Prêmios e castigos
No Colégio São Luís, organizavam-se festas de distribuição de prêmios, no meio e no fim de cada ano. Então, fazia-se habitualmente uma outorga de medalhas para os alunos que mais se tinham destacado e haviam obtido excelentes resultados nas provas.
Para cada matéria, existiam três tipos de prêmios.
Medalhas e menções de honra
O melhor aluno recebia uma grande honraria: a medalha dourada. Logo depois, em segundo lugar, eram conferidas medalhas prateadas a três ou quatro meninos, por terem feito provas escritas ou orais verdadeiramente muito boas, sem chegarem a ser excelentes. Bem entendido, as medalhas não eram de ouro nem de prata, mas de latão com cores diferentes.
Aqueles que tinham estudado bem, ou haviam feito alguma prova acima do comum, indicando uma qualidade saliente de talento ou de esforço, mereciam o terceiro prêmio, o qual não era uma medalha, mas um impresso chamado “Menção Honrosa”, com o nome do aluno, como avaliação de sua probidade intelectual ou de sua aplicação.
Naturalmente, os pais apreciavam que seus filhos recebessem as medalhas, ou merecessem pelo menos a menção honrosa. E, quando isso não se dava, olhavam-nos com carranca e perguntavam-lhes:
– O que você fez?!
Solenidade e gravidade
A distribuição dos prêmios era feita pelos padres com muita solenidade, no pequeno teatro do Colégio São Luís. Era uma sessão brilhante, com música executada por uma orquestra, além de declamação e números de teatro feitos pelos alunos.
A essa cerimônia compareciam as famílias mais ilustres de São Paulo, as quais mandavam os seus filhos estudarem nesse estabelecimento, reputado o melhor da cidade. Vinha um representante do Arcebispo e era convidado também o Governador do Estado – naquele tempo chamado de Presidente –, o qual mandava alguém em seu nome, em geral um oficial bem graduado, trajando o uniforme da Polícia Militar, em estilo francês, muito bonito e com grande categoria. Estes ocupavam os primeiros lugares.
Atrás deles sentavam-se os homens importantes que estivessem lá, depois os pais e, por último, no fundo, numa enorme arquibancada, a multidão dos alunos. Era uma boa quantidade de pessoas enchendo o teatro.
Nesse dia, as famílias estavam vestidas com trajes de cerimônia e os meninos com as suas melhores roupas. Essa atmosfera de solenidade, numa simples outorga de prêmios, correspondia à seguinte ideia: tudo na existência tinha gravidade. O sucesso custava esforço, o esforço merecia prêmio e a carência dele merecia desprezo, pois a vida era uma batalha! Era importante o fato de que um aluno ganhasse um grande prêmio, assim como também o era a constatação de que ele não recebesse nenhum.
Apesar das suas dificuldades de saúde, mamãe quase sempre assistia à distribuição dos prêmios no colégio, para prestigiar a festa e fazer-me notar o valor que ela dava aos estudos, de modo que eu compreendesse o quanto tinha de me esforçar. Ela não me dizia isso, mas eu via bem qual era a sua intenção.
Recebendo as medalhas
À medida que chegavam, convidados e alunos permaneciam esperando em pé, numa espécie de grande galpão, no qual era servido algo para comer. Ali as famílias se encontravam e conversavam, à espera do momento de entrarem em fila para o teatro.
Então, quando todos haviam ocupado seus lugares, o Pe. Cerdá abria a sessão, com uma voz de cantor, muito cheia, sonora, possante e solene, e sem olhar diretamente para ninguém:
– Para a maior glória de Deus, para o incremento e o bem das letras, da cultura, das artes e da Civilização Cristã; para o estímulo da virtude e do esforço, vão ser proclamados aqui os nomes dos alunos do Colégio São Luís, em São Paulo, que se distinguiram neste ano por seu saber, sua inteligência, sua aplicação, seu aproveitamento e seu comportamento, e mereceram medalhas de ouro ou de prata!
Havia um frêmito na sala.
Então, ele declamava os nomes dos alunos premiados, começando pelo quinto ano, até o primeiro. Havia entre eles muitos nomes tradicionais e bonitos, que soavam como músicas. A cada menino chamado para receber uma medalha, todo o auditório batia palmas e, se um deles ganhasse prêmios em várias matérias, redobravam os aplausos.
