Viagem à Europa e operação de Da. Lucilia
Posso afirmar que tive a felicidade de nascer de uma senhora muito doente. Isso parece um paradoxo, pois uma pessoa nessas condições é considerada normalmente o horror da casa, a esposa-trambolho que dá enorme trabalho, causa grandes despesas e não ajuda em nada.
Por causa disso, ela sofria muito. No seio de uma família onde todo mundo era saudável e feliz, poder-se-ia dizer que ela fazia o papel de uma mancha de cor azul profundo, ou lilás, sobre uma superfície branca. O branco seriam os felizes da família; o azul seria ela…
Embarcando no Hohenstaufen
Recordo-me do embarque no Hohenstaufen – um navio de grande estilo, mas não de primeira classe – que se deu em condições trágicas. Essa viagem foi para minha mãe um sofrimento terrível, que a enfraqueceu enormemente. Lembro-me de meu pai e meu tio Nestor transportando-a para dentro do navio, deitada numa padiola e contorcendo-se de dor. Eu entrei depois.
Desde a primeiríssima infância eu tinha uma enorme união de alma com ela e tudo quanto lhe concernia me emocionava profundamente. Não fazendo idéia do que podia ser uma pessoa enferma, fiquei sumamente atingido ao perceber seu sofrimento e pensei: “Então ela está doente assim!? Como é isso?”. Mas logo depois, com as distrações da travessia, essa impressão passou.
“O tubarão vai entrar!”
Naturalmente, minha irmã e eu, com os primos que estavam a bordo, brincávamos e passeávamos de um lado para outro. E a fim de evitar qualquer imprudência nossa, explicaram-nos então que o navio era perigoso e devíamos tomar cuidado para não cair do tombadilho, pois no mar havia peixes que comiam as pessoas. Falaram também do tubarão, que devorava especialmente as crianças…
Eu imaginava que o mar estava formigando de tubarões e fiquei realmente preocupado.
Na manhã seguinte ao embarque, minha governanta levou-me para o banho, pois mamãe não podia cuidar de mim. Era ela uma alemã corpulenta, muito branca e loura, mas de cabelo escasso, chamada Fräulein Mina.
Ela começou a lavar-me e eu deixei-a fazê-lo sem oposição. Em certo momento percebi que ela suspendia o tampão da banheira para esvaziá-la. Tive então muito medo, pois pensei que a água era a mesma do mar, e disse:
– A senhora está louca?! Tome cuidado! O tubarão vai entrar por aí e nos pegar!
Ela não deu satisfação, pois era uma Fräulein enérgica, e para me acudir tirou-me da banheira. Julgando estar fora do alcance do tubarão, me senti tranqüilizado.
Um caixão de defunto
Durante a viagem minha mãe sentia-se muito mal, permanecendo deitada durante toda a travessia, muitas vezes gemendo. Entretanto, a cada instante, minha irmã e eu entrávamos em seu quarto para cumprimentá-la e falar com ela. Sempre éramos recebidos com toda bondade, como se ela não sofresse nada e não tivesse outra ocupação na vida além de nos agradar. Atendia-nos, perguntava-nos se queríamos alguma coisa e, depois que saíamos, voltava a gemer.
Posteriormente, eu soube que ela estava tão indisposta e sofria tantas dores na vesícula, devido ao grande número de pedras, que ficava em pé na cama e às vezes agarrava-se aos enfeites do lambri, percorrendo assim a cabine de um lado ao outro para poder agüentar as crises, tal era sua aflição! Padeceu terrivelmente e esteve às portas da morte, mas sempre com essa atitude de bondade e de resignação.
O comandante do Hohenstaufen, previdente como se é na Alemanha, mandou fabricar um caixão de defunto na carpintaria de bordo.
Tudo já estava muito bem organizado: se ela falecesse iriam preparar um esquife com flores – era o que se fazia naquele tempo, com as pessoas que morriam numa travessia – parariam o navio, se houvesse padre a bordo este diria algumas palavras, os corneteiros da banda dariam um toque e o caixão seria lançado ao mar.
Entretanto, meu tio Gabriel, irmão dela, homem muito distinto e autoritário, viu aqueles carpinteiros trabalhando e perguntou:
– O que vocês estão fazendo?
– Um caixão. – Mas, para quem?
– Para uma senhora brasileira que está muito doente e certamente morrerá hoje. Então o caixão já está pronto para jogá-la no mar.
– Qual é a senhora brasileira?
– Frau [Sra.] Oliveira.
Meu tio ficou indignado e exigiu:
– Vocês vão jogar esse caixão vazio no mar agora!
Eles ficaram espantados… Meu tio disse:
– Já!
– Não podemos, pois estamos trabalhando por ordem do comandante.
– Não se trata de poder ou não poder! Eu tomo a responsabilidade e pago esse caixão, mas ele vai para a água!
Foi uma reação nervosa de meu tio… Essa idéia, de preparar o caixão para alguém que ainda não morreu, impressiona muito mal um brasileiro. Talvez ele imaginasse que isso atrairia influências nocivas que pairavam pelo ar e então ela morreria.
Jogaram o caixão no mar.
Paciência celestial
Esse meu tio, que viajava com toda sua família, tinha sete filhos, um dos quais, chamado Tito, era surdo de nascença e não muito equilibrado. Este era, como bem se pode imaginar, objeto de todas as complacências possíveis da parte de mamãe, razão pela qual ele tinha loucuras de encanto por ela. E, no meio de suas dores, ela recebia a visita desse menino que só tinha amizade com ela, acolhia-o e tratava-o com um afeto sem nome e uma paciência celestial. Ele percebia o sentido das conversas pelo movimento dos lábios das pessoas e, entendendo que mamãe estava em perigo de vida, exclamou:
– Titia vai morrer! Coitada, eu fico muito triste!
E enquanto mamãe se contorcia de dor, ele entrou no quarto dela, abraçou-a e disse chorando:
– Tia Lucilia, estão dizendo que a senhora vai morrer essa noite! Eu não quero que a senhora morra!
Com isso ela percebeu ainda mais qual era o estado de saúde em que se encontrava… E, além do sofrimento físico, tinha de suportar o desequilíbrio nervoso da criança. Com todo o afeto possível, ela acalmou o sobrinho e respondeu:
– Fique tranqüilo, meu filho. Não vou morrer.
