Os primeiros meses
Após seu casamento, meu pai alugou uma pequena casa térrea a pouca distância do palacete dos sogros dele, Dr. Antônio e Dª Gabriela Ribeiro dos Santos, para que mamãe tivesse facilidade de contato com eles e seu ambiente. Nasci nessa casinha, na manhã de 13 de dezembro de 1908, num domingo.
Mamãe estava em condições de saúde muito delicadas – que, depois de meu nascimento, iriam piorar – e os médicos lhe aconselharam abortar. Insistiram muito, dizendo que morreria se não o fizesse, mas ela respondeu:
– Esta não é uma proposta que se faça a uma mãe! Um filho meu não matarei nunca! Ainda que eu tenha de morrer, não matarei meu filho.
Afinal, dois meses antes do previsto, eu nasci, enquanto ela ouvia tocar os sinos da Igreja de Santa Cecília, chamando para a Missa. Eu era tão pequenino e tão fraco que o médico disse não ser aconselhável colocar-me no lindo berço que mamãe preparara, pois podia afogar-me nele. Então, acabei indo parar numa cestinha de pão! Ela gostava muito de relembrar esse fato.
O porquê do nome
Por que me chamo Plinio?
Mamãe comentava que, poucos dias depois de eu ter nascido, ela estava ainda um tanto combalida, e havia uma roda de pessoas da família em torno da cama dela falando a respeito de meu possível nome.
Apresentavam várias sugestões e minha avó, a quem ela queria muito, disse, sem propriamente pedir:
– Eu teria gostado tanto que um filho meu, ou então um neto, se chamasse Plinio! Acho esse nome muito bonito, mas nunca ninguém atendeu meu pedido…
Para comprazer Dª Gabriela, mamãe respondeu imediatamente:
– Então, mamãe, seu desejo está atendido: o nome do menino é Plinio.
Aos seis meses de idade, já conversava
Como bom filho de nordestino, fui extrovertido desde menino. Chorava alto e enchia a casa com meu pranto! E quando comecei a rir, a enchia com as gargalhadas também… Em conseqüência disso, eu causava muitos incômodos à família.
Tive logo muita facilidade de falar. Dizia mamãe que, pouco tempo depois de meu nascimento, já comecei a treinar um pouco e aos seis meses eu conversava, com um timbre de voz muito forte! Até hoje não parei…
“Onde está Jesus?”
Toda criança aprende instintivamente a dizer “papai” e “mamãe”, e a reconhecer os próprios pais, mas minha mãe quis que, antes disso, minha irmã e eu soubéssemos dizer “Jesus”. Então, as primeiras perguntas que ela nos fazia não eram: “Onde está papai? Onde está mamãe?”, mas: “Onde está Jesus?”.
Ela possuía em seu quarto uma imagem do Sagrado Coração de Jesus muito bonita, fabricada na França, que lhe fora dada por seu pai. Logo após ter percebido que éramos capazes de acompanhar com os olhos o movimento de seu dedo, e que, portanto, uma primeira noção estava raiando em nossas almas, ela desejou que esta fosse voltada para o Autor de todas as coisas, quer dizer, para Deus. Por causa disso nos dizia, sorrindo meigamente:
– Jesus, Jesus.
Orientava as nossas cabeças e olhávamos para o Sagrado Coração de Jesus. Qual não foi a alegria dela‚ quando ouviu pela primeira vez meus lábios pronunciarem:
– Jesus!
Espero que meu último olhar seja também para uma imagem de Nosso Senhor ou de Nossa Senhora.
Por que o batismo não foi imediato?
Fui batizado no dia 7 de junho de 1909. Segundo o costume vigente, meu avô paterno devia ser o padrinho.
Mas ele morava em Pernambuco, de onde se viajava naquele tempo apenas em navios da companhia Lloyd, que eram muito lentos e vinham descendo para o sul, até chegarem ao porto de Santos. Meu pobre avô havia perdido grande parte de sua fortuna – como sucedera a todos os produtores de cana no Brasil – de maneira que nem possuía suficiente dinheiro para vir. Era, portanto, necessário aguardar… Minha mãe lamentava-se de ter esperado tanto tempo, mas foi obrigada a isso pelas circunstâncias. Então, fui batizado com seis meses de idade.
Naquele tempo se usava um vestido de batismo muito longo, bem maior do que o tamanho da criança. E eu ficava minúsculo, no meio daquele tecido que sobrava…
Morte de Dr. Antônio Ribeiro dos Santos
Assim como a infância de mamãe fora muito iluminada por seu pai, o Dr. Antônio Ribeiro dos Santos e, de algum modo, também por sua mãe, minha infância foi iluminada por ela. Meu afeto por mamãe era análogo e, de certo modo, uma continuidade daquele que ela possuía em relação ao pai, devido às qualidades que via nele. Aliás, também as irmãs dela tinham uma confiança absoluta e sem limites no pai: o que este decidisse, fazia-se sem duvidar! E mamãe apresentava o próprio pai como tendo sido um homem muito bom, virtuoso e religioso.