Os primeiros de cada classe levantavam-se, todos flattés1, contentes e arranjados, dando sorrisos para o público, e iam receber a medalha das mãos de um padre. Os alunos mais turbulentos, sentados no fundo, também batiam palmas ruidosamente, pois o tédio da sessão lhes dava vontade de fazer tumulto:
– Muito bem!!!
Mas eles não recebiam prêmio algum.
O padre colocava cada medalha numa pequena bandeja, e o aluno premiado a levava a alguma pessoa do auditório a quem quisesse distinguir, pedindo-lhe que a prendesse no peito dele. Em geral, ele escolhia o pai ou a mãe, e, às vezes, um dos sacerdotes, mas, em certas ocasiões, os jesuítas queriam que o aluno escolhesse o representante do Governador do Estado, no que faziam bem, para manter boas relações com um personagem tão importante.
Alguns alunos, por serem governistas ou politiqueiros, tomavam a iniciativa de fazê-lo, mas muitos deles nem se incomodavam com a presença desse oficial e procediam como se ele simplesmente não existisse… Outros tinham má vontade em relação a ele, por birra de meninotes, por serem filhos de algum inimigo político do Governador ou por não gostarem da República.
Entretanto, às vezes, o padre fuzilava algum menino com o olhar, o que significava: “Vá e leve o seu prêmio ao representante do Governador”. O aluno obedecia, o personagem colocava-lhe a medalha no peito e depois lhe estendia a mão com muita amabilidade, dizendo:
– Com as felicitações do Governador do Estado!
O menino dizia:
– Muito obrigado.
E voltava para o seu lugar.
Os prêmios de Plinio
Eu não era um grande ganhador de medalhas, mas recebia algumas, de vez em quando.
Bem entendido, não preciso dizer a quem eu ia pedir que me prendesse as medalhas no peito… Sempre que mamãe estava presente, os meus prêmios eram levados a ela, sistematicamente, sem nenhuma dúvida!
Não posso me esquecer de que certa vez, no meu segundo ano de colégio2, recebi quatro medalhas de prata, uma das quais era de Religião e outra de Francês. Esse foi o número máximo de prêmios que ganhei, o que constituiu o apogeu de minha vida colegial. Realmente, para aquele tempo, isso era reputado um belo e grande sucesso, e causou a mamãe muito contentamento.
Nessa ocasião, fui chamado e levantei-me, mas, ao contrário de outros colegas que recebiam várias medalhas, não houve aplausos da parte dos meninos turbulentos. Essa diferença de popularidade era o preço que eu pagava por minha atitude no colégio…
Muito distraído, tomei um dos prêmios, já pensando em mamãe, mas, ao passar perto do Reitor, este fixou em mim o olhar e disse sussurrando:
– Vá levar a sua medalha para o representante do Governador, pois até agora ninguém o fez.
Quase respondi: “Não quero e não vou!”, mas entendi que uma certa senhora não gostaria dessa atitude, e a vontade dela era uma lei para mim… Além do mais, o representante do Governador já havia percebido que o Reitor me mandara ir até ele e, portanto, eu tinha de concordar, pois não podia fazer-lhe um insulto… Então, com má vontade extrema, fui até ele e apresentei-lhe a medalha com braço curto.
Quando o representante do Governador começou a prender a medalha em meu traje, com um alfinete, tive uma espécie de horror e tentei escapar, mas era um oficial da Polícia Militar, bastante forte: agarrou-me e senti-me imobilizado. No fim, ele me deu um abraço e disse:
– Com os parabéns do Governador do Estado!
Tartamudeei um “obrigado” com os lábios amarrados, escapei das mãos dele e levei as outras três medalhas para mamãe pôr no meu peito.
Até o fim da sessão, minha mãe me tratou de modo inteiramente normal, sem grandes manifestações, mas, quando entramos no automóvel para retornar a casa, ela me abraçou e me beijou, dizendo que estava muito contente. Entretanto, dava a entender que a alegria dela consistia, sobretudo, na esperança de progressos ainda maiores da minha parte.
Depois ela mandou pôr essas medalhas num quadro, o qual fez colocar em minha sala de estudos para animar-me.
Alegria pelos prêmios recebidos
Lembro-me da alegria que eu sentia quando obtinha medalhas no Colégio São Luís.
