Saudades do Natal
Talvez de nada em minha infância eu tenha tantas saudades quanto da graça do Natal. O que houve de mais maravilhoso para mim nessa idade ficou na minha memória representado por essa festa. A alegria do Natal! Era intensa, calma, doce, elevada, “ordenativa” e “equilibrante”!
A alegria prévia ao Natal
Quando se aproximava o Natal, tudo era tomado por certa paz e recolhimento. Era algo que minha alma sentia, como um sussurro vindo de muito alto, mais eloqüente do que todos os discursos, que me convidava a não prestar atenção em outras coisas. Parecia-me que um princípio de pureza, de limpidez, de honestidade, de bondade e de candura baixava sobre a terra e alterava as almas de todos os homens: a maldade humana se encolhia e os anjos abriam as asas. Eu realmente tinha impressão de que eles desciam à terra…
As pessoas começavam a ser mais benévolas, fazendo pequenos favores umas para as outras; e até as crianças egoístas ou birrentas emprestavam de bom grado os seus brinquedos… Os mais velhos aproximavam-se de nós, crianças, como se quisessem haurir em nossos olhos a recordação do que foram os Natais deles… Até mesmo os parentes ateus olhavam-nos com certo respeito e ternura, vendo repetir-se em nós uma alegria que eles, pela impiedade, talvez houvessem perdido. E eu, então, imaginava que eles participavam do mesmo júbilo natalino, pois nos cumprimentavam com mais afabilidade do que o normal e cediam aos nossos pequenos caprichos.
Já nos dez ou quinze dias antecedentes estabelecia-se uma expectativa, e a alegria começava a baixar sobre a pequena cidade de São Paulo, impregnando o ambiente em todos os recantos. Para as crianças, esse sentimento não era em nada teórico: tratava-se ao mesmo tempo da ansiedade pela vinda do Menino Jesus, mas também da perspectiva da festa do Natal, nos seus aspectos humanos e terrenos. Isso fazia parte das harmonias e delicadezas de alma que só a Igreja Católica é capaz de transmitir.
Tratava-se de uma grande festa, cheia de piedade e respeito, na qual vinham especiais graças de Deus.
Lanche na Casa Mappin
As mães iam com os filhos às casas de brinquedos e a alguma sorveteria ou confeitaria, para terem a fruição do Natal. Mamãe levava as três crianças ao salão de chá da Casa Mappin, o que constituía para mim uma das partes culminantes da preparação do Natal!
Nessas ocasiões eu era obrigado a usar roupa de marinheiro, enfeitada com gola especial e adornada com veludo, do que aliás eu não gostava, pois me atrapalhava os movimentos. Eu me vestia bem para não ter de receber a crítica de estar mal trajado e, assim, não ter amolações… Para tomar o lanche do Mappin, eu me punha de boa vontade nos veludos!
Essa casa era uma excelente loja inglesa de objetos domésticos. Situada na parte alta do centro da cidade, na rua 15 de Novembro, ocupava todo o espaço entre duas ruas e tinha os seus fundos numa colina próxima à Várzea do Carmo, muito bonita naquele tempo. No andar mais alto existia um grande salão de chá, onde normalmente havia músicos tocando piano, violino e outros instrumentos.
Minha mãe costumava escolher uma mesa no fundo, perto das grandes janelas abertas, onde havia uma boa visão e gozava-se de um forte vento, como a Fräulein e eu gostávamos. Então, naquele salão enorme, com todas as damas muito bem vestidas, usando jóias e chapéus com grandes adornos, e com a meninada envergando também roupas finas, criava-se um bom ambiente de luxo, ventilação e comedoria.
Vento, chá, sanduíches, torradas, chocolate… Eu me regalava, por ser entusiasta do luxo, da pompa, da gala e dos ornamentos e objetos finos, pois parecia-me enobrecerem a própria alma do homem. Por outro lado, eu era um gastrônomo de primeira força e tinha um entusiasmo caloroso, quase “doutrinário”, pela ventania. E tudo isso, na companhia de mamãe, era para mim o que havia de mais delicioso!