Ouvi-la narrar esse fato era a coisa mais tocante que possa haver.
A limonada por excelência
A viagem transcorreu bem. Lembro-me de contemplar trechos enormes do oceano e, com a tendência culinária que sempre tive, recordo-me também de alguns sabores da comida a bordo do Hohenstaufen. Sobretudo uma limonada deliciosa, servida gelada no tombadilho quando passávamos pela linha do Equador, em meio a um calor tremendo. Sempre existiu a convicção de que as crianças devem comer muitas frutas e então me disseram: – Está aqui uma limonada e você tem de beber.
Pensei: “É melhor tomar isso do que brigar”.
Era uma limonada um pouco ácida. Ainda me lembro do copo, o qual me pareceu enorme. Bebi e, em certo momento, pensei: “Isto não é qualquer coisa… Esta bebida tem uma coerência toda especial comigo”. Acho que o copeiro não a havia mexido bem, pois o açúcar estava embaixo e o líquido em cima era mais transparente. Enquanto eu ia bebendo, o gosto ia se tornando cada vez melhor. Quando acabei, recordo-me de ter respirado fundo, refletindo: “Sim, senhor! Bebi uma coisa que deveria ter bebido!”.
Aliás, eu nunca fui muito apreciador dessa bebida, mas ao tomar aquela e compará-la com certa limonada inferior, “tirei o chapéu”! Eu não entendia a razão disso e não fazia nenhuma indagação sobre a qualidade do limão, mas apenas pensava: “Vejo neste navio um ‘pedaço’ da Europa na qual vou entrar. E já estou notando daqui que existe na Europa algo por onde todas as coisas são de melhor qualidade do que aquelas que conheço. Portanto, esta bebida obedece a um estilo e a uma escola de categoria superior. Limonada é isto! Ó limonada!”.
Entretanto, por trás dessa reflexão estava a idéia da limonadíssima, que aquela limonada do navio não havia atingido… E, sem saber ainda dizer o que estou explicando agora, minha idéia era a seguinte: “Existe, na ordem do espírito, um deleite da limonada e há, em outra esfera superior, uma limonadérrima que já não é mais limonada, nem tem limão. Mas se eu for afirmar isso para as pessoas adultas que me cercam, vão dizer que sou louco. Percebo que não sei exprimir bem o que estou pensando, mas quando ficar mais velho saberei fazê-lo!”.
Nos esplendores de Berlim
Desembarcamos em Hamburgo e tomamos o trem para Berlim. Chegando a essa cidade, mamãe foi diretamente ao hospital sofrendo uma dor contínua, mas com resignação admirável.
Aspectos de Hamburgo, onde desembarcaram
Impressionava-me muito algo que só depois soube definir bem: o brilho da Europa, em comparação com a “São Paulinho” daquele tempo. Pode-se dizer que o Velho Mundo estava em seu apogeu naquela época, pois o ápice do século XX foi, sem dúvida, o período entre 1900 e a declaração da Primeira Guerra Mundial.
Lembro-me do esplendor de Berlim. Quem a visita hoje não tem idéia do que era a Berlim imperial.
Era a cidade da ordem perfeita, do bom odor das flores, do aspecto eximiamente limpo e acolhedor das casas e dos interiores, com as confeitarias de prateleiras cheias de iguarias, expostas para um povo que despertava cheio de apetite e que, na primeira ocasião, ia deliciar-se com aquilo.
Os músicos começavam a tocar melodias nos restaurantes ou nos coretos públicos, enquanto todos iniciavam seus trabalhos. A música entra em tudo na vida alemã.
Não só o combate é orquestrado, mas também todas as formas de atividade em que a música não atrapalhe. É o povo musical por excelência.
Fui muito sensível às marchas militares e, quando as ouvia, minha alma era arrebatada por inteiro… Isso é assim até hoje e espero que seja até morrer. Sempre tive o maior apreço pela condição militar. Vivi uma existência inteiramente civil, mas pelo menos a metade do meu coração estava voltada para a idéia de uma vocação militar. E contemplar aquelas fanfarras, aqueles soldados marchando muito bem, os capacetes de aço com aquela ponta, tudo isso deixava-me encantado. Eu não entendia bem; sabia que eram soldados e que estes fazem a guerra, mas não conseguiria descrevê-los como o faço hoje.
Lembro-me de transitar pelas ruas de Berlim de automóvel ou de carruagem, cujo vagar permitia gozar mais dos panoramas. As ruas eram limpíssimas e asfaltadas; tinha-se a impressão de que o veículo da limpeza havia passado naquele momento! Tudo era muito bem disposto e arranjadíssimo. Estávamos no verão. Em todas as janelas viam-se gerânios e outras flores; existia até um concurso para escolher quem possuía os gerânios mais bonitos, sendo entregue um prêmio do governo, como incentivo para cultivá-los ainda melhor.
Era a vida alemã, na qual eu notava, com muito agrado, uma espécie de enorme força organizativa, presente em tudo. Eu via nisso um contraste e pensava: “Esta gente faz um esforço enorme e vive alegre. Vejo esses homens e essas mulheres que vão caminhando… Parecem todos soldados, mas estão contentes! Como é isso? O que há neles?”.
O Hotel Fürstenhof
O primeiro hotel de Berlim era o Kaiserhof [Corte do Imperador]. Nós fomos para o segundo, um grande e estupendo hotel de alto luxo, chamado Fürstenhof [Corte dos Príncipes], freqüentado por estadistas e homens de negócios. Não era um hotel simplesmente cômodo ou bonito, mas pomposo, com costumes dos mais esplendorosos e cerimoniosos, cuja recordação ainda conservo.
Os salões tinham um pé direito muito alto e as cortinas eram feitas de tecidos que a mim, como criança, pareciam ser de primeira ordem. Não eram propriamente bordados, mas representações de passarinhos e flores, com bonitas cores próprias a alegrar o hóspede que estivesse lá. Os quartos eram grandes, assim como as camas e os armários. Os tapetes, os lustres dourados, tudo falava de esplendor.
Fürstenhof
Eu era fundamentalmente anti-igualitário, por instinto, e contemplava todo aquele requinte – muito maior do que a largueza à qual estávamos habituados no Brasil, sem comparação! – com alegria e com delícias.
