As profundas transformações dos anos 30 – 3
As profundas transformações dos anos 30
Dona Lucilia teria ocasião de presenciar, no decorrer da década de 30, muitas transformações sociais que levariam o Brasil a abandonar as belas tradições admiradas por ela em sua infância e juventude. Se o próprio Georges Clemenceau, esquerdista declarado, voltasse ao nosso País no transcurso daqueles anos, talvez não se sentisse tão em casa quanto em 1910…
Os esplendores, os requintes e os modos de ser reinantes no tempo da República Velha foram sendo substituídos pelo american way of life e pela socialização igualitária e populista que caracterizou a ditadura Vargas.
O advento do Estado Novo não constituíra uma simples mudança de governo, mas fora um marco divisor na História do País, pois as classes dirigentes tradicionais perderam boa parte de sua influência e poder, tanto político quanto econômico. Foram elas relegadas rapidamente a um segundo plano, passando o tonus geral da sociedade a ser dado por outro elemento – o nouveau riche1 – cujo enriquecimento da noite para o dia, ocasionado pela industrialização induzida, o alçou aos galarins da notoriedade.
Ouro e prestígio se tornaram sinônimos. Arriscar grandes somas, fazer grandes negócios, auferir grandes lucros – não para ter uma vida cômoda e sossegada, mas para poder fazer mais negócios e ganhar mais dinheiro – foram, a partir de então, os objetivos do homem deste triste século XX, desde o magnata até o mais ínfimo negociante.
O desejo intemperante de fruir o instante presente, como quem degusta até o último e mais pequenino pedaço de uma deliciosa fruta, para logo a seguir apanhar outra, e outra, e mais outra, fez as pessoas se voltarem exclusivamente para os bens materiais e passageiros, diminuindo em si a capacidade de amar e cultivar os bens sobrenaturais e eternos, nos quais reside a verdadeira felicidade da alma.
Até o ritmo da vida se alterou!
O espírito familiar, que impregnava a fundo o vínculo entre patrões e operários, de forma mais acentuada nos meios rurais, feneceu. E a luta de classes, insuflada por uma legislação trabalhista socializante, foi tomando paulatinamente seu lugar.
Que diferença daqueles saudosos tempos de outrora, em que o afeto e a bondade eram a nota dominante no relacionamento entre os homens e entre as classes sociais!
Rapidamente desapareceu o Brasil da tranqüilidade, todo ele imbuído da atmosfera da vida de família e do suave aroma da civilização cristã. A virtude da caridade, que, regendo o convívio social, fez da bondade a característica mais saliente do temperamento brasileiro, foi-se apagando nos corações.
Mas Dona Lucilia, apesar de todas essas mudanças, acrescentou à tenaz e serena resistência que opunha ao espírito de Hollywood, uma fidelidade inquebrantável ao estilo de vida tradicional, bem como uma religiosidade e elevação crescentes. A classe social a que pertencia foi a mais lesada pelas transformações da época. Pouco antes, a agricultura fora golpeada pela insólita irrupção do stephanoderes coffeæ2. Agora, uma superprodução cafeeira e a trágica queima dos excedentes do produto, cujos clarões abrasaram durante certo tempo os céus paulistanos, a partir do outono de 1929 (Crise do café) – tudo enfim conspirou para que a lavoura fosse decaindo para um segundo plano, enquanto a indústria passava cada vez mais para o primeiro. (v. II, pp. 133-135)
A convocação da Constituinte e a fundação da LEC
Era de prever que em toda a sociedade houvesse espasmos de insatisfação, como de fato ocorreu. O mais notável deles, o levante paulista de 32 – referido no capítulo anterior – embora derrotado militarmente, acabou por atingir um de seus fins. Com efeito, foi ele o fator decisivo que levou o governo a convocar uma Assembléia Nacional Constituinte.
Nesse contexto, a modelar formação que Dona Lucilia dera a Dr. Plinio iria começar a surtir seus efeitos benfazejos na vida pública paulista. E, não muito depois, em âmbito nacional. Como líder católico, chegava o momento, para ele, de se pôr a campo a fim de servir em toda a medida do possível a seu país.