Parecia-me que a satisfação do meu corpo, em contato com aquela aragem, era semelhante à alegria de minha alma ao receber as graças do Natal que se aproximava. E eu pensava: “É bem verdade: o Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo está perto! Daqui a pouco se comemorará que Ele nasceu numa manjedoura, da Virgem Maria, sob o olhar de São José. Ó Beleza! Ele está para chegar!”.
O lanche, ao estilo inglês, constava de chá com leite, bolos, sorvetes, sanduíches com presunto estrangeiro e algo muito simples de que eu gostava enormemente: torradas com manteiga derretida. A conversa durante o chá era comum e familiar, mas tínhamos proibição de falar sobre as pessoas presentes no salão, para evitar que fizéssemos observações apontando com o dedo e rindo… Além do mais, sempre tive o costume de falar alto e os vizinhos ouviam, de maneira que, pela expressão da Fräulein Mathilde: “Es ist verboten!” [é proibido!], estávamos severamente impedidos de fazer qualquer observação indiscreta. Eu era obrigado a ficar quieto, mas tinha muita vontade de comentar o que via…
As casas de brinquedos
Saindo dali, íamos dar um giro pelas lojas de brinquedos a fim de escolhermos os presentes natalinos, acompanhados por mamãe e pela Fräulein, para ajudar-nos a não pedirmos bobagens.
A mesma alegria se via em todas as mães, que levavam seus filhos de um lado para outro. As ruas do centro da cidade se enchiam de crianças dando risadas, todas enfeitadas como nós e engalanadas com trajes pomposos, algumas tendo os braços carregados de presentes e a fisionomia reluzente de satisfação. Uma senhora piscava para outra, como se dissesse: “Mas que menino engraçadinho!”. E a outra mãe ficava toda contente… Elas próprias se vestiam melhor nesses dias, os restaurantes regurgitavam, ouviam-se pessoas cantando e músicas natalinas tocadas por gramofones nas lojas. O centro inteiro cantava, ornamentado para o Natal, e esse impulso festivo se comunicava por toda a cidade. Sentia-se nas ruas o odor do pão de mel…
São Paulo era pequena e existiam nela poucas lojas de brinquedos, que expunham excelentes objetos importados. Uma era a Casa Lebre, de portugueses – na confluência da rua 15 de Novembro com a rua Direita –, onde se vendiam brinquedos bons e baratos. A segunda era a Maurice Grumbach e a terceira era uma loja alemã chamada Casa Fuchs. Esta possuía uma grande fachada de dois ou três andares na rua Líbero Badaró, quase no largo São Bento, e seus fundos chegavam até o Anhangabaú. Por último havia a Casa Yankee, norte-americana.
Visitas à Casa Fuchs
As visitas à Casa Fuchs eram para mim um ponto alto da vida! Mamãe ficava prestando atenção e vendo o que nós desejávamos ou, então, perguntava:
– O que vocês querem que São Nicolau lhes traga?
Nós escolhíamos os brinquedos e eu tinha a convicção de que São Nicolau traria o que eu desejasse…
Eu gostava de ir à Casa Lebre, mas a minha preferência estava decididamente na Casa Fuchs. Lembro-me ainda, perfeitamente, das divisões internas dessa loja, dos degraus e dos balcões. Vendiam ali objetos alemães, evidentemente, mas também apareciam pelo meio, de vez em quando, brinquedos franceses. Essa junção franco-alemã me encantava! E na época do Natal, todo o estabelecimento era enfeitado com ciprestes e enormes guirlandas, feitas com ramos de pinheiro e frutinhas coloridas. Repicavam os sininhos das casas de bonecas e as vitrolas tocavam bonitas canções natalinas alemãs, como O Tannenbaum.