O quarto de papai tinha comunicação interna com o meu, no qual se hospedava também minha irmã. Eu me lembro do meu maravilhamento, quando vi pela primeira vez um window-box, no hotel de Berlim. Era uma espécie de terraço saliente coberto, com janelas e cortinas muito bonitas por onde penetrava a luz do sol. Fiquei encantado, pois sentia que aquilo correspondia a uma posição de alma. Julgo não haver criança que não tenha sonhado em morar numa mansarda, por haver nesses locais uma condição que simboliza certo desejo da alma de estar numa solidão benfazeja.
E pensei: “Por que não tenho um window-box, para entrar nele de vez em quando?”.
Eu me levantava bem cedo e via a luz que entrava pela janela, projetando dentro do quarto um reflexo da cor da cortina. Esse colorido me agradava inteiramente! Era de tonalidade framboesa fresquinha colhida no mato e se misturava com o dourado dos raios do sol, incidindo sobre os móveis e os bonitos lustres dos quartos.
Café da manhã berlinense
Eu ficava à espera do café da manhã, que era meu regalo: chocolate, chantilly, docinhos, potezinhos com geléias de várias frutas para passar no pão… uma coisa fantástica! Bom café, açúcar em forma de quadradinhos muito bonitos – feitos para se colocar na xícara e ali se dissolverem –, pãezinhos quentes e uma manteiga prodigiosa, de primeira ordem, que vinha em “tijolos”… Coisas pelas quais eu era apaixonado! O pão com manteiga é um alimento singelo, mas sempre teve a minha preferência, e na Alemanha fazem pão de sonhos. Tudo isso era servido nos quartos.
Em matéria de apetite, papai era digno de ser meu pai: enquanto lia o jornal, comia tudo! A Fräulein também consumia tudo o que lhe era destinado, como boa alemã de apetite vigoroso. Mas minha irmã nunca foi de muito comer e era mais parca. Eu a esperava terminar e entrava na parte dela… Depois, tinha a minha parte, que também comia inteira. Não dizia a ninguém, mas ficava com a sensação de não haver comido à vontade.
Entretanto, sabia que existia outra bandeja… Quando percebia que a Fräulein estava tomando banho, voava para o quarto de minha avó. Entrava ainda trajando pijama, e ia saudá-la com o “bom dia”. Ela me cumprimentava, e levantava-se havendo tomado uma parte insignificante do café – as senhoras brasileiras daquele tempo comiam pouco. Era o que eu aguardava… Ela mandava sua empregada particular colocar a bandeja de lado, enquanto lia os jornais no window-box. Eu me sentava numa cadeira, enorme para mim, e ficava conversando com ela, olhando-a. Ela não sabia o que eu estava planejando… Quando percebia que ela estava prestando atenção em tudo, menos em mim, eu comia aceleradamente, às escondidas, tudo o que ela não havia comido.
Em outras ocasiões, ela saía do hotel mais cedo do que nós, para ver minha mãe no hospital; então, eu esperava que ela se retirasse e ia correndo para a bandeja… A governanta e minha irmã não percebiam, mas todas as bandejas voltavam vazias para a cozinha, havendo eu comido os pãezinhos, a geléia e sobretudo a manteiga! Não era roubo, pois aquilo tudo era pago por minha família e, portanto, eu tinha o direito de comer. Mais ou menos satisfeito, me retirava; vestiam-me e preparavam-me para sair. Engordei em Berlim, pois meu apetite já começava a se afirmar devorador. E as comedorias da Alemanha me deixaram uma recordação insaciável…
Visitando mamãe no hospital
O hospital onde fora internada minha mãe me dava uma impressão de limpeza e de arranjo que me causava surpresa, pois nunca tinha visto nada assim.
Na primeira fase antes da operação, eu ia ver mamãe em seu quarto. Encontrava-a deitada de costas, muito tranqüila. Para estar mais à vontade, ela soltava inteiramente seus cabelos pretos – usou-os compridos a vida inteira – e estes caíam por trás do travesseiro, formando uma verdadeira cortina. Olhando para o teto meio distraída, com os braços ao longo do corpo, parecia mais uma estátua do que uma pessoa.
Não sei se era por ordem médica, mas nunca a vi deitada de lado. Sempre de costas e numa posição hierática. Para mim ela era muito grande – eu tinha três anos! – e aquela figura dava-me a idéia de uma enorme estabilidade e continuidade diante do risco que viria. Ela permanecia serena, firme e suave, como quem diz: “Tem de ser e será; Deus proverá”. A decisão dela me impressionava. Eu possuía um feitio de espírito por onde compreendia algumas coisas prematuramente para minha idade e, sem conhecer a palavra “firmeza”, percebia que a operação não iria mudá-la em nada: ela caminharia para a frente em linha reta!
E mamãe conservava uma disposição de alma suficiente para, aparecendo os filhos, poder agradá-los quase como se fosse a noite de Natal. Eu tive a mesma impressão que ela me deu, depois, durante toda a sua vida. Senti o mesmo carinho e afeto de sempre, mas com um fundo de gravidade e tristeza. Sem saber explicitar e sem entender bem o que era a morte, aquilo dava-me a idéia de uma separação trágica que poderia sobrevir.
Encantos com a pompa e a solenidade
Lembro-me da sala de jantar das crianças. Ali havia inúmeros meninos e meninas, todos almoçando e jantando com as respectivas governantas, e podendo ver uma espécie de colunata por onde entravam e saíam pessoas da sala de jantar dos adultos. Essa era enorme, pomposa e sem portas para a rua, a fim de evitar que qualquer um procurasse entrar no hotel, onde o acesso era muito selecionado. Nela as crianças não entravam, mas apenas as pessoas mais velhas, vestidas com trajes de grande gala.
Segundo o costume daquele tempo, vinham os casais, não formando bandos como hoje, mas cada homem dando o braço a uma senhora, fazendo pares. De maneira que as famílias se formavam no corredor como quem prepara um desfile: cada um dava o braço para aquela que estava combinado e depois entravam com ar magnífico. Conforme o caso, se iriam para o teatro depois do jantar, os homens trajavam smoking ou casaca e as damas vestido de cauda. Nós víamos tudo isso passar ao longe…
Éramos uma criançada numerosa, almoçando ou jantando com apetite feroz naquelas mesinhas. Ficávamos olhando e achávamos bonito ver entrar nossa família com aquela pompa. Quando eles
apareciam de longe já começávamos a fazer algazarra, como toda criança brasileira e eu contemplava quase sempre a minha avó — uma bonita e imponente senhora — no braço do filho. Depois, a
esposa desse meu tio, no braço de seu filho mais velho. Iam fazendo um cortejo… Aquilo me encantava!