Com a convocação da Constituinte, Dr. Plinio viu abrir-se uma boa oportunidade para desenvolver sua ação em favor dos direitos da Igreja, que o laicismo caduco e anticlerical do século XIX lesara gravemente, prejudicando com isso a própria Nação brasileira. O jovem congregado mariano foi então um dos mais ativos propugnadores, junto ao Episcopado nacional, da fundação da Liga Eleitoral Católica (LEC), inspirada numa instituição semelhante existente na França3. Seu modo de atuação consistia em inquirir os candidatos dos vários partidos políticos sobre o que tencionavam fazer durante o exercício de seu mandato, a respeito das principais matérias de interesse da Igreja Católica. Conforme as propostas, eram eles recomendados ou não ao voto católico. Como se vê, a indicação desses candidatos obedecia ao mais alto idealismo, e se abstinha da tomada de qualquer atitude político-partidária. A Junta Nacional da Liga Eleitoral Católica, mediante prévia aprovação do Episcopado brasileiro, publicou o elenco das Reivindicações Mínimas da opinião católica4.
Era Arcebispo de São Paulo D. Duarte Leopoldo e Silva, prelado imponente, destemido e altamente cônscio de suas responsabilidades morais no desempenho do múnus sagrado que lhe conferira a Igreja. Tomou ele como seu braço direito a Dr. Plinio para a fundação e organização da LEC do Estado de São Paulo. Assim, em novembro de 1932 foi instalada sua Junta Estadual, tendo o Arcebispo escolhido para presidente o Dr. Estevão de Souza Rezende. Os demais membros do órgão eram o Dr. Vicente Melillo5, o Dr. Mário Egídio de Souza Aranha, o Prof. Papaterra Limonge e o Dr. Adolpho G. Borba. Para secretário-geral fora escolhido o próprio Dr. Plinio. Este cargo era como que a alavanca rectrix da Junta Estadual. (v. II, pp. 135-137)
A eleição de Dr. Plinio
O ano de 1933 se abriu na expectativa da Constituinte, que fixaria os rumos do Brasil novo. A 3 de maio realizaram-se as eleições para a escolha dos futuros parlamentares. Muitos dos nomes indicados pela LEC, em numerosos estados, ascenderam à Magna Assembléia.
Um sucesso inesperado encheu de gáudio o eleitorado católico: Plinio Corrêa de Oliveira, de 24 anos, o mais jovem dos candidatos, surpreendeu seus partidários mais otimistas ao se tornar o mais votado em todo o País, obtendo o dobro de sufrágios do segundo colocado, apesar de ser este um homem célebre e experimentado nas lides políticas.
A espetacular eleição de Dr. Plinio representava um triunfo do Movimento Católico, dado ter ele feito propaganda apenas nas paróquias ou entre as associações religiosas, e apresentado como programa a defesa dos princípios da Igreja.
Causara a Dona Lucilia especial apreensão o fato de ver seu filho candidatar-se ainda muito jovem, e sem eleitorado fixo, ao contrário dos políticos mais antigos. Sob esse aspecto, ele estava em franca desvantagem face a seus opositores. […]
Mas, o espantoso resultado da eleição revelou ser a força da opinião pública católica muito maior do que as aparências deixavam notar, dando a Dona Lucilia redobrada alegria, sobretudo por se tratar de uma vitória da Igreja. (v. II, p. 140)
No Rio, para a inauguração da Constituinte
Em 13 de novembro de 1933, Dona Lucilia, Dr. João Paulo e Dona Rosée acompanharam Dr. Plinio ao Rio de Janeiro, para assistir à abertura da Constituinte. […]
Ao chegarem à Capital Federal, hospedaram-se no Hotel Glória, já então um dos melhores da cidade, situado nas imediações da Praia do Flamengo, com vista para o mais belo trecho da Baía de Guanabara, panorama exuberante que sempre extasiara Dona Lucilia.