Havia ali trenzinhos elétricos e outros objetos que me deixavam entusiasmado! Também expunham na loja pães de mel de vários gostos e tamanhos, que eu admirava ainda mais do que os brinquedos, tendo vontade de comprá-los todos, para comê-los ali mesmo…
Nessas ocasiões, o ambiente da Casa Fuchs parecia-me o resumo de todas as delícias da vida. Tudo quanto havia de agradável na existência cotidiana era elevado a um píncaro, e eu ficava cheio de contentamento e de bem-estar, sem nenhuma vontade de sair dali. Não comentava muito essa alegria e ficava quieto, pois percebia que as outras crianças não tinham tanto entusiasmo pelos brinquedos quanto eu. Algumas delas olhavam imediatamente o preço dos objetos e queriam o mais caro, por acharem que ele continha um deleite maior. Eu, entretanto, nem me preocupava com o valor dos brinquedos. Existiam alguns muito caros que eu desejava enfaticamente, mas também outros bem baratos que eu pedia igualmente.
Depois, voltando à minha residência, de vez em quando me lembrava da Casa Fuchs e desejava muito retornar a ela, mas os meus pais não me deixariam e diriam: “Já está escolhido o seu brinquedo. O que você vai fazer ali?”. E ainda passaria pelo vexame de apresentar um pedido sem propósito.
As massas coloridas da Casa Yankee
Muitos meninos gostavam da Casa Yankee, por haver ali bonecos mecânicos e brinquedos semelhantes, mas ela não me atraía como as outras lojas. Esses objetos não eram feitos para mim! Eu os estragava sem querer.
Entretanto, vendiam ali umas caixas com certa massa de quatro ou cinco cores, com a qual as crianças podiam construir e modelar pequenas casas, barragens e outras coisas idealizadas por elas mesmas.
Aquele brinquedo era muito barato e, às vezes, eu o escolhia, entre outros. Então minha irmã dizia:
– Para que essa bobagem?
Eu respondia:
– Eu quero!
Essa substância tinha um odor particular. Mas eu achava que, sob certo aspecto, a massa cheirava agradavelmente e tinha o odor e a consistência próprios às cores que ela apresentava.
É preciso dizer que as minhas construções eram as mais esmolambadas e feias possíveis, pois eu não tinha habilidade manual para executar o que estava em minha mente, mas eu brincava muito com essa massa e gostava vivamente de manuseá-la, para “relacionar-me” com as cores.
E aquele odor, somado ao agradável perfume dos galhos de pinheiro, era para mim uma espécie de síntese de todos os brinquedos e permaneceu na minha memória como o aroma característico e simbólico da época de Natal. Tudo isso me dava um prazer enfático e um enorme e inocente gosto de viver!
Preparando o Natal das crianças
Minha mãe era o centro da família no que diz respeito ao trato com os pequenos, pois possuía um extraordinário jeito para isso e tinha um grande carinho, cujo transbordamento agradava enormemente à criançada. Os seus filhos eram, naturalmente, os primeiros beneficiados, mas também os sobrinhos, que eram muito numerosos. Se ela quisesse, teria dirigido um colégio na perfeição, de modo muito calmo, suave e delicado.
Sendo mamãe a animadora do Natal, este era em certo sentido a festa dela.
Ela aproveitou um hábito de sua época e do seu ambiente, mas, ao mesmo tempo, colocou-se em reação contra ele. Estávamos num período de especial prosperidade em São Paulo e as famílias organizavam grandes festas natalinas, dando bons presentes aos filhos e preparando árvores de Natal com toda espécie de ornamentos e inúmeros comestíveis. Entretanto, aquilo visava o gozo da vida para as crianças, e o aspecto religioso, quando existia, era vago.
Mamãe aproveitava, então, a festa da criançada, mas acrescentava nela uma nota de piedade muito acentuada, de maneira a dar-nos a idéia da alegria boa, lícita, honesta e terrena, santificada pela justaposição da sacralidade.