Eles nos paralisavam com o olhar, como quem diz: “Aqui é Alemanha e não se faz algazarra. Quietos!” Nós ficávamos gelados mas, no dia seguinte, era a mesma coisa…
Havia uma porta de vitragem muito grande que se abria e eles entravam. Nós víamos então o fundo do salão e eles se sentavam em lugares reservados. Para nós era uma diversão de primeiro quilate! Aquilo me dava muito a idéia de um esplendor que no Brasil não havia. Depois chegava a comida para nós e esquecíamos deles…
Encanto com a pompa e a solenidade
O resto do dia se passava, geralmente, no Hotel Fürstenhof, sem que nós víssemos nada de especial, a não ser na hora das refeições.
Lembro-me da sala de jantar das crianças pequenas, onde havia inúmeros meninos e meninas tomando refeições com as respectivas governantas. Dali se podia ver uma espécie de colunata, por onde entravam e saíam pessoas da sala de jantar dos adultos. Esta era enorme, pomposa e sem portas para a rua. Ali as crianças não entravam, mas apenas as pessoas mais velhas, vestidas com trajes de grande gala.
Segundo o costume daquele tempo, os casais vinham de braço dado. De maneira que as famílias se formavam no corredor como quem prepara um desfile: cada um dava o braço ao seu par e depois entravam com ar magnífico. Conforme o caso, se fossem ao teatro depois do jantar, os homens trajavam smoking ou casaca e as damas vestido de cauda. E nós víamos tudo isso passar ao longe…
As crianças comiam com apetite feroz naquelas mesinhas. Ficávamos olhando e achávamos bonito ver entrar nossa família com aquela pompa. Quando eles apareciam de longe, já começávamos a fazer algazarra, como toda criança brasileira. Eu contemplava quase sempre minha avó – uma bonita e imponente senhora – de braço dado com seu filho. Depois, a esposa desse meu tio, com seu filho mais velho. Iam fazendo um cortejo… Aquilo me encantava!
Eles nos paralisavam com o olhar, como quem diz: “Aqui é Alemanha e não se faz algazarra. Quietos!”. Nós ficávamos “gelados” mas, no dia seguinte, sucedia a mesma coisa…
Havia uma porta de vidro muito grande a qual se abria para que eles entrassem, permitindo que víssemos, então, toda a sala. Para nós era uma diversão de primeiro quilate! Aquilo me dava a idéia de um esplendor que no Brasil não havia. Depois, era servida a refeição para as crianças e esquecíamos deles…
Grandeza, ordem e sublimidade
Guardei da Alemanha uma recordação de grandeza, de sublimidade e de ordem. Tudo ali era ordenado! As senhoras de Berlim usavam belos vestidos. Naquele tempo o traje feminino era muito mais belo, mais pundonoroso e mais casto do que é hoje. Tudo isso me dava a impressão de uma vida organizada segundo um modelo conforme à razão. Isso era assim, desde a roupa até a comida.
Os sorvetes, por exemplo, eram pirâmides monumentais, de coloridos diferentes: verde pistache, vermelho cereja… com frutas cristalizadas e, em cima, uma flor. A criançada os tomava com delícias facilmente imagináveis.
Essa visão grandiosa se acentuava com os museus, onde nos levavam apesar de sermos tão pequenos. Minha irmã e eu entendíamos um pouco de alemão e francês – línguas que depois chegamos a falar perfeitamente – mas meus primos só compreendiam o português.
Alguns da família, então, diziam:
– Para que levar as crianças a um lugar onde não podem entender o que o cicerone explica?
E os mais velhos respondiam:
– Deixe-os ir, pois alguma coisa fica.
Tinham razão! Era isso mesmo. Com esse caráter intuitivo que nós brasileiros temos, alguma coisa guardávamos. Eu ficava encantado, por exemplo, com aquelas armaduras medievais e vinha-me confusamente a seguinte idéia: “Os homens de hoje vestem-se com esses panos… Bonito é um homem vestido de ferro, com lança, elmo, plumas e espada à cintura!”. Mas não sabia explicar isso a ninguém.
Se mamãe estivesse conosco, eu teria falado à vontade, e ela acabaria ajudando-me a entender, procurando saber o que eu achava e depois acrescentando algo que me enriqueceria a mente. Desejando que seus filhos falassem um bom português, procurou dar-me um vocabulário rico e abundante. Por exemplo, se eu visse uma daquelas maças de guerra medievais, com pontas, seria capaz de dizer:
– Mamãe, olhe essa bola!
E ela diria:
– Meu filho, não é uma bola. Chama-se maça.
Na véspera da operação de Dona Lucilia
Toda a família sabia que mamãe poderia morrer.
Ela teve uma conversa com papai sobre vários assuntos, a qual correu muito bem, pois ele era um homem de boa paz, a toda prova. E chegou a tratar sobre a esposa que papai escolheria, no caso de ela morrer, porque desejava para ele um forte apoio, mas, sobretudo, esperava que Rosée e eu recebêssemos dessa “sucessora” um carinho semelhante ao dela, e assim tivéssemos a proteção que mamãe nos deu durante a vida inteira.
Ela era muito amiga de certa senhora de uma excelente família de São Paulo, cujo pai perdera a fortuna apostando em corridas de cavalos. Essa senhora, com o tempo, foi ficando feia e – não sei por quê – também um pouco amarela, mas mamãe a queria muito.
Mamãe disse-lhe:
– Bem, João Paulo, agora falta uma coisa.
– O que é?
– Se eu morrer, você vai se casar?
– Lucilia, vou mesmo casar-me.
– Mas você vai me garantir que escolherá a pessoa que eu lhe indicar?
– Quem é?
– Fulana.
Era a senhora amarela. Ele deu um salto na cadeira:
– Essa não e nunca!
Anos depois, ainda se brincava com mamãe em casa, a esse respeito, inclusive na presença de papai.
