentos: servia-me da pena como colherzinha e pingava uma gota de tinta no copo de água para ver o que acontecia. Começava a observar como ela caía e me regalava, de cada vez, vendo-a penetrar na água.
Era curioso: ao invés de se diluir formando uma superfície azul clara, a gota de tinta se difundia horizontalmente e dela se desprendia uma série de outras gotinhas, que partiam à maneira de espirais, abriam seu caminho dentro da massa líquida, paravam e depois se desdobravam por sua vez, formando outras menores, em geral três ou quatro. Essas gotinhas, logo que constituídas, se dividiam em outras por meio de um processo análogo, até certa altura que era a mesma para todas as gotas, ligadas ordenadamente por fiozinhos de tinta e formando uma espécie de pequeno buquê, o qual chegava quase até o fundo do copo e se instalava como uma rede, sem se misturar com a água, a qual continuava transparente.
Eu tinha enorme gosto em contemplar aquela decomposição e ficava muito entretido. No fim da experiência, punha a caneta dentro do copo, revirava tudo, chamava uma criada e dizia:
– Jogue fora essa água, que não está boa.
Depois ia correndo para a copa, enchia outro copo com água e repetia a experiência. Era capaz de passar quarenta e cinco minutos ou uma hora brincando desse modo!
Em outras ocasiões, quando ouvia os passos de Dª Lucilia, eu jogava fora o conteúdo do copo, às vezes pela janela, e ela acreditava com candura que eu tinha bebido um pouco de água. Às vezes, pelo contrário, ela entrava na sala para me dizer uma palavra e via aquela água com tinta, mas nunca me perguntou por que havia feito aquilo. Eu também não lhe explicava, mas ela notava que a minha ação possuía algum sentido, e por isso não intervinha.
Meu pai, por sua vez, quando entrava no escritório e via o que eu estava fazendo, dava um suspiro à maneira de um lamento, pela atitude do rebento dele…
Entretanto, eu não compreendia a razão pela qual me parecia tão magnífico esse fenômeno da tinta. Tinha vontade de explicar aquilo para mim mesmo, mas não conseguia e, então, vinha-me vagamente a seguinte ideia: “Eu conheço algo que se passa de modo semelhante a isso, mas não percebo o que é. Esse processo deve ter grande valor simbólico e um dia me servirá de metáfora! Vou me pôr a pensar, para descobri-lo!”
Os diversos significados da gota de tinta: a hierarquia…
Anos mais tarde, cheguei a explicitar a razão do bem-estar interior que me causava o fenômeno da tinta na água.
Eu me deliciava em ver algo que representava muito bem certos aspectos da ordem do universo. Por exemplo, a beleza da hierarquia: uma autoridade suprema ou régia concede algo de si, e quem recebeu isso do alto o distribui por sua vez. Desse modo as elites destilam para os menores realidades magníficas e bondades consecutivas, que se propagam como as gotas de tinta.
Os princípios e as consequências…
Também entendi que o mesmo processo se dá no pensamento: todo princípio tem consequências, das quais brotam outros princípios, que geram por sua vez novas consequências. Assim, de uma primeira noção geral nascem ideias particulares, e pode-se chegar desse modo aos conceitos mais ínfimos.
As virtudes do inocente…
Por outro lado, compreendi que o elemento mais inspirador da inocência batismal é uma noção intuitiva e primeira – com caráter absolutamente religioso – do ponto mais alto do bem. É a virtude suprema, que o inocente ama mais do que as virtudes inferiores, e a partir de cuja consideração ele forma o reino da ordem, de modo hierárquico e piramidal, por dedução, por observação e por experiência. Assim, tudo aquilo que é involucrado e contido pela ordem tem como rei esse elemento primeiro, do qual o resto são desdobramentos magníficos.
Então, era essa virtude primeira que eu observava, sem sabê-lo, na primeira gota de tinta. O desdobramento dos pingos menores a partir dela era uma representação da relação hierárquica entre as demais virtudes e do sistema pelo qual se expandem os princípios da ordem.
E certos fenômenos ocorridos na Revolução Francesa
Também cheguei a descobrir outro significado da gota de tinta, quando comecei a estudar os fenômenos de opinião pública ocorridos durante a Revolução Francesa.
Num ambiente não revolucionário, a primeira penetração da Revolução faz-se à maneira da gota grande: forma-se um núcleo grande que penetra a água e se mantém intacto. A partir desse momento a batalha da água contra a tinta está perdida, pois, sendo a tinta mais pesada, a força de gravidade vai atraindo parcelas de tinta para dentro da água, à maneira desses “tubinhos” que eu via. E assim, aos poucos, faz-se uma rede de tinta que vai varando toda a água, sem misturar-se com ela. Feita essa distribuição das gotinhas, basta uma pequena sacudida para que a tinta, presente em todo o copo, se misture com a massa aquática. A tinta conquistou a água.