Aqueles eram dias de grande intimidade com Nosso Senhor Jesus Cristo Menino. À semelhança d’Ele, cujo nascimento foi oculto aos olhos do mundo, também essa festa era preparada no mistério, para os pequenos. Três ou quatro dias antes do Natal, os adultos confabulavam entre si e combinavam o tamanho da árvore, os enfeites a serem escolhidos, os doces a serem servidos, o que haveria de diferente em relação ao ano anterior e a colocação do presépio aos pés do pinheiro… Não podíamos assistir a essas conversas, mas tentávamos escutar uma palavra ou outra e sabíamos ser destinado a nós tudo quanto eles fariam.
Chegavam à nossa casa grandes caixas provenientes das lojas, que os mais velhos recebiam e “confiscavam” imediatamente, para que as crianças não as pudessem abrir. Eram, evidentemente, presentes e enfeites para a árvore de Natal… Víamos também as senhoras saírem sigilosamente e voltarem carregadas de pacotes. Às vezes ouvíamos furtivamente alguma coisa sobre os preparativos e começavam os telefonemas entre nós e nossos primos, contando as últimas novidades importantes:
– Olha! Tem tal enfeite!
Nessa quadra bendita da vida, o boato feliz tinha dinamismo e se prolongava até a noite de Natal…
O dia 24 de dezembro amanhecia completamente diferente dos outros. Já de manhã eram distribuídas algumas iguarias, deixando-se entretanto as mais gostosas para a noite. Sentia-se muito o perfume do pão de mel – Honigbrot, segundo a expressão da Fräulein – que eu comia em quantidade, com manteiga.
Mamãe comprava, nos arredores de São Paulo, um pinheiro que coubesse na sala dos brinquedos e, ajudada pela Fräulein Mathilde, decorava-o com alguma novidade a cada ano: uma estrela muito grande e bonita, um anjo de papel colado num círculo dourado, azul ou verde escuro. Toda espécie de ornamentos! E como a árvore chegava até o teto – às vezes nem cabia e inclinava-se um pouco –, tornava-se necessário o uso de uma escadinha para prepará-la. As crianças eram proibidas de entrar durante os preparativos, sendo relegadas para o jardim, quando o tempo permitia.
Pelas cinco ou seis horas da tarde, o movimento nas ruas começava a diminuir. Acendiam-se todas as luzes das casas do bairro, o que lhes dava um ar mais festivo e, às vezes, as salas de cerimônia – que permaneciam habitualmente fechadas nos dias comuns – tinham as suas janelas largamente abertas. Viam-se árvores de Natal erguidas lá e acolá.
À noite, chegavam à nossa casa todos os primos e primas, e então éramos aglutinados numa saleta intensamente iluminada. Eram umas vinte crianças, dirigindo-se umas às outras com maneiras mais respeitosas e elegantes do que o normal, pois estavam em traje de gala. Entretanto, não prestávamos muita atenção na conversa, pois ouvíamos cochichos dos mais velhos, víamos misteriosas bandejas descendo e ficávamos assanhados, querendo saber o que acontecia!
Afinal, por volta das nove horas, aparecia mamãe anunciando que a festa de Natal ia começar.
Stille Nacht, Heilige Nacht…
Então, dávamo-nos as mãos e começávamos a entoar cânticos natalinos, em geral alemães – pela influência da nossa Fräulein e da governanta de nossos primos, cuja língua todos falávamos –, sobretudo uma canção que em português se traduz por Noite Feliz, mas cuja letra em alemão diz assim:
“Stille Nacht, heilige Nacht.
Alles schläft, einsam wacht
nur das traute hoch heilige Paar”.
[Noite silenciosa, noite santa.
Tudo dorme; só está acordado
o respeitável e altamente santo Casal.]
Descíamos pela grande escada de mármore, levando a imagem do Menino Jesus com os bracinhos abertos, a qual era adornada por mamãe todos os anos com um vestidinho diferente. Dávamos uma pequena volta pelo jardim, cantando; e, quando chegávamos à sala dos brinquedos, a porta ainda estava fechada… Então começavam as pancadas:
– Quando fica pronto? Façam o favor, abram logo!