Uma dolorosa operação
Quando mamãe foi operada, seu sofrimento foi enorme, pois ainda não havia os anestésicos de hoje. Utilizava-se para isso o clorofórmio, que causava horríveis náuseas. Quiseram hipnotizá-la a fim de tentar diminuir as dores, as quais deviam ser realmente tão intensas que ela consentiu. Mas aconteceu que nenhum hipnotizador de Berlim conseguiu hipnotizá-la! Hoje percebo que ela não tinha a menor apetência de ser hipnotizada.
Ela às vezes me contava como eram alguns dos métodos usados. Um dos hipnotizadores fixava profundamente o seu olhar nos olhos dela para exercer a ação, enquanto ela também olhava de frente para ele. Entretanto, vendo que não obtinha resultados, tentou hipnotizá-la por meio de diamantes. Tirou de uma bolsinha um brilhante de bom tamanho, muito coruscante, limpou-o sobre a roupa para fazê-lo reluzir e perguntou:
– Não hipnotiza? Não hipnotiza?
Ela respondeu:
– Não!
Foi inútil! Apresentaram-lhe todas as formas de diamantes, mas ela dizia não sentir nada. Mostrou-se totalmente refratária a esse método… Quando me contaram esse fato, ficou-me no espírito esta idéia: a possibilidade de um “endeliciamento” inebriante para a pessoa que perde o domínio de si mesma e se “afunda”, hipnoticamente, num brilhante.
Ela passou por uma dolorosa cirurgia, muito bem feita pelo Dr. Bier.
Em dois dias apareceram mechas brancas em seus cabelos, pela ação da dor. Esse encanecimento precoce trouxe-lhe muito sofrimento, tanto mais que ela não tingia os cabelos, pois, na época, isso era tido como vaidade. E, mesmo quando todas as senhoras começaram a tingi-los, ela não o fez.
Certo dia, a cunhada dela que viajava conosco disse:
– Lucilia, você quer pentear-se?
– Quero.
– Você deseja olhar-se no espelho?
– Estou vendo para onde isso conduz: você quer mostrar-me que meu cabelo embranqueceu e está me preparando, não é?
– É isso, você está com trinta e seis anos e seus cabelos embranqueceram.
No período pós-operatório ela começou a tomar injeções que atenuavam a dor. Continuava a sofrer, mas com certo alívio, mantendo uma serenidade e uma calma completas, e uma confiança inteira no Sagrado Coração de Jesus e em Nossa Senhora. Por isso, nos piores transes da sua dor, ela tratava as pessoas muito bem, respondia a todas as perguntas e conservava um equilíbrio psicológico extraordinário, sendo um modelo para todos.
Uma sopa de miolos
Nos dias que se seguiram à operação, minha mãe só podia tomar líquidos; mas, aos poucos, o Dr. Bier foi recomendando-lhe comer alimentos sólidos. Certa vez, à hora do jantar, a enfermeira trouxe-lhe uma sopa, sem dizer-lhe do que se tratava. Mamãe perguntou-lhe com toda bondade e suavidade se por acaso era feita de miolos – alimento ao qual era extremamente alérgica –, e a resposta foi que o Dr. Bier havia dado ordem de servir aquilo. Tinha de comer, mas não podia saber o que era. Mamãe então lhe disse:
– Mas por que não posso saber?
– Não tenho obrigação de informar! E por que a senhora não pode comer miolos?
– Não posso, porque eles me causam uma repugnância invencível.
Mas a enfermeira fazia questão absoluta:
– Não tem importância! O Dr. Bier ordenou e a senhora vai comer, seja como for! Aqui, Frau Oliveira, o doente não tem vontade, mas só o diretor do hospital. E se a senhora não comer, vai causar-me complicações. Não me ponha dificuldades, pois qualquer problema pode fazer-me perder o emprego!
– Mas se forem miolos, posso ter náuseas. E se esses pontos se abrirem, vou ter de dizê-lo ao Dr. Bier quando ele vier.
– Não há problema!
– Está bem, vou comer, mas se rasgar o corte, a senhora será responsável pela minha morte.
– Pois não. Morrerá em nome da disciplina, mas tem de comer!
A irracionalidade do procedimento chocou-a. Por que não podia saber? Ela havia perguntado com tão bons modos para a enfermeira… Por que tinha de comer? Era uma mãe de família e não uma criança, portanto devia ser respeitada. A condição de mãe envolve elementos de realeza, como aliás a de pai também. Por mais modesta que seja a mãe – desde que o seja em toda a força do termo – participa em algo da dignidade de rainha, indiscutivelmente. E a realeza do rei e da rainha é indissociável da condição de pai e de mãe. Então mamãe pensava: “Por que essa enfermeira se impôs?”. Ficava-lhe a idéia de aquilo ser feito por dureza e vontade de mandar; e não estava longe da realidade…
Ela possuía o direito de recusar-se a obedecer, pois sabia perfeitamente o que lhe poderia acontecer. Entretanto, resignou-se inteiramente e tomou a sopa; mas o mal-estar físico fê-la perceber tratar-se realmente de miolos. Os pontos da cirurgia estiveram em risco de se abrirem, com grave perigo de vida para ela e, nessa noite, o médico de plantão daquele setor havia “saltado a janela” para ir a uma festa… De maneira que a enfermeira, apavorada, foi ao andar inferior chamar outro médico e esse, naturalmente, atendeu minha mãe. Após acalmar a situação, ela disse à enfermeira:
– Olhe, o enjôo produz o efeito que a senhora sabe: pode arrebentar a sutura da operação e o Dr. Bier vai perguntar o que aconteceu. Mas não se preocupe, ele não vai lhe culpar.
Mamãe teve cólicas durante a noite, tendo dormido muito mal. No dia seguinte chegou o Dr. Bier, que entrava como um general em seu quartel, andando com passos firmes. Tinha o costume de passar em revista os doentes todas as manhãs, de quarto em quarto, como se fossem soldados, acompanhado de uma escolta de funcionários tomando notas, para fazer as coisas andarem depressa. E deviam estar presentes os enfermeiros responsáveis por cada paciente, enfileirados, para responder às perguntas que ele quisesse fazer. Era a Alemanha kaiseriana…
Dr. Bier perguntou a mamãe como estava e ela teve de relatar a indisposição da véspera. Ele então se dirigiu à enfermeira:
– Qual foi a causa dessas cólicas? Explique!
