A Revolução de 1924
Um dos meus tios, o irmão mais velho de minha mãe,1 fazendeiro e dono de alguns prédios de aluguel, havia sido eleito Deputado Federal,2 mas, logo depois, foi convidado para ser Secretário da Agricultura do Governo Estadual de São Paulo, e aceitou.
Um secretário estava para o Governador do Estado como um ministro em relação ao Presidente da República. Considerava-se inclusive que o cargo de Secretário de Estado era mais importante do que o de deputado, pois participava do governo, enquanto este último tinha parte mais remota na direção do Estado. Era, portanto, uma alta situação.
Novo Secretário da Agricultura
Quando eu soube que meu tio havia aceitado ser Secretário da Agricultura tive uma surpresa, porque ele era muito bon parleur.3 Não sei se era orador, pois nunca o ouvi falar em público, mas tinha o dom de transformar insensivelmente uma conversa em discurso, sem deixar de conversar. Era inteligente, com presença muito interessante e uma excelente prosa, razões pelas quais me parecia que ele faria um grande papel na Câmara dos Deputados. Além do mais, era bastante lido e culto, e possuía uma das boas bibliotecas de São Paulo.
Entretanto, como Secretário da Agricultura ele teria de cuidar de café, de nabos e cebolas, matéria muito menos propícia para a eclosão do seu talento, mas pode-se bem imaginar que ele não se lembrou de consultar um jovem de quinze anos como era eu.4
A cartola detida por um olhar
Minha avó, mãe dele, pediu que lhe avisassem quando ele fosse sair à rua como membro do governo, em carro oficial do Estado, pois queria vê-lo. Tio Gabriel sentiu-se muito flatté5 com o pedido e, ao encontrar-se comigo à noite, recomendou:
– Olhe, você avise a sua avó que vá à Rua XV de Novembro, em tal prédio, tal andar e tal janela. Lá haverá gente esperando-a; quando eu passar, olharei para ela.
Perguntei:
– Mas, o que vai acontecer?
– O Presidente do Estado e os Secretários vão desfilar, cada um no seu automóvel.
Não dei muita importância ao assunto e me esqueci da recomendação do modo mais completo possível. E, por incrível que pareça, nem o Reizinho nem eu comparecemos à posse de meu tio.
No dia seguinte, de manhã, fui à casa dele para falar com um dos seus filhos. Já na entrada, encontrei-me com meu tio, voltando da parada com fraque, grande uniforme e cartola na mão. Cumprimentei-o sem me lembrar de nada:
– Como vai o senhor, está passando bem?
– O que aconteceu com sua avó, que não estava no lugar marcado?
– Que lugar?
– Então, você se esqueceu?!
– Completamente!
Tio Gabriel levantou a cartola para me dar um golpe, à maneira de brincadeira, mas de fato estava furioso… Olhei-o com firmeza, ele encolheu o braço e não se atreveu a me bater, pois compreendeu que as coisas não funcionavam assim comigo.
Um diálogo surpreendente
Não posso esquecer-me também de um fato curioso, ocorrido com meu tio nessa época.
Em certa ocasião, em vez de passar a noite em minha casa, fui hospedar-me na residência dele, não me lembro bem por quê. Então, meu tio e sua esposa puseram-me para dormir no quarto de toilette, vizinho ao quarto deles, e deixaram aberta a porta entre os dois ambientes.
Deitei-me e dormi por volta das dez horas da noite, mas aconteceu que, embora tivesse um sono muito pesado, às duas ou três horas da manhã acordei, e percebi que o dono e a dona da casa estavam conversando. E ouvi, então, algo que me deixou pasmo.
A meia voz, talvez com receio de que eu estivesse acordado, ela perguntou-lhe se havia procurado certo homem político. Respondeu ele:
– Sim, procurei.
– O que aconteceu? Como foi ele com você?
Meu tio começou a dizer que tudo havia corrido bem, mas ela o interrompeu, exigindo:
– Não, isso não vai assim! Conte-me o que você disse e o que ele respondeu, para saber se foi bem ou foi mal.
Ele narrou tudo, ela pensou um pouco e depois lhe disse:
– Você não percebe que isso é uma jogada? Ele teve tal intenção assim…
– Será?
E atalhava ela:
– Eu vou provar-lhe.
Provava e continuava:
– Isso não está bem. Você foi bobo, pois deveria ter dito outra coisa. Vamos agora consertar a bobagem: amanhã você vai fazer uma visita a ele e dizer tal coisa. Entendeu?
– Mais ou menos eu direi isso.
– Não, não é mais ou menos! Tem de ser como eu disse, sem alterar uma palavra. Entendeu bem?
– Sim, entendi.
Assim, naquela hora da noite ela fez uma sabatina, passando em revista todos os contatos políticos do dia e combinando o plano do dia seguinte. Ora, eu antes julgava que o marido mandava nela!
Pensei: “Como eles se completam!” Ela era baixinha e ágil, enquanto ele era um homem grande, forte e imponente, com uma força de vontade que incutia respeito e um trato cavalheiresco muito agradável e atraente, mas não possuía a esperteza dela, e quem lhe abria os olhos contra as raposas da política era a esposa.
Ela aplicava nesse caso toda a percepção feminina e, no entanto, parecia viver a léguas da política, inteiramente despreocupada, tratando apenas dos assuntos da casa – que ela mantinha perfeita –, mas pensando muito, pois era uma mulher que meditava, o que ele não fazia. Notei que ela já tinha aquela conversa preparada, pois sabia qual era o sistema utilizado pelo marido, havia intuído o que ele fizera durante o dia e o esperava para apanhá-lo no laço!
Meu tio também sabia que sem a esposa não obteria sucesso e, por isso, obedecia, uma vez que ela era muito mais política do que ele. Eu tinha me encontrado com ele naquele dia, no centro da cidade, conversando em meio a uma grande roda de senhores. Quem haveria de pensar que a diretriz da esposa dele influenciava a política do Estado?
Assim, eu estava achando aquela conversa interessantíssima, mas tinha muito sono e voltei a dormir.
Estranhos imigrantes
Na pasta desse meu tio se encontravam também os problemas da imigração em São Paulo.