O que era seguido de um silêncio cheio de promessas, do lado de dentro…
Afinal abriam e nós entrávamos, encontrando a sala completamente transformada! Para mim, aquilo era um enorme deleite: a árvore de Natal, preparada ao modo alemão, tinha na ponta uma estrela dourada ou prateada, com um anjo. Nos galhos havia figurinhas de papel representando anjos e santos, velas acesas, bolas douradas, vermelhas, azuis, prateadas e verdes, com tonalidades muito vivas. Eu me encantava com o pinheiro e achava-o lindo, mas, como eu era desejoso de uma perfeição maior, não existente nas coisas terrenas, via a árvore de Natal como a figura de uma planta que poderia existir no Paraíso Terrestre.
Parecia-me que realçava muito o encanto da árvore o fato de ela ter balas e bombons pendentes no meio dos enfeites. Quiçá, mamãe os colocasse por conhecer o meu apetite inesgotável. Nos quatro cantos da sala havia mesas cheias de doces e salgados, uma das quais era reservada para os refrescos de jabuticaba e outras frutas, preparados em casa. Eram bebidas do Brasil antigo, naturalmente não alcoólicas. Também havia pequenos presentes para serem distribuídos.
Sem deixar de cantar, formávamos um círculo, girando em torno da árvore, ao pé da qual estava o presépio com imagens, figuras de pastores e, naturalmente, o burrinho e o boi, que não podiam faltar. A dois passos do pinheiro estava mamãe, encantada com a inocência infantil e sorrindo para as crianças que chegavam. Ela parecia ter no coração uma árvore de Natal para cada uma, muito especialmente para duas delas… E eu pensava: “Ela e o pinheiro são parecidos…”. Muito tempo depois, compreendi que ela possuía na alma, por assim dizer, mil enfeites e mil velinhas.
Nessa hora sentiam-se dois aromas muito agradáveis: o do chocolate, que começava a encher as xícaras, e o do pinheiro, um pouco queimado pelas velas na ponta de alguns galhos, que ficou caracterizado para mim como um dos perfumes típicos do Natal.
Havia uma recomendação formal: permanecer com as mãos dadas e não comer nem beber nada antes de ter rezado. Mas eu dava um olhar furtivo às mesas com toda espécie de guloseimas, para ver o que tinham, sem ousar desviar-me do meu lugar, pois mamãe o notaria logo e não o toleraria! Creio que eu era um dos primeiros a dar sinais de cansaço em certo momento, o que ela – conhecendo seu filho como a palma da mão – entendia bem e mandava parar a roda. Entretanto, ela nunca deixava entender que o fazia por minha causa, para não me dar a idéia de estar cumprindo todas as minhas vontades…
Rezando aos pés do presépio
Começava propriamente a comemoração do Natal. Mamãe se ajoelhava com todas as crianças aos pés do presépio, colocava nele o Menino Jesus e rezava várias orações um tanto longas, com muita suavidade, piedade e seriedade. Tenho a impressão de que ela compunha as preces naquela hora, dedicando-as ao Menino, a Nossa Senhora e a São José, e pedindo estas ou aquelas graças, orações que eram repetidas pela meninada. Ninguém se atrevia a dar um resmungo porque a oração estivesse demorando demais. Nenhuma criança se levantaria durante esse tempo, para ir correndo pegar um chocolate e comê-lo!
Durante a comemoração toda a ordem era mantida pela simples presença de mamãe, de um modo irrepreensível. Mas, por via das dúvidas, as governantas vigiavam e não fariam a mínima cerimônia em reprimir severamente a criança que desobedecesse. Entretanto, durante as orações só a nossa Fräulein ficava conosco. Ela era católica e se ajoelhava também, mas a outra era protestante e retirava-se para não tomar parte nas orações.
Depois que mamãe se levantava, nós nos segurávamos pelas mãos novamente e dávamos mais três ou quatro voltas em torno do pinheiro, cantando.