A enfermeira estava lívida…
Uma outra doente teria dito imediatamente, muito zangada:
– Estou abandonada! Fui forçada a comer isso e o médico de plantão havia fugido. Que hospital é este?
Mamãe, entretanto, com toda calma, fez uma narração evitando tratar do caso dos miolos. Não era uma mentira, mas um arranjo para a responsável não ser castigada. O Dr. Bier, desconfiado, deu à enfermeira uma repreensão ao modo alemão, que mamãe achou excessiva… Então ele perguntou:
– Onde estava o médico assistente? Chamem-no aqui, pois ele tem de dar satisfação sobre o que houve. Isso não podia ter acontecido!
Foram chamar o assistente, que tentava esconder-se, e mamãe interveio dizendo:
– O médico esteve aqui e me atendeu.
Mas sem afirmar que se referia ao médico do andar inferior. Assim, o Dr. Bier não percebeu que ela estava inocentando o assistente, o qual, por trás daquele, juntava as mãos em atitude de súplica. Depois veio agradecer a bondade e a habilidade de mamãe, diante da grande incorreção dele. Esse homem ficou sempre muito grato, ao contrário da enfermeira que lhe havia colocado em risco a vida. Realmente, se tais faltas fossem denunciadas, ambos estariam ameaçados de terem suas carreiras prejudicadas e, talvez, seriam obrigados a transferirem-se para alguma das colônias alemãs na África.
Esse fato demonstra muita grandeza de alma. É até heróico! É difícil imaginar um ato de resignação e bondade mais extremo. Se havia alguém que podia fazer prevalecer seus direitos, era ela! Em primeiro lugar por tratar-se de sua vida; depois porque pagou para mandar fazer essa operação; e, por último, é preciso recordar que ela era a segunda pessoa no mundo a ser submetida a essa cirurgia e, portanto, devia ser tratada com todo cuidado e delicadeza. Mas a idéia do perdão e da compaixão preponderava muito nela e, por causa disso, não fez nada contra aqueles que lhe haviam causado um mal. Mamãe procedeu à maneira de Nossa Senhora com os pecadores: Ela tem preferência por certas pessoas que Deus afasta de Si pela justiça e encontra alguns títulos para recomendá-los, o que, no total, está de acordo com a ordem querida por Ele.
Episódios como esse foram inúmeros na vida de mamãe.
Uma senhora muito patriótica
Dr. Bier possuía uma personalidade muito agradável e, conversando em francês com minha mãe sobre questões da doença, acabou fazendo com ela certa amizade.
Apesar de ser um grande médico com muita clientela, deixava-se arrastar na prosa com ela. Mamãe, como boa brasileira, gostava também de conversar; então, levavam às vezes meia hora tratando sobre vários assuntos. E
m certa ocasião, houve até uma troca de recados entre minha mãe e o Kaiser, imperador da Alemanha.
De acordo com o costume das casas reais daquele tempo, Dr. Bier ia uma ou duas vezes por semana fazer uma visita ao Kaiser para verificar as condições de saúde dele. Naturalmente ganhava bem por isso, pois a responsabilidade era grande. Um dia, depois de examinar mamãe, ele lhe disse:
– Madame, eu trago à senhora os cumprimentos do Kaiser! Ele perguntou pela senhora brasileira que viera de tão longe para se tratar comigo.
– Ah, muito obrigada.
Em outro dia, eles conversaram sobre o tema do patriotismo, tendo ela se revelado muito patriótica. Então, o médico disse-lhe:
– Sim, Madame, o patriotismo é uma bonita virtude. Nós, os alemães, procuramos praticá-la de todos os modos, mas achamos que nossa expansão vai colocar dificuldades para muitos outros povos.
Ela julgou aquilo raro e perguntou:
– O que significa isso, Dr. Bier? Não entendo o que o senhor está dizendo.
Ele respondeu: – Muitos povos, como o seu, têm um território enorme e o aproveitam mal. Essas terras deveriam ser entregues aos alemães para governar. Venho agora do palácio do Kaiser. A senhora sabe do que estavam tratando, à mesa do conselho?
– Não.
– Quando entrei, os ministros falavam do Brasil.
– Ah, do Brasil? E do que eles tratavam?
– Algo muito interessante. Foi cogitada mais de uma vez, em conversas com o Kaiser, a possibilidade do desembarque de tropas alemãs no Brasil. Falava-se da idéia de estabelecer ali uma colônia alemã, como no sul da África. Eu vi também o Kaiser despachando e cuidando de uma ofensiva contra o Brasil. Já está tudo preparado! Se houver uma conflagração mundial, tomaremos a França e rumaremos para o Brasil a fim de fazer uma colônia vasta e bem organizada. Nós pensamos ocupar o Estado de Santa Catarina, pois é a única parte do Brasil que tem bom aproveitamento de terreno e já existem muitos alemães lá. Os ministros estavam exatamente estudando, no mapa, onde é bem esse Estado e quais seriam as condições de desembarque da marinha alemã para tomar conta dele.
Minha mãe ficou indignada e disse:
– Como!? Uma colônia? Não sabem que o Brasil é um país independente? Temos o nosso governo, não precisamos de uma colônia alemã no Brasil!
Ela continuou protestando, dizendo que aquilo seria um ato de violência, ao qual eles não tinham nenhum direito… Ele deu risada:
– Olhe, Madame, temos navios de guerra que vão aonde queremos. No dia em que desejarmos invadir Santa Catarina, nós o faremos. A senhora imagine os nossos exércitos descendo ali em ordem de batalha. Que reação poderia haver contra eles?
Ela respondeu:
– O senhor está enganado, pois o Brasil oferece muitas dificuldades! Os nossos matos são traiçoeiros. Nós temos multidões de índios que sobem às árvores altas, e quando os invasores passam eles atiram flechas com pontas envenenadas. É muito simples: eles vão atacar e matar todos os soldados alemães! Que o Kaiser pense ou faça o que entender, mas não se meta no Brasil, pois nós temos uma possibilidade de resistência à Alemanha que ninguém imagina! Até as mulheres sairão à rua para defender o Brasil! Elas mostrarão aos senhores qual é a defesa brasileira!