Ora, nesse tempo, o aspecto plácido e normal da cidade foi rasgado por uma novidade: começaram a aparecer pelas ruas uns homens altos, fortes, espadaúdos, com barbas e bigodes enormes, e sobrancelhas segundo o mesmo modelo, olhos pequenos de uma cor entre o cinzento e o verde, fuzilantes e malévolos, pele que parecia feita de couro, fisionomia feroz e ar de guerreiros. A roupa deles comportava um blusão e cinturão pretos, botas altas e chapéu de astracã. E todos, sem exceção, levavam um punhal retorcido, atravessado em diagonal na cintura, para o caso de terem de assassinar alguém.
Eram camponeses bessarábios, povo que dependia da Romênia, a qual era naquele tempo um reino.6 O governo romeno havia oferecido ao governo brasileiro a imigração de alguns milhares desses homens. O Brasil aceitou e foi mandada uma grande quantidade deles, os quais desembarcaram e declararam que se recusavam a trabalhar e exigiam o sustento – pois lhes haviam prometido que no Brasil poderiam comer –, e que utilizariam os punhais para matar gente, caso não lhes dessem alimento.
Conhece-se o sistema brasileiro… Começou a distribuição de víveres, para aplacá-los, mas eles davam uma impressão de terror nas ruas tranquilas da pequena São Paulo. No Bairro dos Campos Elíseos, onde eu habitava, houve certo momento em que se via um desses homens em quase toda esquina, olhando com desconfiança. E todo o mundo se perguntava: “Por que isto veio parar no Brasil?”
Solução para os bessarábios?
Um dia em que meu tio Gabriel foi jantar em nossa casa, alguém lhe perguntou:
– Mas, o que está fazendo o governo? Por que deixou entrar essa gente tão estranha?
Ele disse a todos os que estavam conversando à mesa:
– Eu já providenciei a remoção deles, mas acontece que esses homens vêm de uma terra muito diferente da nossa, e a solução do problema não está fácil. Inclusive mandei chamar o Embaixador da Romênia para pedir-lhe explicações. O tratado que fizemos com esse país era diferente!
De fato, o governo brasileiro havia reclamado: não tinha sido cumprido o contrato, os bessarábios entraram no país e não trabalhavam. E os jornais noticiaram que o Embaixador da Romênia tinha vindo a São Paulo para tratar com o governo do Estado a respeito do assunto. Então, meu tio contou que ele mesmo havia apresentado a reclamação, anunciando que o contrato estava desfeito. Mas o Embaixador deu risada e disse:
– Senhor Secretário, está impressionado com essa gente? Pensa que nos intimidará com a ameaça de prendê-los? Isso é muito simples: o meu governo sabia que estava enviando pessoas
inaceitáveis, e eu recebi a seguinte recomendação: declarar ao senhor que faça o que desejar, pois o que nós queríamos o governo brasileiro já fez: tirou-os de nossa terra. Agora, o senhor pode mandá-los para o fundo de um sertão, onde eles se entre-assassinem, ou embarcar essa gente num navio velho, levá-lo para o alto-mar, abrir uma escotilha e afundá-lo com eles todos. Se não cabem no meu país e o senhor não os quer no seu – como já estávamos prevendo –, vão para o fundo do mar! Eu dou ao senhor a garantia: se os matar, não haverá nenhuma reclamação de nossa parte, nem escândalo internacional. O governo da Romênia lhe ficará grato.
Meu tio teve uma enorme surpresa e ficou muito mal impressionado, com essa proposta de matar os bessarábios! Evidentemente não seguiu o conselho do Embaixador.
Lembro-me que ouvi tudo isso durante o jantar, mas depois me esqueci do assunto e nem perguntei mais sobre os imigrantes. Ignoro qual jeitinho foi dado com eles, mas, conhecendo os nossos compatriotas, sei bem que essa gente não foi mandada para o fundo do mar pelos brasileiros. Talvez tenham sido levados para o interior do país, e ainda exista a descendência deles em algum lugar do Brasil onde se estabeleceram. Desconfio muito que o governo arranjou um meio para ejetá-los em países vizinhos, Paraguai ou Bolívia, e o problema se resolveu.
O fato concreto é que os bessarábios desapareceram pouco depois, nesse ano de 1924, por ocasião dos acontecimentos que houve em São Paulo.
Conversa confidencial
Certa vez, durante o mês das férias,7 passei pela sala de jantar de casa e encontrei minha avó sentada na sua cadeira de balanço, e meu tio Gabriel junto a ela. Aliás, vovó permanecia a maior parte do dia nessa cadeira, uma espécie de “capital federal”, a partir da qual ela governava a residência e “dava audiências” enquanto fazia tricô ou escrevia cartas.
Falando baixinho, ele disse que tinha algo muito confidencial para contar-lhe. Arrastou uma cadeirinha – o que não era dos seus hábitos, pois, sendo homem corpulento, escolhia sempre as grandes cadeiras – e sentou-se bem perto dela, uma vez que vovó estava ligeiramente surda.
Era uma senhora imponente e jamais saía de sua calma matriarcal, mas, de repente, percebi que ela perdia a segurança, diante de alguma novidade terrível. Então, dei um jeito de ficar ali por perto. Fui à sala de visitas – contígua à sala de jantar – cujas luzes estavam apagadas e, como a porta que dividia os dois ambientes tinha vidros a partir de certa altura, entrei agachado, escondi-me e colei o ouvido nessa porta. Tinha quinze anos e cedi a um impulso muito forte! Nessa idade se perdoa a indiscrição.
Como meu tio falava muito baixo no ouvido de vovó, e havia certo ruído na rua, não pude apanhar tudo o que ele dizia, mas apenas alguns lances da conversa. Em meio ao sussurro se ouvia de vez em quando a palavra “revolução”, a qual parafusou ainda mais os meus pés no chão. Que revolução era aquela? São Paulo era tão pacífica naquele tempo, que essa ideia não me havia passado pela mente.
Ele contava que o Governador de São Paulo – ou “Presidente de Estado”, como se dizia naquele tempo –, Carlos de Campos,8 tinha recebido a denúncia de que se preparava um Golpe de Estado em São Paulo, uma verdadeira revolução. Diante desse fato tão grave, ele havia chamado o comandante da Região Militar, General Abílio de Noronha,9 a mais alta autoridade do Exército em São Paulo, e lhe perguntara se tal denúncia era verdadeira. O General garantiu que não era.