A ceia de Natal
Finalmente mamãe nos deixava em liberdade. As meninas começavam a conversar e, para os meninos, era a hora do avanço nos vários ornatos comestíveis da árvore de Natal e nas mesas dos cantos da sala! A criançada tinha um apetite feroz, e eu era um dos capitães da comilança. Não duvido muito de que eu fosse, em geral, o primeiro a comer, pois esse era o meu modo de ser e não estávamos em idade de regimes nem de penitências… Em pouco tempo todos falávamos, comíamos, e, naturalmente, também brincávamos muito, ao modo brasileiro.
Pode-se imaginar o que era um grupo de vinte crianças juntas, comendo e bebendo à vontade! Sendo muito amigo das cores, a minha atenção pousava rapidamente sobre umas balas douradas ou cor de laranja, em forma de pequenos anéis, números ou animais, açucaradas por fora e contendo licores variados. Quebrava-se o invólucro com os dentes e aquilo era gostoso de mastigar, pois não se tratava de mero açúcar; tinha-se a impressão de estar comendo um cristal inofensivo e quebradiço que não machucava a língua, mas derramava uma bebida na boca. No fim, engolia-se tudo pêle-mêle [mesclado]: pedaços de doce triturados, açúcar e licor. Era uma mistura bem agradável.
Havia outros doces de várias ordens e nunca aconteceu de faltar qualquer coisa naquele festim das crianças, graças a Deus. Pelo contrário, no fim havia sobras enormes, mas não podíamos levar alimentos para os quartos. O contrabando era severamente proibido…
Mamãe permanecia de pé, olhando tudo afetuosamente, mas mantendo as coisas em ordem, ajudada pela Fräulein Mathilde e a outra governanta, a qual havia voltado após o término das orações. De longe chegavam-nos os ecos dos cânticos de outras crianças que também celebravam o seu Natal. Quase não se ouviam barulhos nas ruas, pois a festa era realizada pelas famílias no interior das casas.
Tudo isso nos dava uma felicidade cândida, pura e virginal, que não era perturbada por intemperança alguma. Nenhuma criança fazia travessuras ou peraltagens, e todas brincavam entre si com a maior calma, dentro daquela paz que parecia emanar das imagens do Menino Deus e de Nossa Senhora, difundindo-se pela sala. Essa alegria transmitia-nos algo que não sei exprimir bem, mas era a idéia de que nos foi dado um Menino – “Puer natus est nobis” – e que um grande gáudio tinha descido do Céu. Eu tinha a sensação de estar vivendo o Natal! Para mim, era como se o Menino Jesus realmente nascesse e estivesse junto de nós!
A nossa festa durava mais ou menos duas horas. Em certo momento, ouvíamos os sinos das igrejas que começavam a bimbalhar e os adultos saíam para assistir à Missa do Galo, para a qual as crianças não eram levadas naquele tempo. Estávamos num período de anti-clericalismo muito forte da parte de certos setores, e existia o receio de haver distúrbios durante a celebração.
Então, as governantas mandavam encerrar a nossa festa:
– Kinder, rasch! [crianças, depressa!]
Subíamos cantando novamente e despedíamo-nos de nossos primos. No fim de um dia tão cheio, estávamos muito cansados pelo ruído da conversa e também por não termos podido sentar-nos durante a ceia, sendo obrigados a permanecer de pé até o fim. Eu subia para o meu quarto, lavava-me, trocava de roupa e deitava-me, cheio de alegria por aquela ordem, aquela tranqüilidade e aquela intimidade da festa familiar, a qual, entretanto, tinha uma solenidade de protocolo e distinção que não haveria de se repetir durante o ano.
O Natal ainda reservava-nos as delícias do repouso. A roupa de cama havia sido trocada nesse dia. Como o travesseiro estava agradável! Como o colchão estava macio! Eu dormia embalado pela lembrança do Stille Nacht, com a satisfação da inocência.
Estava encerrado o Natal das crianças? Não! Começava o melhor.