Ela costumava contar o episódio da morte dele: Dr. Antônio comprava todos os anos uma folhinha popular chamada “Calendário de Santo Antônio” e a colocava na parede de seu quarto. No ano de 1909, ele disse à minha avó: – Sinhara, olhe aqui a folhinha para o novo ano.
E, fazendo um cálculo de “noves fora” que dava zero, concluiu:
– 1909… Neste ano vou morrer.
Minha avó respondeu:
– Totó, não diga tolices!
E zangou-se… Mas ele riu e continuou:
– Eu vou morrer neste ano. Você vai ver.
Ele tinha as veias muito salientes e, de vez em quando, brincando com os talheres durante o jantar, colocava a faca sobre o pulso e, notando que aquela se movia um pouco, dizia à esposa:
– Está vendo? Isso é sinal de que vou morrer.
– Não! Não fale mais nisso…
Em certa ocasião, a família desceu para Santos e, na manhã do dia 12 de novembro, ele foi ao centro da cidade para tratar de negócios numa casa comissária de café da qual era advogado. Andando por uma rua, sofreu derrame cerebral e caiu ao chão. Como em Santos ele era pouco conhecido, ninguém o identificou. Levaram-no a uma loja e deitaram-no sobre o balcão, à espera do socorro médico, que tardou em chegar. Então um homem que passava em frente observou-o e disse:
– Esse é o Dr. Antônio Ribeiro dos Santos! É preciso chamar a sua família que está no Hotel Parque Balneário! Vou avisar alguém da firma da qual ele é advogado.
Levaram-no então a uma sala disponível na casa de café e mandaram vir médicos, os quais recomendaram deixá-lo deitado e sossegado. Os amigos dele começaram a chegar e ficaram conversando em altas vozes na sala vizinha, até que, em certo momento, Dr. Antônio os chamou e eles entraram. Ele estava apoiado sobre um cotovelo e de repente caiu morto para trás.
Desenrolou-se então a pompa fúnebre, de acordo com os usos da época: o corpo foi transladado para São Paulo num trem especial – todo coberto de flores, inclusive a locomotiva – subindo a serra devagarinho, pois não ficava bem um cadáver viajar a toda velocidade.
Chegando à estação, levaram-no à sua casa para o velório.
Mamãe estava em São Paulo e, quando soube do ocorrido, imediatamente sofreu uma indisposição e ficou de cama até que, pouco antes do enterro, disseram-lhe:
– Lucilia, se você não for agora, perderá a última oportunidade de ver seu pai.
Ela morava à distância de meio quarteirão da casa dos pais. Fez uma tentativa de andar, amparada de um lado pelo marido e do outro por um tio. Porém, de tal maneira suas pernas estavam enfraquecidas, que ela caía constantemente e precisava ser arrastada. Por isso eles a reconduziram de volta, ela se deitou novamente e não esteve presente ao enterro.
Mamãe narrava esses episódios, dando-lhes certo caráter de tragédia…
Pouco tempo depois desse falecimento, meus pais se mudaram para a casa de vovó, por sugestão desta. Minha infância transcorreu nesse casarão onde moravam, além de meus pais e minha irmã – um ano mais velha do que eu –, uma tia com seu marido e uma filha, ocupando aposentos inteiramente distintos, na mesma residência que era freqüentada por muitos parentes.
Nos braços de mamãe
Certos modos de ser eram muito marcados em mim, desde as mais antigas recordações que tenho de minha vida. Por exemplo, o gosto da lógica, da retidão, do raciocínio e da ordem, era um corolário do apreço pelas coisas limpas, puras e direitas.
Tanto quanto possa lembrar-me de mim mesmo, já observava as coisas em pequeno e pensava sobre elas, perguntando-me se eram moralmente boas ou más; ontologicamente apetecíveis ou não. Por exemplo, há uma fotografia em que estou nos braços de mamãe, tendo alguns meses de idade e, portanto, sem o uso da razão. Ela, relativamente moça, muito forte e bem constituída, sorrindo enlevada e satisfeita. Ao pé da letra, ela está “derretida”…
Alguém teve a idéia de fazer uma ampliação dessa fotografia. Observando minha micro-fisionomia, percebi alguma coisa de meu modo de ser e de meu temperamento que já estava ali presente. A inocência transparece de modo saliente, junto com a debilidade. Estou acordado olhando para alguma coisa. Largado nos braços maternos – com delícias! – sentindo muito seu carinho e confiando nela com a maior tranqüilidade. Entretanto, causou-me certa surpresa ver uma criança daquela idade com ares e olhar de quem está raciocinando… É um olhar seletivo e dubitativo; feito para distinguir as coisas, não permitindo que elas se apresentem emaranhadas, mas ordenadas. Com uma grande tendência para a análise, disposta para depois saborear ou recusar, aprovar ou rejeitar. Havia ali matéria-prima para um homem muito analítico.
Comment (1)
Obrigado ρara o postagem maravilhosa! Ꭼu na verdade
gostava de ler, você ѕeгá um grande autor. Vou assegurar ԛue eu marcar
ѕeu blog e ѕеrá eventualmente voltar
na estrada . Quero encorajar ѕe continuar sua grande postos , tenha սm bom tarde !