Então o Presidente exigiu dele, sob palavra de honra, o juramento de que não haveria revolução. E Abílio de Noronha jurou sobre a espada que não existia nenhum perigo de revolução em São Paulo. O episódio tinha ainda certos ares de Ancien Régime,10 apesar de estarmos no fim da Primeira República!
Mas, pelos cochichos de meu tio, percebi que ele duvidava muito e não confiava na palavra de honra do General. Estava realmente receoso de que pudesse haver uma revolta.
Então, minha avó, temendo pela vida do seu filho, naturalmente recomendava-lhe que desconfiasse do Abílio de Noronha. E, apesar de ela ser muito monarquista e meu tio ser Secretário da Agricultura da República, ele seguia muito os conselhos da mãe a respeito de certos lances políticos. Como verdadeira matriarca e mulher muito inteligente, era ela a mentora da família e o seu parecer era ouvido por todos como opinião muitas vezes – nem sempre – decisiva.
Pouco depois voltei à sala de jantar. A matriarca estava na sua calma olímpica e o filho dela também conversava inteiramente tranquilo. No momento, achei aquele assunto muito interessante, mas, passados alguns dias, minha avó, minha mãe e todos nós descemos para Santos, lugar pelo qual eu tinha verdadeira loucura, e me esqueci disso por completo.
Notícia espantosa
Nessas temporadas de férias, as casas particulares de Santos se enchiam de parentela durante um mês. A nossa família estava hospedada em casa de tia Zili e tio Nestor, muito próxima à praia, no começo da Avenida Ana Costa, a qual era o eixo da movimentação da cidade. Esses meus tios e minha prima Ilka nos recebiam com hospitalidade perfeita, de tal modo que era impossível fazê-lo melhor.
Certa manhã fui ao mar com meus primos e primas. Naquele tempo, a castidade do ambiente nos banhos de mar não tem comparação com o que existe nos dias de hoje;11 o maillot de homem, por exemplo, chegava até os joelhos e tinha mangas.
Por volta das onze horas, voltei da praia todo molhado e entrei na casa, para tomar um banho de água doce e vestir-me. Quando estava subindo ao andar superior, ainda num patamar da escada, vi no alto minha tia, a qual, quando cheguei, disse:
– Plinio, você sabe da última novidade?
Eu respondi:
– Não. O que é?
– Arrebentou uma revolução, que tomou conta de São Paulo!12
Eu não quis acreditar! Fiquei espantado, pasmo! Parei na escada e perguntei:
– Mas, como? Uma revolução? Em São Paulo?
– Sim! Todos os membros do governo estão cercados no Palácio dos Campos Elíseos e não podem sair, inclusive seu tio! O palácio está sendo bombardeado a canhão neste momento, e estamos esperando as notícias para saber se outras partes do Brasil vão aderir a essa revolução.
O fato era tão inaudito que não me lembrei do sussurro que pressagiava essa revolução, o qual havia chegado aos meus ouvidos atrás da porta da sala de jantar, na casa de minha avó. E eu era tão inexperiente em política que, no momento, a minha primeira ideia foi a de uma revolução monárquica. Minhas esperanças foram tão vivas que me arrepiei e tive um ravissement,13 pela hipótese da restauração da monarquia!
Mas, olhando a fisionomia da minha tia, vi que não estava especialmente entusiasmada e pensei: “Não! Isso seria bom demais! Essa gente do mundo de hoje não faz nada de bom”.
Subi depressa para tomar banho e me aprontar, antes de ouvir as informações que chegavam. Já havia entendido que se tratava de uma briga entre republicanos, mas mesmo assim tive grande contentamento. Por quê?
As razões do encanto de Plinio
Todo o mundo em São Paulo havia sido educado na ideia e na sensação de que a ordem social e econômica que nos rodeava tinha tal solidez que, à maneira do rochedo do Pão de Açúcar, nunca seria abalada. Portanto, era impossível haver uma revolução que alterasse aquilo.
Ora, eu não amava tal sensação de solidez, pois ela significava a estabilidade daquilo que eu detestava14 e que pesava sobre mim como um fardo. Então, de repente, ver que algo quebrava nessa estabilidade deixava-me encantado!
E pensava: “Se eles brigam entre si, essa ordem de coisas está abalada de algum modo! Se esse mundo estremece, é porque nele se abriu uma fenda que nada mais consertará”. Era, portanto, uma enorme esperança de que o meu cárcere se abrisse, o que me causava uma impressão de libertação. De outro lado, eu imaginava: “De agora em diante vamos ter a marcha dos abalos, e chegará o momento em que o mundo inteiro será abalado!”
Terror e boatos
Quando desci, encontrei o ambiente completamente diferente do normal. As notícias dos acontecimentos em São Paulo eram das mais apavorantes. E o Hotel Parque Balneário, o maior de Santos, a dois passos da casa de meus tios, estava repleto de famílias da sociedade paulista, para as quais aquelas informações horríficas causavam terror.
Inclusive os meus parentes estavam num verdadeiro drama, pois, sendo meu tio Secretário de Estado, todos temiam que os membros do governo pudessem ser mortos, no furor do tiroteio. Vinha-me a pergunta: “Não será um golpe comunista?” Entretanto, olhava em torno e percebia que ninguém pensava nisso!
As rádios haviam sido tomadas pelo revolucionários, mas os telefones continuaram livres e eram a fonte das novidades vindas de São Paulo. Começou então a circular uma série de boatos: houvera canhonaços sobre a cidade e uma bala já atingira o Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo e residência do Presidente do Estado, embora felizmente não tivesse deflagrado. O bombardeio tinha chegado a tal ponto, que uma bomba derrubara a torre da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, um dos mais elevados edifícios da cidade15. Dizia-se também que a imagem de bronze no alto da torre havia caído por terra e o braço direito se quebrara, notícia que feriu muito a
Dª Lucilia e a mim.
Logo depois corria outro boato: o povo furioso, invadindo o Palácio dos Campos Elíseos, tinha cortado as cabeças do Presidente Carlos de Campos e dos quatro Secretários de Estado, e agora cada uma estava colocada na ponta de uma lança. Outros diziam que as cabeças se encontravam amarradas ou penduradas no alto das grades do portão de entrada, de maneira que gotejavam sangue. O palácio do governo já estava em chamas e inteiramente em ruínas.