Recebendo os presentes de São Nicolau
São Nicolau era um bispo da Ásia Menor que tinha muita pena dos necessitados, especialmente das famílias que empobreciam por causa de maus negócios e outras razões. Tratava-se, às vezes, de pessoas de alta categoria que tinham vergonha de pedir esmola e, então, ele coletava dinheiro ou objetos e dava-os a essas famílias, sem que estas soubessem quem era o benfeitor.
Esse prelado tinha o hábito de passar pelas casas dos pobres na noite de Natal, jogar os presentes pelas janelas e sair correndo. E estabeleceu-se por isso a tradição de afirmar que, nessa noite, o santo bispo afável passava por todas as casas do mundo e deixava brinquedos para as crianças, enquanto dormiam. Grandes caixas de presentes nos lares abastados; caixinhas afetuosas e pequenas nas residências com menos dinheiro; talvez uma florzinha ou uma bala nas casas pobres. Para os pequenos, aquilo era uma maravilha, esperada com muitos dias de antecedência.
Nós acreditávamos nessa visita, e eu era um entusiasta de São Nicolau. Ao despedir-se de nós, mamãe nos recordava que ele entraria em casa e deixaria brinquedos para nós. Naturalmente, eu ficava muito assanhado e queria surpreender São Nicolau enquanto ele entregava o presente, mas ele era tão hábil, e eu ia dormir com tanto sono, que isto nunca acontecia! Naquela noite era impossível entrevistar São Nicolau ou agradecer-lhe… Eu caía na cama e adormecia ouvindo os grilos, cujo canto parecia o latejar de todas as coisas à espera da surpresa que viria…
Entretanto, pelas quatro ou cinco horas de manhã eu acordava de curiosidade, querendo saber se São Nicolau já tinha vindo. De fato havia passado… Lembro-me da impressão deliciosa que eu tinha ao virar-me e sentir, de repente, o peso de uma grande caixa. Eu pensava: “Será que São Nicolau acertou?”.
Porém, minha reação não consistia em pular sobre o presente. Eu fazia o seguinte raciocínio: “Se eu acendesse a luz do meu abajur agora, me levantasse e abrisse a caixa para ver o que São Nicolau trouxe, meus pais o notariam e me censurariam. Além de desgostar mamãe, vou perder três horas de espera gostosa e não terei a alegria de ver o presente amanhã, quando acordar. Nessa hora haverá sol e estará tudo mais bonito. Não é melhor fruir esta expectativa do que destruí-la agora, brincando excitado e depois não conseguir dormir mais? Desse modo mantenho a esperança e aproveitarei devidamente o prazer.
“Vou ‘beber’ esta boa surpresa aos pequenos goles. Sei que vou acordar várias vezes durante a noite e quero sentir nos meus pés o presente. Como é agradável não vê-lo agora mas avaliar a alegria que vou ter amanhã, sustentando esse peso e balançando a massa de prazeres que me espera na alvorada! Vou conjeturar o que ele possa ser, voltar-me para o outro lado e adormecer de novo”. E afundava-me nas cobertas. O sono infantil tomava o domínio da situação e eu dormia. Mas, pouco tempo depois, a sofreguidão pelo presente fazia com que eu acordasse mais uma vez e pensasse: “Olha aqui o peso…”. E adormecia novamente.
Às sete ou oito horas, tínhamos o melhor despertar do ano! Em nenhuma outra manhã – exceto se eu estivesse doente – acontecia isso: eu acordava e encontrava mamãe aos pés de minha cama, olhando-me e deleitando-se com o prazer que eu iria ter ao ver o presente. Ao longo de minha vida, nunca contemplei um olhar semelhante. E ela não sabia que, para mim, a sua alegria era um presente melhor do que o brinquedo!
Quando percebia que eu estava inteiramente acordado, ela estendia os braços e dizia:
– Filhinho!
E antes de abrir o presente, eu ia para os braços dela, pois aquela interpenetração de almas valia para mim muito mais.