Para mim, o deleite dessas modestas vitórias infantis não consistia na opinião das pessoas presentes à cerimônia, nem no momento em que o padre lia o meu nome e o auditório batia palmas. Era, em especial, a alegria de receber o carinho de mamãe, mas, também, o agrado de chegar a casa e, após deitar-me na cama, pensar: “Passou a distribuição de prêmios! A agitação acabou e as férias tranquilas se desenrolam diante de mim”.
Era o verdadeiro prazer do repouso, depois de ganhar a batalha. A estabilidade gloriosa, não feita de ócio, mas de despreocupação, tranquilidade e dignidade, própria da inocência conservada.
Na confeitaria Alhambra
Nesse mesmo ano de 1920, muito satisfeita com o número de medalhas que eu havia ganhado, minha mãe quis premiar-me.
Ela sabia bem o quanto eu gostava de comer e entendeu que eu preferia um bom lanche a qualquer brinquedo, inclusive a uma caixa de soldadinhos de chumbo. Então, combinou que iríamos a um esplêndido restaurante-confeitaria, o melhor de São Paulo naquele tempo, situado na Rua São Bento, em pleno centro elegante: o Alhambra, do qual eu era grande frequentador e amigo.
Ali serviam algo que me encantava: sorvetes muito gostosos, além de outros doces excelentes, empadas, camarões recheados e vol-au-vent3. Esses pratos salgados eram os de minha preferência.
Entretanto, no dia marcado para o lanche, minha mãe adoeceu e teve de permanecer deitada. Uma vez que ela não poderia acompanhar-me, pediu então a meu pai que me levasse, junto com a Fräulein Mathilde, Rosée e Ilka. Senti a ausência de mamãe, mas fui muito contente.
Eram seis horas da tarde. Entrei na confeitaria com ar sério e compenetração de estar numa atmosfera elevada, e encontrei ali alguns meninos conhecidos, alunos do São Luís também. Percebi que, pelo fato de estarem nesse local, eles começavam a se sentir participantes de uma mesma realidade social, como se pertencessem ao mesmo clube da moda e, então, tratavam-se mutuamente melhor do que o normal.
Lembro-me até hoje da análise que fiz de todo o ambiente. Era um estabelecimento relativamente pequeno, mobiliado com mesinhas e cadeiras comuns, mas adornado com certo luxo. Estava cheio de espelhos, os quais ocupavam a maior parte das paredes, de um lado e de outro, os quais refletiam muito a luz provinda dos lustres, que assim se tornava mais bonita. A iluminação parecia dançar entre os lustres e os espelhos, da entrada até o fundo.
Havia um carpete grosso, de cor verde escuro, o qual amortecia o ruído dos passos. Por outro lado, sendo um salão pequeno, não havia nele os barulhos molestos dos grandes restaurantes e tudo se passava num ambiente discreto, harmônico com a excelente comida.
Eu achava tudo aquilo muito bonito, mas não o dizia, pois não se entenderia que um menino fizesse esse tipo de comentários, os quais pareceriam mais apropriados às meninas. Então, sempre muito protetor de minha tranquilidade, não desejava entrar em discussões desnecessárias…
Ovos quentes
Começamos a comer. Rosée manifestava certo desapego em relação à comida, enquanto Ilka comia com um apetite próprio à sua impressionante e fantástica saúde, e papai, sem prestar grande atenção nas crianças, também comia com excelente apetite.
Eu estava me servindo de empadas, quando vi um freguês, sentado numa mesa próxima, o qual encomendava dois ovos quentes, fato que não era costume numa confeitaria e a essa hora da tarde. Trouxeram-lhe os ovos dentro de uns pequenos copos, semelhantes a conchas.
Nem me lembro de que homem se tratava, mas ele sabia tomar os ovos quentes. Batia na casca, até quebrar um pouco a parte oca do ovo, fazia cair aquela parte quebrada e, depois, com muito jeito, alargava a abertura, deixando aparecer a gema. Então, imergia pedacinhos de pão no ovo…
Aquela gema tinha uma cor maravilhosa, entre laranja e vermelho, parecendo o sol da bandeira do Japão, o que, a meu ver, era o ideal em matéria de gema. Passei um bom tempo olhando aqueles ovos quentes, com enorme vontade de mandar trazer um para mim, com pão, mas perguntando-me se eu ousaria pedir licença a papai para fazê-lo. Não o fiz, pois percebi que isso seria recebido com a reprovação geral da mesa, quase como uma loucura. A Fräulein me daria um olhar repressivo e severo, e papai se surpreenderia com a extravagância, pensando: “Que filho é este, que vem pedir ovos quentes numa confeitaria?”