Pode-se imaginar como recebiam essas notícias as famílias dos Secretários de Estado! Minha tia, esposa de tio Gabriel, quase desmaiou.
Contava-se também que a torre da Estação da Luz havia caído e que o povo tinha incendiado casas da Avenida Paulista… Os boatos ferviam!
E aquela sociedade, que liderava a vida de São Paulo mas se encontrava em Santos e passava o dia inteiro dançando, jogando roleta, tomando sorvete, dormindo ou passeando na praia, vivia agora um ambiente de abalo tremendo, ouvindo aquelas notícias inimagináveis. Algo mudara, a vida deles tomara um rumo diferente e aquela imperturbabilidade da paz acabara.
Na expectativa
Pouco tempo depois, houve um burburinho durante a noite e todos se levantaram. Minha tia Zili, dona da casa, chamou-me:
– Plinio, acorda, acorda!
Eu saí de um profundo sono, levantei-me também e perguntei:
– O que há?
– Veio a notícia de que os Secretários de Estado não foram mortos, mas conseguiram fugir. O seu tio Gabriel vem de São Paulo! Ele está descendo a serra em automóvel, a toda velocidade, e pode chegar a qualquer momento, para se hospedar conosco.
E logo deram as seguintes recomendações:
– Não digam isso a ninguém, porque a presença dele aqui é secreta. Falem baixo, não façam ruído e não acendam as luzes, pois é possível que a guarnição de Santos tenha aderido aos rebeldes e prenda o tio! Voltem todos para a cama, mas você, Plinio, deve ficar em pé, esperando na rua, para fazer-lhe um sinal quando chegar.
Permaneci do lado de fora. Eram quatro horas da manhã.
Em certo momento para um automóvel junto à porta da casa. Ouvem-se vozes e desce meu tio Gabriel, com alguns homens. Esses últimos despedem-se e logo se dispersam a pé, enquanto o automóvel segue. Ele, com capote fechado, entra na residência, eu vou atrás dele e fecho a porta. A mãe e a esposa dele, com outras pessoas, estão ali para recebê-lo; senta-se, e começa o grande e emocionante relato do que havia acontecido.
A narração de tio Gabriel
Efetivamente, o General Isidoro Dias Lopes16 tinha se revoltado, promovendo em São Paulo uma revolução do Exército, à qual havia aderido parte da Força Pública. Essa revolução era feita com o objetivo de derrubar o governo do Presidente da República Artur Bernardes e, para isso, queriam depor também em São Paulo o Governador do Estado, Carlos de Campos. Creio que a base de operações dos rebeldes foi o quartel do atual Batalhão Rafael Tobias de Aguiar, na Avenida Tiradentes, perto do Convento da Luz e da Estação da Luz.17
O Governador reuniu os Secretários de Estado e o partido do Governo no Palácio dos Campos Elíseos, enquanto o partido da oposição aderiu aos revolucionários.
Meu tio soube da revolução por volta das nove da manhã, vestiu-se calmamente e foi num automóvel do Governo para tentar entrar no palácio, o qual estava sitiado de todos os lados pelas tropas revolucionárias. Contou ele que passou por essas tropas e se instalou lá,18 mas os membros do Governo cercado não tinham defesa adequada e logo tiveram de sair, pois uma bateria de canhões, colocada em lugar de que não me lembro, começou a bombardear o palácio.19 O Governador Carlos de Campos então fugiu para um bairro entre São Paulo e Itaquera, chamado Guaiaúna, a fim de tentar resistir.20
Os Secretários de Estado, cujas pastas não tinham relação com a Segurança Pública nem com as questões de guerra ou de polícia, foram convidados pelo Governo a voltar às respectivas casas, a fim de evitar dificuldades. Todos conseguiram sair do palácio, nenhum deles foi preso e se dispersaram. E, como a pasta de meu tio não era política nem militar, mas administrativa, ele era dos que corriam menor risco. Então, contava ele que saiu a pé do Palácio dos Campos Elíseos, através da Alameda Glete, em direção à Rua das Palmeiras.
Quando passou pela estação de bondes, muitos motorneiros que o conheciam tiraram o gorro e o cumprimentaram. Ele estava à procura de um automóvel para fugir e parou um táxi, cujo chauffeur também tirou a casquete e perguntou:
– Dr. Gabriel, aonde o senhor quer ir?
Meu tio disse:
– Como o senhor sabe quem eu sou?
O chauffeur respondeu:
– Eu sei quem é o senhor e imagino que deve estar precisando de condução. Como costumo dirigir para a senhora sua mãe, o senhor disponha de mim como quiser. Não vou sequer avisar minha família, mas vou aonde o senhor desejar!
Então meu tio mandou avisar-nos – não sei como – que ele iria para Santos. Assim, juntamente com o Secretário da Fazenda,21 desceu ao litoral a t
oda pressa nesse automóvel e desembarcou na casa da irmã para ali se esconder, enquanto o companheiro de fuga se dirigiu a outro local em Santos, onde também permaneceu oculto.
A misteriosa saída do palácio
Quando meu tio contou esses fatos, eu pensei com desconfiança: “Se o palácio estava tão cercado, como ele conseguiu sair? Então, as pessoas saíam comodamente, apesar das trincheiras? Ele entrou em tratativas com o inimigo? O que aconteceu?” E perguntei:
– Como o senhor varou o cerco dos soldados?
Notei uma espécie de gelo em torno de mim, dando a entender que não deveria ter feito aquela pergunta. Ele disse:
– Em certa hora, quando houve uma distração deles, eu passei!
Muitos anos depois, caminhando perto do Palácio dos Campos Elíseos, e conversando com o filho de um ex-Presidente do Estado, que era meu amigo,22 ele me mostrou no jardim do palácio, em certo ponto do muro que dá para a Alameda Glete, uma fonte, cujo ornato – sem grande valor – representava uma mulher com um jarro que deitava água. E disse:
– Você sabe o que é aquilo?