Coitada! Aquilo era um wishful thinking [pensamento cheio de desejos], pois nem existem tantos índios em Santa Catarina, nem o veneno das flechas poderia algo contra exércitos equipados com armas de fogo… Mas ela, apaixonada, naquela situação e apesar de doente, reagiu dessa maneira. Foi uma ingenuidade: a resposta de uma dama que não entendia do assunto, mas queria defender nossa independência.
O médico, então, disse-lhe:
– Vou tomar apontamentos e levá-los ao Kaiser, pois é um dado interessante.
Não sei se ele dizia a verdade, pois era muito brincalhão e talvez afirmou tudo isso para gracejar com ela. Entrava, sem dúvida, uma ponta de fanfarronada, mas ela tomou aquilo como algo muito sério e ficou indignada. Não compreendia como um grande médico que tinha salvo a vida dela, dizia a uma senhora doente coisas que só podiam irritá-la e fazer-lhe mal. Mas pelo modo de ela narrar posteriormente o fato, percebo que ficou preocupada por haver, talvez, revelado a ele o segredo de nossa defesa… Ela vibrava de patriotismo quando contava esse episódio.
No dia seguinte, ele voltou e, após examiná-la e ver que estava muito bem, disse:
– Madame, antes de me despedir da senhora, gostaria de lhe dizer que trago as melhores homenagens da parte do Kaiser!
– Homenagens do Kaiser?!
– Sim.
Minha mãe ficou desconfiada, como quem dissesse: “O senhor bem podia deixá-las de lado…”.
E perguntou:
– Por que o Kaiser me envia cumprimentos? Ele não me conhece! Eu não tenho o que fazer dessas homenagens. Não conheço o Kaiser; estou no país dele apenas para um tratamento de saúde.
Dr. Bier continuou:
– Contei ao Kaiser qual foi a sua reação diante da possibilidade de uma invasão alemã. Ele riu e ficou contente com sua resposta! Pediu-me para dizer à senhora que admira muito as damas patrióticas e, por isso, tem muita simpatia pela senhora. Então ele manda suas homenagens.
Minha mãe respondeu:
– Fique com elas, pois não quero os cumprimentos dele!
Quando mamãe se zangava, fazia-o de fato… Ele perguntou:
– Mas, Madame, por que a senhora está tão zangada?
– Porque o seu Kaiser está querendo fazer uma expedição para tomar conta do Brasil!
Ele viu que as coisas haviam ido longe demais e não tocou mais no assunto.
Porém, esse episódio mostra bem o quanto ela era uma brasileira fina e aristocrática, formada no Brasil, sem imitar nenhum país do exterior, de maneira a permitir-se tomar essa atitude em relação ao médico do Kaiser e ao próprio Kaiser. Eles tiveram de aceitar esse trato… A fidalguia e o tônus aristocrático de mamãe provinham, sobretudo, da Fé Católica, Apostólica e Romana.
A amizade de Dª Lucilia pelo Dr. Bier
Apesar de tudo, ela queria muito bem ao Dr. Bier e este até apresentou sua esposa a ela. Logo após terminar a Primeira Guerra Mundial, mamãe escreveu-lhe uma carta manifestando o desejo de que ele tivesse passado sem nenhum ferimento e perguntando se desejava alguma coisa. Enviou junto um saco contendo algo para ele distribuir aos necessitados. Um cunhado dela, que era médico, disse-lhe então:
– Você faz isso por bondade, mas o Bier nem se lembra de você.
– Ele se recorda sim, pois ficamos nos estimando muito, mas ainda que assim não fosse, eu me lembro dele e vou mandar.
Recordo-me da sua alegria quando, meses depois, o carteiro entregou em casa um envelope de certo tamanho com uma carta em francês, muito amável, agradecendo-lhe. Vinha dentro uma foto de Dr. Bier, depois da guerra: um velhinho bem disposto. E ele dizia: “Madame, eu hoje em dia sou um pobre surdo, pois durante a guerra disparou um canhão alemão perto de mim, com um estampido tão forte e uma detonação tão tremenda, que fiquei surdo dos dois ouvidos. Mas se a senhora quiser me fazer um favor, mande-me um pouco de café”.
O café era muito caro naquele tempo, mas ela não teve dúvida: mandou uma saca!
Conservaram até o fim da vida dele – era mais velho do que ela e morreu antes – um certo carteio. Deve-se notar que um médico tão famoso escrevia muito pouco, para escassas pessoas, mas tomou-se de uma verdadeira amizade por ela. Mamãe o tratava com todas as delicadezas possíveis; mas, afinal de contas, o Dr. Bier faleceu e a correspondência morreu também.
Um marido desapontado
Um dia, mamãe estava deitada, já um pouco melhor e, naturalmente, com os cabelos caindo por trás do travesseiro. E um dos médicos, bem mais moço do que ela, falando francês ou inglês, comentou:
– Madame, que encanto eu tenho em ver a longa cabeleira da senhora.
Ela estranhou um pouco e continuou conversando. Em certo momento ele perguntou:
– A senhora me permite um comentário?
– Sim.
– Mas, mesmo um comentário íntimo?
Ela via que era um homem muito direito e respondeu:
– Sim, pois não!
– Tenho simpatizado muito com a senhora e vou fazer-lhe uma confidência! Vou contar-lhe algo que aconteceu comigo. Sou muito infeliz e – quem sabe? – a senhora talvez poderia dar-me um conselho.
– Sim, de bom grado. O que há?
– A senhora não imagina! Estou casado há pouco tempo.
Casei-me com uma moça da qual eu gostava enormemente pelas suas qualidades, mas sobretudo pelos seus cabelos, magníficos e abundantes, assim como os da senhora. Era uma boa moça, pela qual eu tinha entusiasmo até um certo tempo depois de casados. Eu estava encantado com ela! Mas uma noite… eu estava dormindo e ouvi um barulho no quarto; acordei e percebi estar ela sentada na cama, com a luz acesa.
Pensei que estivesse indisposta e precisasse de ajuda, mas eis que a vejo sem um fio de cabelo na cabeça, completamente calva, tendo no colo uma peruca loura, a mais bonita possível! Aí dei-me conta: ela me havia enganado e a tal cabeleira que me encantava era postiça… Como estava em desordem, ela sentou-se na cama para arranjá-la. A senhora não imagina a decepção, o golpe medonho que recebi. Foi a minha tragédia! Depois disso, minha vida de casado não foi mais nada! E quero saber o que devo fazer agora.