Por outro lado, eu já havia comido muito e eles temeriam que tivesse uma indigestão. Então, pensei: “Não vale a pena pedir esses ovos, pois não vou ganhá-los… É melhor conservar a minha boa paz, mas ainda hei de voltar ao Alhambra!”
Um colega, na confeitaria
Enquanto tomávamos o nosso lanche, eu observava as pessoas que entravam na confeitaria e saíam dela, ou que passavam pela rua. Em certo momento, apareceu um menino de uma boa e rica família antiga de São Paulo, colega meu e muito inteligente, o qual tinha recebido mais ou menos tantas medalhas e honrarias quanto eu no São Luís. Era pequeno, com olhos escuros, grandes e aveludados, e a sua tez parecia feita de esmalte.
Naquele tempo, as crianças punham traje de gala aos sábados e domingos, ou quando compareciam a certos lugares de luxo. Ele usava um chapéu arredondado e muito fino, certamente fabricado na Europa, de um feltro sedoso de cor gris perle, cujas grandes abas tinham formas indefinidas, mas nele caíam muito bem.
Olhando aquele chapéu, percebi imediatamente qual seria o efeito que ele produziria sobre os colegas desse menino, se este os encontrasse pela rua. Ele próprio se sentiria muito envergonhado e teria vontade de jogá-lo fora, pois lhe conferia uma superioridade que não estava de acordo com os padrões do tempo. Então, tirei uma conclusão: “Esse chapéu é muito bonito, mas hoje em dia não basta que um objeto tenha beleza, para ser apreciado. É preciso que siga os modelos vindos de Hollywood…”
Lembro-me vagamente do resto das roupas dele: estava vestido ricamente, com um belo capote de seda, também de cor gris perle, tendo grandes botões muito vistosos.
Ele chegou acompanhado pelo pai e por uma escolta de membros da família, provavelmente para receber uma recompensa, como eu, por ter merecido muitos prêmios. Por alguma razão, também estava sem a mãe e entrou no Alhambra dando o braço à Fräulein dele, quase carregado e numa atitude de muita moleza, com o bonito capote todo desarranjado. Era a própria imagem da preguiça inteligente.
Sendo ainda novo no São Luís, eu nem conhecia esse menino pessoalmente, mas sabia quem ele era. Vendo-o de longe, dispunha-me a cumprimentá-lo com amabilidade, apesar de uma espécie de convenção estúpida, reinante entre os alunos, pela qual não se deviam cumprimentar fora do colégio. Então, quando passou perto de minha mesa, disse-lhe de bom grado:
– Boa tarde!
Ele respondeu com desdém:
– Tarde…
Virou o rosto e sentou-se a uma mesa próxima. Percebi que ele me tratava assim por causa da minha castidade e, nessa atitude, senti o ódio do mundo, por ser um menino bem comportado.
Ele estava com um sorriso desdenhoso, assobiando ligeiramente e numa atitude de superioridade, impertinência e desprezo revolucionário em relação a tudo e a todos, caçoando daquele ambiente e procurando espezinhá-lo como se fosse ridículo e anacrônico. Na realidade, ele se sentia obrigado a dar seu tributo de fidelidade à vulgaridade colegial.
Eu, pelo contrário, por mais que gostasse da boa comida, tinha um apreço muito maior pela atmosfera da confeitaria e, entre as empadas e o luxo, optaria por este último. Pensei: “Enquanto eu estou contente, aproveitando de tudo isto e ainda desejando confeitarias muito mais nobres e elevadas, ele entra aqui obrigado e, no fundo, desejaria que um lugar como este não existisse”.
Entendi também que ele detestava a saudação entre os alunos, pois esse era um costume tradicional e, portanto, anti-hollywoodiano. Nos filmes norte-americanos nunca aparecia um menino cumprimentando outro com os modos cerimoniosos que eu havia aprendido de Dª Lucilia.
Essa diferença de posição, em face do Alhambra e do cumprimento, era quase filosófica e tinha verdadeira profundidade, representando duas atitudes perante a vida: uma, maravilhada; outra, desprezando a delicadeza, a cerimônia, a honra, a beleza e a distinção e, no fundo, ateia. Então, classificando essas impressões, percebi que havia um unum revolucionário nas atitudes de muitas pessoas, assim como existia um unum radioso no meu espírito, que era a Fé.