E contou-me que, no fundo dessa fonte, havia um côncavo, que, sendo empurrado, abria uma porta secreta, dando acesso para um longo corredor subterrâneo, que saía do palácio e ia terminar numa casa longínqua. Assim, entendi por onde haviam saído o Presidente de Estado e os quatro Secretários, inclusive meu tio. Um dos mistérios da cidade de São Paulo.
Um desmentido dos boatos
No dia seguinte, os boatos continuavam atingindo vivamente aquelas famílias, que não podiam voltar para São Paulo por causa da revolução, e permaneciam encurraladas em Santos.
Lembro-me, entretanto, que na manhã seguinte encontrei o filho do Secretário da Fazenda, vindo num sentido oposto ao meu. Prestei atenção nele e notei que estava vestido e enfeitado com muito cuidado, e andando com passo especialmente alegre. Via-se que ele sabia onde o pai estava oculto e tinha se levantado cedo para visitá-lo, numa hora em que ninguém desconfiasse, e voltava satisfeitíssimo. E a própria atitude dele já era um desmentido daqueles boatos tão deprimentes.
Plinio de sentinela
Durante outra noite chegaram notícias de que a situação havia piorado, e eu fui despertado de novo:
– Plinio, acorda! Acorda!
– O que há?
– Seu tio tem o maior empenho em saber se os revolucionários entrarão pela Avenida Ana Costa,23 pois, se tiverem notícia de que ele está aqui, vão prendê-lo. Por isso, você precisa ficar do lado de fora do portão, esperando e vigiando a avenida. Se houver sinal de tropas entrando, deve imediatamente avisar seu tio, que embarcará depressa no automóvel que está no fundo da casa, para sair fugindo.
Então, mandaram-me para fora e todo o mundo foi dormir. Sozinho na rua, muito receoso e tendo a memória imbuída de narrações sobre a Revolução Francesa, eu relacionava aquela situação com cenas de massacre de nobres, e imaginava que todos seríamos assassinados… Ora, eu não tinha sequer uma espada!
Parecia-me que o melhor meio de evitar qualquer complicação era fingir que todos estavam dormindo. E pensei: “Pôr um guarda do lado de fora quer dizer: ‘Venha cá, pois aqui está um trânsfuga!’ Se os revolucionários me virem acordado a esta hora – duas ou três da manhã –, com evidente atitude de sentinela, terão desconfiança e perceberão do que se trata! Isto é uma tolice, uma ordem completamente sem propósito. Mas eles, em casa, não raciocinam assim e, se eu lhes disser isso, vão responder que eu tenho medo. Então, o melhor é permanecer aqui, olhando…”
Ao lado da residência de minha tia, numa esquina, existia um grande terreno baldio, todo plantado com capim-gordura. Eu devia ficar em frente a esse terreno, em pé junto ao matagal, a fim de não chamar a atenção para a casa, e vigiando os dois pontos da Avenida Ana Costa por onde poderia vir a tropa.
Noite de drama
Naquela situação em que me encontrava, enquanto toda a família dormia dentro da casa, eu podia ser comparado ao que um salmo descreve de modo lírico e trágico: “sicut passer solitarius in tecto”24 – como pássaro solitário no telhado. Assim estava eu.
Foi então que tomei conhecimento do significado de uma noite de perigo, ao longo da qual podiam acontecer coisas trágicas. Era uma sensação completamente nova para mim, e me interessou sobremaneira, embora eu tivesse muito contentamento se visse que começava a amanhecer.
Em meio ao silêncio, ouviam-se os grilos no capinzal. Na rua muito tranquila da minúscula Santos, de vez em quando uma carroça passava à distância, os guardas noturnos apitavam, um cão ladrava e, ao longe, o rumor do mar, tão agradável quando não há perigo, parecia roncar ameaças. O vento soprava e o capim se inclinava, e eu tinha a impressão de que essas ameaças faziam a erva se encurvar. As estrelas, lá do alto, olhavam neutras o que se passava, sem piedade nem misericórdia, enquanto a própria lua me parecia transmitir um significado e uma mensagem misteriosos, diferentes do normal. Era uma atmosfera de drama.
Falando a sós
Eu olhava para o terreno e tinha desconfiança de que ali pudesse haver soldados revolucionários escondidos, preparados para prender meu tio e talvez a mim. E dizia comigo mesmo: “Se eles são revolucionários autênticos, veem-me e, para eu não transmitir o aviso, dão-me um tiro e caio no chão, na melhor das hipóteses ferido. Que perspectiva desengraçada!”
Eu não queria sacrificar minha vida à toa. E continuava pensando: “Deitei-me tão tranquilo e agora estou aqui, nesta situação… O que vou fazer? Tocar a campainha e dizer que vou entrar porque estou com medo? Não! Vou ser ridicularizado amanhã, de modo horroroso. Já sei! Vou começar a resmungar em voz alta. Lá dentro ouvirão meu resmungo e vão achar que estou muito imprudente. Então vão me chamar para ir dormir, o que é a melhor solução”.
Comecei a resmungar… Foi uma das poucas vezes em minha vida que falei a sós. Dizia em voz alta coisas que davam a entender o mau humor que eu tinha, mas também algo que aplacasse a cólera dos soldados revolucionários, de maneira a eles ouvirem e perceberem que eu não era solidário com o Governo. Uma quantidade de bobagens!
Falei tão alto que os meus parentes recearam que alguém da vizinhança ouvisse. Daí a pouco tempo abriu-se uma janelinha, apareceu uma mãozinha e uma criada disse:
– Olhe, a senhora Ferraz manda dizer que não é preciso ficar mais tempo aí fora, e que pode ir dormir.
Consegui o que desejava. Num abrir e fechar de olhos entrei na casa e dormi largamente!
As causas da Revolução de 1924
Pode-se dizer que a revolução do General Isidoro Dias Lopes foi o primeiro grande abalo contra a República aristocrática dos fazendeiros.
A razão da luta era esta: diziam os revolucionários que as eleições para todos os cargos da República não se faziam honestamente, pois a política era dirigida pelas famílias que possuíam fortuna, os filhos dos Barões do Império, os grandes fazendeiros, os potentados territoriais que adotaram no tempo da República o título de Coronéis da Guarda Nacional; esses mandavam os colonos votarem em quem eles desejavam.