– O senhor está casado; mas ela não devia ter se casado sem lhe dizer isso…
– Mas, o que eu admirava nela era o cabelo!
A partir da cabeleira, ele teve uma desilusão com ela, não tanto por haver sido enganado, mas por ver que a psicologia dela – que devia ser correspondente aos cabelos – não era como ele a imaginava. Havia, portanto, uma espécie de equívoco em seu casamento.
Há um provérbio francês muito real, que diz: “O homem sem critério casa-se com quem gosta; o homem criterioso gosta da mulher com quem se casou”. O primeiro vai atrás da fantasia, da imaginação do cônjuge ideal e faz uma bobagem. O segundo, não! Casa com uma pessoa razoável; depois se habitua, queira ou não queira. Ele acaba sendo bom marido e ela boa esposa. Esse é o casamento bem sucedido.
O primeiro encontro após a operação
Passei alguns dias sem estar com mamãe. Não posso me esquecer de que, no dia seguinte à operação, minha irmã e eu fomos visitá-la e encontramo-la no jardim interno do hospital. Lembro-me ainda desse parque, com carvalhos imensos de bonita folhagem, os quais me deixavam admirado. Não sei se na realidade eram tão grandes assim, mas, para minha ótica de criança, eram altíssimos. Estávamos na estação quente do ano, na qual os dias eram lindos. Em toda minha vida, essa é uma das mais belas recordações que guardo a respeito do reino vegetal.
Percebi, também, que o vento quase não soprava. Aqui, no Brasil, o vento é contínuo, mas, na Europa, não; as folhas permanecem paradas e a natureza mantém uma imobilidade difícil de se imaginar. Vendo aquelas árvores enormes tive, então, a sensação da “Alemanha vegetal”, do mundo berlinense das coisas limpas, bem-arranjadas e como devem ser.
Os raios do sol, entrando através da vegetação, iluminavam o jardim. Havia vários doentes no parque, deitados em suas macas. Ao pé de um desses carvalhos encontramos mamãe, respirando o ar puro e magnífico de Berlim. Estava sentada numa cadeira de rodas, cuja parte inferior era levantada para ela poder manter as pernas em posição horizontal, com inteiro conforto. Logo que entramos, ela se pôs a sorrir com expressão de uma felicidade interior inefável e nos chamou. Não era preciso tanto para ir correndo e beijá-la! Ela também nos beijou, com toda espécie de manifestação de carinho, e lhe fizemos muitos agrados.
Eu não tinha idéia do que ela havia sofrido. Sentia-me apenas como se tivesse passado três dias sem vê-la, mas fiquei impressionado por encontrá-la tão enfraquecida. Notei que nesse período os seus cabelos, muito pretos e bonitos, embranqueceram devido à aflição, ficando eu com a idéia de que ela passara por um “terremoto”, e perdera, sob o impacto da dor, aquela rijeza das vezes anteriores. Percebi que ela havia recebido um imenso trauma, ao qual sucedia a alegria de nos rever.
Tão contente mamãe estava com a visita dos seus filhos, que saímos com a impressão de que ela não estava mais sofrendo. Sua presença causou-nos muita alegria e bem-estar, o que era exatamente a intenção dela: evitar-nos a angústia e a aflição. E pensei: “Não há ninguém como ela. Como é bom estar ao seu lado!”.
As crianças são tão voltadas para as coisas concretas e recebem impressões tão díspares, que não posso deixar de me lembrar dos capachos do hospital que vi então: eram feitos de arames torcidos em espiral, formando um quadrado. E para fazer propaganda do local – como todo o mundo que vai limpar os pés olha para o capacho – estava escrito ali o nome do estabelecimento. Mas não podia ser pintado, pois, se deterioraria logo. Então o nome era composto com bolinhas de madeira colocadas dentro das voltas do arame, de cores muito vivas e alegres: vermelho-cereja, amarelo-ouro, verde-vegetação… Eu me extasiava com elas e com o jogo que aquilo fazia. Lembro-me de ter pensado assim: “Quanta alegria me dá isto! Mas que pena não poder pegar nessas bolinhas e brincar!”.
Nos outros dias fui visitar mamãe em seu quarto. Encontrei-a deitada na cama, com o aspecto de uma pessoa que tivesse sido triturada; mas ela recebeu-me ainda com mais carinho, mais sorriso, mais afeto e mais intimidade, como quem já estava vendo a vida do outro lado e começava a olhar o dia de amanhã.
Vendo-a falar e brincar comigo, eu percebia algo como uma luz que voltava a brilhar…
Uma nova fase de sofrimentos
A operação deixou-lhe uma seqüela devido à qual ela sentia tanta dor na planta dos pés que era obrigada a usar cadeira de rodas, e passou muito tempo apoiando-se nos outros para caminhar. Isso levou-a a fazer novos tratamentos e usar sapatos com palmilhas de metal, extremamente incômodos, que a cada passo lhe arrancavam gemidos. Permaneceu um pouco reumática pelo resto da vida, conservando sempre uma certa dificuldade de andar.
Eu a via sofrendo todos os dias, mas notava o seguinte: nunca estava desfalecida ou abatida, lamuriando-se ou com falta de vontade de viver. Pelo contrário, enfrentava a vida com a naturalidade de um pássaro que corta os ventos. Ela cortava os infortúnios com grande segurança, força e entrain [ânimo, ardor], mas sempre com uma bondade, uma ternura, uma gentileza e uma afabilidade que me encantavam.
Como me aproximava dela com apetência de equilíbrio, notava uma serenidade, uma distinção, uma calma e uma capacidade de atrair e tranqüilizar que, a meus olhos de filho, eram incomparáveis! Isso provinha de ela possuir grande confiança na Providência e, apesar de ter pouca coisa na vida, apreciar muito aquilo que recebia, tendo os olhos voltados para o Céu, onde esperava a recompensa pelo bem que ela houvesse feito.
Quando mamãe saiu do hospital, deixamos Berlim. Começava então outra impressão para mim, a seu respeito: o perigo estava afastado, mas uma vida duríssima se iniciava.
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