Eu preferiria estar numa confeitaria comum, mas sem o tormento da presença daquele zombeteiro… No fim, saí sem cumprimentá-lo, pois pensei: “Uma vez que esse menino agiu assim, tem de compreender que não sou como ele, mas sei lutar de modo ainda mais eficaz do que ele!”
As exigências de Dª Lucilia
Não se deve ter ilusões pensando que mamãe sabia apenas acariciar, pois ela possuía uma alma forte, sabendo harmonizar a doçura com a severidade. Assim, o espírito da Igreja Católica vivia nela de maneira um tanto distinta da que transparecia na Companhia de Jesus: minha mãe era muitíssimo doce, mas firme, enquanto a Companhia era muitíssimo firme, mas doce. Os dois modos se completavam.
Lembro-me de um pequeno fato, o qual pode dar certa ideia do rigor e da intransigência dela em relação a mim.
No ano seguinte àquele em que recebi quatro medalhas, ela não pôde ir à festa da distribuição dos prêmios por estar adoentada e de cama. Então, fui à cerimônia no São Luís e, nessa ocasião, ganhei três medalhas. Voltei a casa de bonde, sozinho e com os prêmios sacudindo na lapela, certo de que mamãe estaria muito contente com o resultado. Lembro-me inclusive de que trajava roupa de marinheiro.
Era um pouco tarde quando cheguei. Toquei a campainha e fui atendido com uma rapidez extraordinária, pois ela mesma foi correndo abrir a porta, o que nunca fazia, pois sempre mandava o copeiro receber as pessoas. Ou seja, sentia tanta ansiedade de me ver chegar e de saber que espécie de prêmios eu obtivera, que, a partir de certa hora, não só me esperou acordada, mas levantou-se e permaneceu perto da porta de entrada ou em alguma sala próxima.
Ela abriu a porta e me olhou. Mas, antes de me cumprimentar ou fitar diretamente a minha fisionomia, observou o meu peito e, em vez de me abraçar, teve a seguinte exclamação de susto, que nunca mais esqueci:
– Ah! Só três medalhas?! No ano passado foram quatro! O que aconteceu? Você decaiu?
Num colégio muito severo, como era o dos jesuítas, receber três medalhas era um resultado bastante bom para um menino, mas ela estava desapontada, quase como se eu tivesse sido reprovado nos exames…
Então, sorrindo amavelmente, eu lhe disse:
– Mãezinha, são três, mas preste atenção: no ano passado tive quatro medalhas de prata e nenhuma de ouro, e a senhora ficou muito contente. Neste ano eu ganhei uma de ouro e duas de prata! Uma medalha de ouro vale bem duas de prata…
Com isso, eu queria dizer a ela que havia sido particularmente bem aplicado, pois era difícil obter essa medalha. Ela perguntou:
– Do que é a medalha dourada?
– De Francês.
Ela entendeu imediatamente e se desarmou. Abriu os braços, abraçou-me e beijou-me com muita alegria, e estávamos reconciliados.
Se eu tivesse obtido resultados inferiores aos do ano anterior, ela não me castigaria, mas me faria sentir a sua decepção, pois sempre esperava de mim o melhor. Assim era mamãe.
Um chapéu novo
Pouco antes de uma festa de formatura no Colégio São Luís, mamãe observou que o meu chapéu estava muito velho e era preciso comprar um novo. Então, foi combinado que eu iria com um senhor da família à Chapelaria Alberto, situada numa travessa entre a Rua São Bento e a Rua Libero Badaró.
Entretanto, percebi claramente, no olhar daquele senhor, que ele não possuía a menor ideia do que poderia ser um chapéu apropriado para mim, e iria comprar o que lhe oferecessem… Certamente, a sua ideia era a seguinte: “O chapéu do Plinio tem de valer cinco mil réis. Se aparecer um chapéu por esse preço, irá bem na cabeça dele”.
Levou-me ao centro da cidade em automóvel, junto com Rosée, mas descemos frente a uma chapelaria na Praça do Patriarca, e não naquela indicada por mamãe. Ele entrou e pediu:
– Eu quereria um chapéu para este menino aqui.
– Pois não.
O vendedor olhou para mim e pensei: “Esse homem está me observando, para ver qual é o chapéu que corresponde à minha fisionomia”.