Segundo os revolucionários, a população das cidades também dependia economicamente desses latifundiários, os quais detinham o controle do voto, uma vez que este não era secreto. Então – dizia a oposição – as eleições constituíam uma farsa e era preciso torná-las autênticas, para que o povo pudesse derrubar o governo da aristocracia rural, a qual se servia dessas eleições como ocasião para fingir que existia uma democracia, quando, na realidade, o que havia era um resto de monarquia com aparências de república.
Afirmavam eles que a República era de papel: estava escrita nas leis, mas não existia nos fatos. Portanto, era necessário democratizar o Brasil, instalar uma forma de governo com voto secreto, em que os fazendeiros não pudessem controlar o voto do colono; em que os sindicatos mobilizassem o operariado contra o começo de indústria existente em São Paulo, para impor uma forma mais democrática de organização econômica, uma República do povo, e assim o País seria verdadeiramente republicano.
Até que ponto as eleições eram falseadas e os fazendeiros intervinham no voto dos colonos? Eu era demasiado moço para formar uma opinião a respeito do assunto, mas tenho a impressão de que essas afirmações eram verdadeiras. De tal modo que, antes desses fatos, eu analisava a situação do País e pensava com os meus botões: “Há de acontecer algo que nos apanhará de surpresa”.
Qual não foi a minha impressão quando explodiu a revolução em julho de 1924!
O que aconteceu, então? Como terminou essa revolução?
A reação do Governo Federal
A cidade de São Paulo esteve tomada pelos militares revoltados, chefiados pelo General Isidoro Dias Lopes, durante uns vinte dias.25
O Presidente da República Artur Bernardes mandou tropas federais, as quais acorreram em quantidade do Rio de Janeiro, apoiadas por todos os coronéis paulistas, e se encontraram com o Governador Carlos de Campos em Guaiaúna, onde lhe deram garantias. Dessa região começaram a bombardear São Paulo com tiros de canhão26 e assim tornaram inútil a ação dos revolucionários, os quais, além do mais, não eram populares, pois o povo não entendia bem as razões da revolta.
Por outro lado, o Prefeito, Firmiano Pinto,27 ao invés de retirar-se de São Paulo com o Presidente do Estado, permaneceu tutelando os direitos da cidade. Posteriormente, comentou-se inclusive que ele havia sido traidor, em acordo com os revolucionários.
Por fim, em determinado momento chegou a notícia sensacional: sem que o Governo percebesse, os revolucionários haviam fugido. As tropas federais tomaram conta de São Paulo e Carlos de Campos voltou.
Modorra e calmaria em meio à revolução
Terminada a revolução, voltamos a São Paulo. Como todos os que estavam em Santos naqueles dias, eu trazia um “arsenal” de sensações e impressões, além de uma noção nova sobre a realidade.
Perto da Estação da Luz e em todas as ruas de acesso ao palácio encontramos trincheiras,28 aliás, muito ordinárias. Uma delas estava aberta bem em frente à residência de minha avó, na esquina da Alameda Barão de Limeira com a Alameda Glete. Ou seja, quase houve tiroteio abrangendo a nossa casa. Fiquei encantado de ver que aquela atmosfera anterior de repouso e de grande calmaria fora rasgada e perturbada por alguns perigos29 e, ao chegar, pensei seriamente que veria a casa crivada de balas. Imaginava que os soldados tivessem querido atacar as residências para se apoderarem de víveres, e houvessem depredado os móveis por ódio. No fundo, o que eu desejava era um meio de sair de dentro da modorra.
A casa estava numa ordem perfeita. Do lado de fora, não havia sinal de uma bala. E as criadas, tão tranquilas! Minha mãe e minha avó, ao chegarem, começaram a pedir informações sobre os acontecimentos e, em certo momento, com pasmo para mim, ouvi vovó perguntar à governanta da criadagem, uma senhora nipo-brasileira, muito capaz e esperta, chamada de sia Maria:30
– Vocês ofereceram comida aos soldados?
– Ah, sim, senhora! Todos os dias, de manhã e à noite, nós levávamos bandejas com toda espécie de alimentos e cafezinho para eles, e tornaram-se muito amigos nossos.
Somente por pena dos soldados entrincheirados, várias criadas do bairro fizeram o mesmo, com possibilidade de serem atingidas por tiros. Ora, não houve disparos e os militares foram muito amáveis. Por coincidência, eram soldados federais, mas, se fossem tropas da revolução, as próprias criadas de nossa casa – onde morava a mãe de um membro do Governo deposto – iriam servi-los do mesmo modo, e eles seriam igualmente gentis. Naquele ambiente, até as revoluções eram pacíficas, feitas com bonomia…
Não comentei nada, mas pensei: “Aí está! No meio da confusão, a calmaria!” E cheguei à conclusão: “Há uma densidade de modorra aqui, que nada consegue romper por ora, pois resiste a qualquer impacto”.
A retirada dos rebeldes
A fogueira da Revolução de 1924, fortemente burguesa-liberal, parecia extinta. Mas dela se desprendeu uma centelha e começou o mais prodigioso show revolucionário da história do Brasil.
Quando os rebeldes perceberam que estavam cercados e não poderiam mais se sustentar em São Paulo, apoderaram-se de muitos trens da Inglesa31 e da São Paulo-Jundiaí, nas estações da Luz, Sorocabana e do Norte, os quais estavam imobilizados. Formaram várias composições ferroviárias e embarcaram silenciosamente, sem as forças do Governo perceberem, enchendo gôndolas inteiras com tropas armadas, levando canhões à vista nos vagões, obuses, todo tipo de armamentos e munições, víveres e tudo quanto fosse necessário para lutar, inclusive dinheiro tirado dos cofres públicos. Segundo os jornais da época, foi uma retirada de eficácia modelar.32
Partiram sem rumo definido, para o interior do Estado de São Paulo, numa imensa viagem de tempo indeterminado, a fim de continuar a resistência. Devido à idade, o General Isidoro Dias Lopes não os acompanhou, mas fugiu para a Argentina e não me lembro o que foi feito dele. Saiu do quadro e a poeira da História o devorou.