Ora, esses fenômenos de opinião pública foram assim: das “gotas” ou núcleos, se desprenderam algumas “gotas menores”, ou seja, outras concentrações de indivíduos com a mesma mentalidade revolucionária. Mais adiante, eles se espalharam e constituíram uma corrente de pessoas, pensando como a Revolução,
que se intercomunicavam, tramavam e conspiravam, sem se misturarem com as demais. E, não se mostrando especialmente combativas, adquiriram a confiança de muitos, procurando os preguiçosos, os ambiciosos e os interesseiros, e a esses dando o grau de otimismo, de esperança ou de abatimento que convinha. Quando, em determinado momento, foi lançado um projeto de lei que sacudiu o “copo de água”, eles estavam misturados na “água” inteira!
A alegria do dever cumprido
É verdade que nesse entretenimento da gota de tinta na água eu perdia boa parte do tempo que deveria consagrar ao meu preparo para os exames. Certo dia, porém, me veio ao espírito a seguinte ideia: “É incrível como eu posso achar agradável ver um inseto passear ou uma gota de tinta se difundir num copo de água!” E logo depois disse para mim mesmo: “É bem verdade! Isso é agradável no momento em que deveria estudar para um exame, sobretudo de Física, Química, História Natural e Matemática! Pois em outras ocasiões você não olha para a gota nem para a mosca, nem sequer joga tinta na água. Então, o que você está achando agradável é distrair-se e fugir do seu dever!”
E continuei pensando: “Então, diante do estudo tenho dois caminhos: ou lançar-me nele e passar no exame, ou permanecer nesta moleza, prevendo com tristeza a reprovação que vou ter. O que me dá mais alegria, no fundo? Pular sobre o estudo, passar no exame e começar as férias na alegria da obrigação cumprida, da tarefa dura encerrada e do fim alcançado? Ou, pelo contrário, entrar nas férias com uma ‘bomba’ sobre mim, gastando esses dias agradáveis na tristeza do meu próprio fracasso? O prazer está em saltar sobre o dever, sem pensar na mosca ou no copo de água. Ponha-os de lado, faça um bom exame e saia livre!”
Nesse dia acabaram-se as experiências com as moscas e os copos de água. Assim, passei a sentir melhor as ásperas e suculentas delícias da aplicação e do esforço. E percebi que a sensação de liberdade me vinha a partir do momento em que o estudo começava a se tornar em mim uma segunda natureza. Que agradável era esse contraste da alegria com o sofrimento!
E dizia: “Mas, isto é ar fresco! O que fazia eu naquela distração, vendo minha água com tinta e minha mosca? Estava enganado! Há algo de rude no dever que eu me imponho, mas ele me traz prazer! Plinio, Plinio! Isto não poderia ser transposto para outros terrenos? Se você quiser acertar na vida, não são esses os prazeres que você deve procurar? Sofrerá muito! As pessoas vão dizer que você é um sofredor, e terão razão, mas, no fundo, os sofredores são eles, pois você sofre e tem alegria, enquanto eles não têm alegria e sofrem. Então, para obter bom resultado, tem de fazer isso com toda honestidade, e pensar: ‘se eu brincar apenas cinco minutinhos com uma mosca, perderei a tarde!’”
A “morte” dos soldadinhos de chumbo
Também, nessa minha transição de menino para moço, durante o meu estudo às vezes eu tinha tentações de brincar com os meus soldadinhos de chumbo, como o havia feito na infância.
Entretanto, notava bem que eles me colocavam numa alternativa: se eu permanecesse no mundo dos soldadinhos, teria preguiça de estudar e me tornaria um bobo pelo resto da vida, mas, pelo contrário, se os deixasse, eles passariam a ser para mim como um modelo ideal e um padrão, cujo valor metafísico seria transposto depois para a idade madura.
Então, entendi que o brinquedo devia acabar e tranquei os soldadinhos de chumbo. Não me lembro sequer da última parada que fiz, nem qual foi a data em que eles ficaram longe e “morreram” para mim.
1 O ano de 1924.
2 O Autor se refere à perseguição de que foi objeto da parte de muitos colegas, nos primeiros anos em que estudou no Colégio São Luís. Cf. Volume II, p. 435 ss. e Volume III, pp. 101-104 desta coleção.
3 A Congregação Mariana Nossa Senhora do Bom Conselho, da qual Plinio fizera parte nos anos de 1921 e 1922. Cf. Volume III desta coleção, pp. 222-224.
4 O Pe. Luís Roumanie, SJ, havia sido diretor da Congregação Mariana entre os anos 1920 e 1922. Possivelmente, no ano de 1924 ainda exercia algum cargo nessa congregação.
5 Plinio foi eleito Consultor da Congregação Mariana em abril de 1924.
6 Em latim: previamente, antes da verificação.
7 Isaac Newton (1642-1727), matemático e astrônomo inglês, descobriu a lei da gravitação universal e lançou os fundamentos da Física moderna.
8 O Autor se refere à influência revolucionária que a sociedade da época exercia sobre os meninos, através dos seus maiores. Cf. Volume II desta coleção, p. 521-522.
9 Capacidade ou agilidade mental para compreender.
10 Quarto de crianças.
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