Trouxe uma pilha de chapéus, que vinha do chão até a altura do meu ombro. Eram pretos e redondos, com fitas também pretas. Pareceram-me chapéus de luto, feitos para serem usados por meninos órfãos! O senhor que me acompanhava disse:
– Experimente um, para ver se lhe cabe bem.
Eu entendia bem qual era a opinião dele: “O Plinio é muito distraído e põe o chapéu na cabeça de qualquer jeito. Depois baterá o vento, que levará o chapéu e ele não irá buscá-lo, para não ter de correr. Então, dirá que este desapareceu… De maneira que é preciso um chapéu bem ajustado, que o vento não possa levar e, assim, não ter de comprar um outro, perdendo novamente cinco mil réis…”
Comprou um desses chapéus pretos e fui à cerimônia no Colégio São Luís, com meu pai e minha irmã, perguntando-me o que os colegas iriam achar do chapéu de cinco mil réis… Ao chegarmos, papai me entregou aos padres e permaneceu no meio dos convidados, conversando, enquanto eu sentia a estranheza muda dos meus colegas, diante do meu chapéu… Um deles encontrou-se comigo e disse:
– Você está pulchrum, nesta noite!
Quando cheguei a casa, perguntei a papai:
– Papai, o que é pulchrum?
– É bonito.
– Bonito?!
– Sim, bonito.
Pensei: “Então o meu colega não disse a verdade, pois este chapéu é o contrário de pulchrum!”
Então, fiz uma brincadeira a respeito do chapéu, na qual minha irmã achou muita graça e imediatamente repetiu. Ambos começamos a rir e falar contra o chapéu. Papai estava próximo e tinha condições de perceber todo aquele sarcasmo, mas nem se incomodou, pois acreditava firmemente que o bom senso se adquire na idade adulta e, portanto, não valia a pena corrigir certas atitudes das crianças…
Dias depois, procurei mamãe:
– Mamãe, é simplesmente impossível usar este chapéu! A senhora olhe bem…
Com a sua moderação característica, ela olhou o chapéu e disse:
– É, meu filho, você sabe como é aquele senhor, não é?
Eu pensei: “Eu sei: é como não deveria ser!”, mas apenas disse:
– A senhora poderia falar com ele, para comprar um outro?
– Pode deixar, pois conversarei com ele depois… Qualquer dia, quando a saúde de sua mãe estiver melhor, nós vamos escolher um chapéu.
Tive grande alívio, pois a escolha passava para a mão de mamãe, e pensei: “Agora vai aparecer um chapéu decente!” E assim, o “drama” do chapéu se encerrou.
Na realidade, o que me movia a rejeitar aquele chapéu, mais do que a opinião dos colegas, era a minha incompatibilidade com ele. Eu tinha impressão de que, se me habituasse a usá-lo, de certo modo a minha mentalidade se tornaria semelhante a ele, em alguma coisa. Então, tratava-se da intransigência contra uma sensação de desordem, movida pelo senso do dever, o qual, por sua vez, consistia num amor desinteressado à ordem e, no fundo, a Deus.
Santinhos
Os padres do Colégio São Luís tinham o bom costume de distribuir, com certa frequência, santinhos impressos, como prêmios aos alunos por suas boas notas, pelo seu bom comportamento, alguma composição bem escrita ou algum exercício bem feito.
Em geral, eram figuras coloridas, muito bonitas, com dizeres piedosos e impressas na Europa, pois ainda não havia boas tipografias no Brasil. E, uma vez que a província jesuítica de São Paulo tinha uma relação especial com a Itália, e havia no colégio vários padres italianos, os santinhos então refletiam o talento artístico desse povo.
Essas figuras, assim como alguns desenhos infantis do meu livrinho de História Sagrada, produziam em mim certas impressões a respeito de um mundo superior, que se manifestava através da Igreja Católica de modo inexcedível e perfeito. No fundo, era Deus, Verdade inteira, perfeita e adorável, ao qual eu queria dar a minha alma.
Muitos alunos desejavam possuir esses santinhos. Viam-nos antes de serem distribuídos e, naturalmente, alguns torciam por ganhar esse ou aquele.
Em certa ocasião, durante uma distribuição de santinhos, vi entre eles uma representação da Sagrada Face de Nosso Senhor Jesus Cristo, estampada no véu da Verônica. Era muito pequeno, feito de papel comum e tendo como fundo uma espécie de celuloide verde, translúcido, com uma breve oração impressa em letras douradas, de cujo texto não me lembro mais.