A Coluna Prestes
E a figura de maior destaque nessa marcha, entre os combatentes revolucionários, foi um jovem tenente, insolente e facinoroso, que haveria de ter grande renome: Luís Carlos Prestes, o qual ainda não se dizia comunista, mas seria conhecido depois como um dos chefes do Partido Comunista Brasileiro.33
Prestes tomou o comando de um setor dos rebeldes e formou uma coluna de exército, que passou a ser chamada de Coluna Prestes e começou a percorrer todas as estradas de ferro, numa enorme volta por todo o território nacional, do Rio Grande do Sul até o nordeste. Nos locais do interior onde paravam, os destacamentos militares eram insignificantes e fugiam diante deles. Então os revolucionários se abasteciam do que precisavam, embarcavam em outros trens que requisitavam e continuavam a viagem.
Em várias ocasiões foram perseguidos – preguiçosamente – por tropas do Governo. Havia escaramuças em que os revolucionários sempre venciam, embora muito inferiores em número, e o exército nunca conseguia capturá-los, de maneira que eles iam avançando. Ora, para esmagar essa guerrilha bastaria derrubar uma ponte, e assim acuá-los e liquidá-los. Nunca acontecia isso com a Coluna Prestes!
Essa marcha percorreu o Brasil durante alguns anos34 e, ao longo desse tempo, a fama do nome de Luís Carlos Prestes foi crescendo e consolidando-se. Eu lia as notícias dos jornais e notava que ele era elogiado como personagem muito interessante, pois conseguia driblar o Exército Nacional. Assim, apesar de os revolucionários não obterem muitos partidários, a grande caravana ferroviária tomou aos olhos do povo o caráter de uma verdadeira odisseia, um feito heroico de tempos mitológicos. Os militares revoltados eram vistos como a mocidade que representava o dia de amanhã, como um grupo de bravos inconformados, brilhantes e invencíveis, inspirados por ideias avançadas e terríveis, que lutavam exprimindo e polarizando a indignação das massas sofredoras. Verdadeiros anjos do povo, com o prestígio de cavaleiros andantes.
Entretanto, tratava-se de uma simples excursão, durante a qual eles paravam onde queriam e, num país em que a vida era baratíssima, compravam ou roubavam, às vezes nutrindo-se com o que lhes davam as populações entusiasmadas. Faziam comícios de propaganda para tentar levantar a revolução no Brasil, com manifestos demagógicos sobre voto secreto, liberdade, igualdade política e abolição do regime de coronelato, e alguns já falavam de distribuição de terras, com vagas palavras de igualdade social. Depois continuavam a viagem em trem, sem encontrar resistência.
Por fim, a marcha dos revolucionários foi acabar pela zona das fronteiras com a Argentina, Paraguai e outros países, nos quais eles se exilaram. Era uma aparente derrota, depois da qual tudo voltou à calma, mas a odisseia da Coluna Prestes havia sido o primeiro sintoma e a má semente do câncer comunista no organismo nacional.
Resultado da revolução: difusão de mitos
De modo muito jeitoso, a Revolução de 1924 abalou e sacudiu a estabilidade do País, pois deu à população brasileira, em geral, a impressão da proximidade do perigo comunista, o que antigamente era uma realidade existente apenas na Rússia.
Por outro lado, o interior pôde comprovar a debilidade do regime do coronelato, impotente para acabar com essa guerrilha, o que levava a opinião pública a aceitar que uma modificação seria legítima, necessária e inevitável.
Ao mesmo tempo, para minar a ordem social vigente, começaram a ser espalhadas certas ideias que se tornaram verdadeiros mitos, como este: “Nosso regime é ilegítimo, pois há uma fraude à democracia e somos uma república falsificada!” Ou também: “A nação inteira está indignada com a podridão do regime”.
Amolecimento das resistências: ceder para não perder
O corpo geral dos coronéis, muito amedrontado, passou a ter a convicção de sua própria fraqueza e, com a falta de princípios e de ideologia que já caracterizava a época, começou a germinar neles a ideia de ceder para não perder, e de aceitar uma composição.
Assim, o show da Coluna Prestes não obteve uma vitória militar, mas amoleceu nas classes dirigentes o desejo de resistência, tirou-lhes a vontade de lutar e convenceu-as da impossibilidade de sua própria vitória.
E, por essa forma, aquilo que começara numa casinha da Rua Coronel José Euzébio passava a ser um perigo para o País inteiro.35
Otimismo da aristocracia
No entanto, as classes ricas de São Paulo voltaram “aos seus chinelos”, continuaram a sua existência exatamente como antes da revolução, com as mesmas distrações de sempre, e quase não se falava mais do acontecido.
Às vezes dava-se algo curioso. Em certos dias, à tardinha, ouvia-se ao longe um ruído semelhante ao de uma metralhadora. E sempre uma ou outra pessoa perguntava:
– O que é esse barulho?
E em todas as ocasiões havia um otimista para dar risada e dizer:
– Você está pensando que é o Prestes? Pelo jornal de hoje cedo, ele está no Piauí. Acha que os tiros dele repercutem aqui? Não há perigo nenhum! Devem estar soltando fogos de artifício na quermesse de uma paróquia, ou na inauguração de um loteamento em alguma zona!
Assim, eu via a despreocupação de todo o mundo, em relação àquilo que tinha sido um primeiro estalido do chão debaixo dos pés deles, prenúncio do grande abalo que viria.36
Um estado de espírito que preparava grandes defecções
Lembro-me, por exemplo, da enorme recepção que foi preparada quando chegou a São Paulo uma equipe de futebol, da qual fazia parte um jogador teuto-brasileiro, o qual tinha um nome alemão muito bonito: chamava-se Artur Friedenreich.37
Ele andava ganhando campeonatos insignes para o seu clube em vários lugares, e os jornais publicavam muitas notícias das vitórias dele, o que fazia vibrar os meus colegas de estudo. Eu também, levado pelo desejo de ver algo que saísse dos padrões medíocres de todos os dias, fui assistir a essa recepção. Estávamos numa época em que ainda se apreciava o cerimonial e, por isso, ali se encontravam presentes autoridades civis e militares, inclusive o Governador do Estado e o Prefeito, acompanhados de uma multidão que enchia as ruas, da Estação da Luz à Sorocabana, num grande entusiasmo.
Ora, eu percebi que tudo aquilo fazia parte dessa grande despreocupação geral, mas permanecia quieto, pois se o dissesse haveria uma ofensiva maciça contra mim.