Considerada a importância da Assembléia Constituinte naquela quadra histórica, sua inauguração, a 15 de novembro, revestiu-se de grande solenidade. Tropas do Exército, perfiladas diante do Palácio Tiradentes, onde se realizaria a cerimônia, prestavam honras militares a cada autoridade que ia chegando. O palácio, então sede da Câmara Federal, estava decorado com artísticos arranjos de flores, os quais combinavam com sua reluzente boiserie6.
A presidência da Mesa era ocupada por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, deputado por Minas Gerais, descendente do Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, o que não deixava de ter certo simbolismo. À sua direita, no plenário, tomava assento a bancada paulista, cujo aspecto tradicional era realçado pelos trajes de seus componentes, os únicos parlamentares a comparecerem de fraque e cartola. Tribunas especiais estavam reservadas para membros do Corpo Diplomático, ministros de Estado, bem como autoridades diversas, familiares de deputados e outros convidados.
Fachos de luz dos potentes projetores utilizados pelos cinegrafistas percorriam o ambiente, focalizando uma ou outra cena de maior significado, dando também seu contributo para abrilhantar o ato e salientar sua importância, pois recordavam continuamente aos presentes que estavam sendo alvo da atenção de todo o País.
Após ter acomodado os seus numa tribuna, Dr. Plinio se dirigiu ao próprio lugar no plenário. Porém, antes de tomar assento, voltou os olhos para onde havia deixado Dona Lucilia, a fim de ter a certeza de estar ela bem instalada.
Não conseguindo localizá-la num primeiro relance, adiantou-se um pouco mais, corredor central adentro, procurando-a detidamente. Do alto da tribuna, percebendo a intenção e a dificuldade de seu filho, Dona Lucilia lhe acenou discretamente com um lencinho. Vendo-a, então, Dr. Plinio lhe retribuiu com ênfase o cumprimento e, tranqüilizado, retornou a seu lugar.
O protocolo seguido parecia ser o de costume observado para o comparecimento do Chefe de Estado a alguma das casas do Poder Legislativo. O Presidente, de fraque e cartola, vinha acompanhado de elementos da Casa Civil e da Casa Militar. Estavam presentes todos os ministros de Estado e altas patentes das Forças Armadas.
Entoado o Hino Nacional, cada uma das personalidade ocupou o lugar indicado pelo cerimonial e deu-se início à sessão.
Do ponto de vista político, o aspecto imponente da Assembléia não ocultava uma profunda divisão que nela havia. A decidida maioria dos constituintes era formada por getulistas declarados. Não estavam nessa posição os deputados da Chapa Única por São Paulo Unido, à qual pertencia Dr. Plinio, porque seus eleitores eram os paulistas que tinham apoiado a Revolução de 32. Recusavam o sistema getulista e estavam resolvidos a votar contra ele na Constituinte. (v. II, pp. 143-144)
1) Novo-rico.
2) Praga dos cafezais africanos que inopinada e estranhamente veio contaminar as plantações brasileiras.
3) Fédération Nationale Catholique, planejada e proposta pelo General Marquês de Castelnau, um dos principais chefes militares da França no decurso da Primeira Guerra Mundial.
4) O fito da LEC era conseguir a inserção, na futura Constituição Federal, do reconhecimento de alguns direitos essenciais da Igreja e dos católicos, que o positivismo laico e republicano fizera abolir em 1889. Esses direitos eram: ensino religioso nas escolas públicas; capelanias católicas nas Forças Armadas, nas prisões, nos hospitais públicos e em todos os outros estabelecimentos do Estado; proibição do divórcio; atribuição de efeitos civis ao casamento religioso. Graças aos esforços desenvolvidos por Dr. Plinio, essas Reivindicações Mínimas foram aprovadas depois pela Assembléia Nacional Constituinte.
5) Anos depois, tendo enviuvado, o Dr. Vicente Melillo, que possuía sérios estudos teológicos, aceitou o convite do Cardeal-Arcebispo de São Paulo, D. Agnelo Rossi, para abraçar o sacerdócio. Foi ordenado por D. Aniger, Bispo de Piracicaba.
6) (N. do E.) Decoração de madeira com que se reveste as paredes.
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