Sendo muito sensível às cores, a “linguagem” destas me dizia muito mais do que as formas e, apesar de não ser o verde uma cor de minha grande preferência, tive o seguinte movimento interior de entusiasmo: “Quero esse cartão verde!”
Olhando mais de perto, vi a Sagrada Face e ocorreu-me que as emoções causadas por ela deveriam ser entendidas à maneira daquela cor. Ou seja, o verde dava-me a impressão de despertar certas tonalidades de alma, que era preciso pôr em nexo com a Face Sagrada de Nosso Senhor Jesus Cristo. Era uma cor escura muito carregada, e tão densa que tendia vagamente ao opaco, o que me parecia corresponder a um dos aspectos da tristeza de Nosso Senhor. Então, contemplando a sua Face, eu me considerava na obrigação de sentir o martírio d’Ele assim.
E, uma vez que era um padre quem a entregava, deduzi ser aquilo um ensinamento da Igreja. De minha parte, tratava-se de descobrir qual seria esse ensinamento, expresso de modo mais subtil e delicado do que por meio de um escrito, mas cheio de imponderáveis ricos e especiais, que eu deveria compreender. Tive, portanto, enorme vontade de possuir aquela figura.
Então, quando o padre mostrou os vários santinhos para alguns alunos escolherem, imediatamente apontei para esse pequeno quadro e, recebendo-o, fiquei encantado. No fundo, sem percebê-lo, eu desejava “morar” longamente dentro daquele verde… É evidente que esse encanto procedia de uma ação da graça e, em grande parte, do meu amor prévio a certas perfeições que ainda não conhecia por inteiro, mas que comecei a explicitar em contato com esse santinho.
Castigos escolares
Naquele tempo, quando algum menino fazia uma traquinagem no colégio, era punido pelos padres. Existia um castigo pelo qual o mau aluno tinha de permanecer em pé, dando as costas para a sala de aula, com o rosto voltado para um canto da parede e sem poder olhar para os lados.
Alguns obedeciam normalmente, porém, os mais modernizados, enquanto iam para a parede, viravam-se para trás, fazendo gracinhas e debicando do professor. E quando retornavam aos seus lugares, faziam-no com ar de afronta, que o mestre fingia não perceber…
Havia também um sistema de punição chamado pensum4, o qual consistia em escrever centenas de vezes uma frase, como, por exemplo: “Devo respeitar meu professor”, ou “Devo decorar minhas lições até ser capaz de repeti-las corretamente”.
Então, terminadas as aulas, quando os alunos voltavam para casa, um ou outro ficava retido, fazendo um pensum durante uma hora inteira. Eu teria horror de fazer aquilo, mas via certos colegas que eram heróis nessa matéria, e escreviam quinhentas vezes alguma frase, como quem se abanava…
Um dos professores, inclusive, tomava uma atitude curiosa. Em certas ocasiões, ele repreendia um aluno e este lhe perguntava:
– O senhor pode me dizer no que procedi mal?
Ele respondia:
– Não vou lhe dizer, mas você vai permanecer escrevendo essa pergunta, até você mesmo descobrir a resposta e escrevê-la.
Alguns não queriam submeter-se imediatamente e, então, escreviam a pergunta duzentas vezes, mas, no fim, acabavam atinando com a resposta certa, para poderem sair do colégio…
A palmatória
Eu não alcancei os castigos corporais, mas meu pai contava que, no tempo dele, em Recife, os alunos do curso primário eram punidos com “bolos”, ou seja, batidas na mão, com uma chapa de madeira furada, chamada palmatória.
E, no fim do ano letivo, fazia-se uma bonita festa, na qual todos os meninos da escolinha entravam cantando na sala de aula, em cortejo. Na frente ia o melhor aluno, trazendo numa bandeja a palmatória toda enfeitada com flores, para oferecê-la ao professor, agradecendo-lhe os “bolos” e pedindo-lhe que os desse novamente no ano seguinte. Era a “festa da palmatória”.
Tenho a impressão de que isso deveria ser organizado pelas mães de alguns alunos, as quais colhiam flores silvestres e mandavam os filhos fazerem essa procissão, mas aquilo me parecia um modo prazenteiro, cândido e amável de apresentar algo desagradável, como é o castigo, sem eliminá-lo.
1 Lisonjeados.
2 O ano de 1920.
3 Prato de entrada de origem francesa, feito de massa folhada e recheado.
4 Tarefa, obrigação.
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