E na festa de Ano-Bom no Trianon em 1924 – primeiro ano da “era Prestes” – eu olhava as pessoas e pensava: “Essa revolução era exatamente o perigo de que precisava o País, para quebrar a modorra! Mas agora eles não compreendem que começou outra fase histórica, e que estão com uma raposa devoradora atracada na perna, começando a comer-lhes o organismo?”
No fundo, as almas deles estavam bipartidas: viam o perigo, mas tinham um imperativo de sentir a vida como se ele não existisse. Era um estado de espírito contraditório, que os preparava para grandes defecções.
1 Dr. Gabriel Ribeiro dos Santos.
2 No Diário Oficial do dia 29 de fevereiro de 1924, p. 34, lê-se a informação: “Resultado das eleições […] para deputados federais: Dr. Joaquim Augusto de Barros Penteado, quatrocentos e cinquenta e oito; Dr. César de Lacerda Vergueiro, quatrocentos e cinquenta e oito; Dr. Gabriel Ribeiro dos Santos, quatrocentos e quarenta e sete”.
3 Em francês: bom conversador.
4 Dr. Gabriel assumiu o cargo de Secretário da Agricultura no dia 1º de maio de 1924, data em que Plinio tinha de fato quinze anos.
5 Em francês: lisonjeado.
6 A Bessarábia é uma região da Europa Oriental, situada em territórios das atuais Ucrânia e Moldávia. Na década de 1920 encontrava-se, de fato, sob a dependência da Romênia.
7 O mês de julho.
8 Carlos de Campos (1866-1927).
9 Comandante da 2ª Região Militar, abarcando os Estados de São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
10 Em francês: Antigo Regime. Assim é chamado o período da história da França que se iniciou em princípios do século XVII e foi extinto em 1789, com a Revolução Francesa. Caracterizou-se, naquela sociedade, por um requinte de bom gosto e pela elevação do convívio humano.
11 A presente anotação é do ano de 1983.
12 Na manhã do dia 5 de julho de 1924.
13 Em francês: arrebatamento.
14 As razões que levavam o jovem Plinio a se sentir exilado no mundo dos anos vinte, profundamente influenciado por tendências revolucionárias, são longamente explicadas por ele em anotações já publicadas. Cf. Volume II desta coleção, p. 71 ss.
15 É verdade que os canhões dos rebeldes situados na Estação da Estrada de Ferro Sorocabana (hoje Centro Cultural Júlio Prestes) tinham como alvo possível a torre do Santuário do Coração de Jesus. Cf. Sesso Júnior, Geraldo. Retalhos da Velha São Paulo. São Paulo: OESP Gráfica, 1987, p. 313.
16 Isidoro Dias Lopes (1865-1949) era General reformado da reserva.
17 Efetivamente, a sedição teve como base de operações o então quartel do Regimento de Cavalaria da Força Pública, cujo comando foi assumido pelo Major Miguel Costa, argentino naturalizado no Brasil. Cf. Sesso Júnior, Geraldo. Op. cit., p. 307.
18 O Correio Paulistano de 6 de julho de 1924 assim noticiou: “Acorreram ao Palácio dos Campos Elíseos, de armas em punho, para qualquer eventualidade, as seguintes pessoas: os Srs. Dr. Mário Tavares, Secretário da Fazenda; Dr. Gabriel Ribeiro dos Santos, Secretário da Agricultura…”
19 De fato, na noite do dia 8 de julho, os canhões colocados na Estação da Sorocabana bombardearam o Palácio dos Campos Elíseos. Cf. Sesso Júnior, Geraldo. Op. cit., p. 313.
20 A sede do Governo foi instalada de modo provisório num vagão de trem, na Estação Ferroviária de Guaiaúna.
21 Dr. Mário Tavares (1874-1958).
22 Trata-se de Vítor Luís, filho do Presidente Washington Luís Pereira de Sousa e amigo de Plinio. Cf. Volume III desta coleção, p. 117.
23 Era plano dos revolucionários enviar dois destacamentos à cidade de Santos, a caminho da Capital, Rio de Janeiro. Cf. Calmon, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959, v. VI, p. 2181.
24 Sl 101, 8.
25 A ocupação durou vinte e três dias.
26 A artilharia governista bombardeou São Paulo a partir de vários pontos, em especial dos bairros da Penha e do Ipiranga, ocasionando numerosas mortes e destruições. Na noite do dia 16 de julho começou um verdadeiro êxodo da população, rumo ao interior do Estado, num total de aproximadamente 300.000 pessoas. Cf. Sesso Júnior, Geraldo. Op. cit., p. 331 ss.
27 Firmiano de Morais Pinto (1861-1938).
28 De fato, na noite do dia 5 de julho, as forças governistas abriram trincheiras na região vizinha ao Palácio dos Campos Elíseos. Cf. Sesso Júnior, Geraldo. Op., cit. p. 309.
29 Os desejos de Plinio na linha de uma grande mudança, que pusesse fim às desordens de seu tempo, constam em anotações já publicadas (Cf. Volume II desta coleção, p. 544 ss.). Obviamente, as expressões dele acima registradas não foram motivadas por nenhum sentimento de simpatia em relação às ações praticadas pelos rebeldes de 1924, mas apenas pelo seu desejo de evitar maiores males para a sociedade na qual vivia.
30 Abreviação de “senhora Maria”, segundo o costume da época. Em anteriores publicações, o nome da governanta foi mencionado equivocadamente como “Samaria”, devido a certo erro de datilografia, cometido na transcrição de algumas conversas do Autor. Cf. Volume I desta coleção, p. 330.
31 A companhia ferroviária São Paulo Railway.
32 Na noite do dia 27 de julho.
33 Luís Carlos Prestes foi aclamado presidente de honra da Aliança Nacional Libertadora (ANL), e ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1934, sendo Secretário-Geral deste entre os anos de 1943 e 1980.
34 Até o ano de 1927.
35 O Autor se refere à primeira noção que teve sobre a ação do comunismo no Brasil, ao saber do funcionamento do Partido Comunista numa pequena casa da rua acima mencionada. Cf. Volume III desta coleção, pp. 636-637.
36 A Revolução de 1930.
37 A recepção em São Paulo do jogador Artur Friedenreich foi no dia 14 de maio de 1925, após uma excursão pela Europa.
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