A minha felicidade começava com a carícia materna e, ao mesmo tempo em que a abraçava, eu ia olhando para aquela caixa. Daí a pouco se iniciava uma das alegrias máximas do Natal, que consistia em estraçalhar as fitas, os laços e os barbantes, arrebentar a caixa se necessário, abri-la e ver o que São Nicolau tinha deixado. E sempre era o brinquedo que eu mais desejava, da Casa Lebre, da Casa Grumbach ou da Casa Fuchs. Não me lembro de uma só vez em que ele trouxesse menos do que eu havia pedido! Eu me maravilhava com a coincidência e pensava: “Veja só… Como São Nicolau sabe de todas as coisas!”. E freqüentemente ele trazia vários presentes, pois o meu São Nicolau, era muito afetuoso. Sentia-se que ele fazia alguns sacrifícios para superar a minha encomenda!
Eu brincava até meu pai acordar e, então, ia com minha irmã até ele para anunciar-lhe a grande novidade: São Nicolau tinha trazido isto ou aquilo, e eu queria que ele visse. Meu pai manifestava surpresa:
– Como São Nicolau acertou! Que maravilha!
Mas, nessa hora, uma voz se fazia ouvir:
– Kinder, schnell! Kinder, schnell! [crianças, depressa!]
Era a Fräulein mandando-nos tomar banho. Terminando este íamos brincar no jardim, com o presente de São Nicolau. Que alegria! Em geral o dia era bonito, o jardim estava florido e a grama verdejante. As delícias do Natal se prolongavam…
Os dias 25 e 26: um hiato luminoso
No dia 25 de dezembro dava-se o que chamavam “o enterro dos ossos”: comíamos das iguarias e bebíamos os últimos ponches que haviam sobrado da véspera, mas separávamos e guardávamos muitos pacotes de guloseimas ainda não abertos, para dá-los às crianças pobres no dia de Ano-Bom, e eram comprados mais alguns para elas.
A noite desse dia era um hiato luminoso, cheio de suavidade, paz e doçura, dando-me a impressão de que todo o céu, com suas estrelas, estava impregnado de mel e perfume… Parecia-me que o som dos sinos chegava mais longe, e que uma alegria enorme circundava toda a cidade, impregnando até os jardins escuros e lembrando: “Cristo nasceu! Nasceu em Belém!”. Íamos dormir sob aquele bafejo do Natal sagrado, com o sono pesado e delicioso da consciência tranqüila, tanto mais que, na véspera, o repouso não tinha sido tão bom, pela vontade de surpreender São Nicolau.
No dia 26 ainda reinava uma grande animação. Podíamos comer um tanto dos restos dos doces e brincávamos mais uma vez com os presentes, até nos familiarizarmos com eles. Os adultos também participavam do ambiente do Natal e, mais amáveis e gentis do que o normal, acariciavam-nos com maior carinho e tinham a paciência de ouvir-nos contar todos os nossos gáudios. Sendo a festa do Menino Jesus, o Natal era a festividade de todas as crianças, e estas eram tratadas como tendo participação com Ele.
Nesses dias, íamos muitas vezes brincar com os meninos e meninas da família de certa dama paulista, relacionada com minha avó. Lembro-me de que um sobrinho dessa senhora saiu pelo terraço e jogou-se no ar, fingindo-se de avião. A meninada teve uma grande sensação e todos gritaram, como se o “avião” fosse cair em cima deles! Eu pensei: “Ele está brincando, mas de repente quebra uma perna!”. Contudo, como a sacada era baixa, ele caiu de pé no chão e não lhe aconteceu nada.
Ano Novo, festa dos pobres e dia de Reis: saudade e transição
No dia de Ano Novo organizávamos a ceia das crianças pobres, novamente na sala dos brinquedos. Elas rezavam conosco e, como ficavam muito acanhadas, nós as estimulávamos a servirem-se com liberdade:
– Coma isto, coma aquilo!
Estávamos severamente proibidos de comer mais do que elas, pois a festa agora lhes era dedicada. Podíamos tomar o que sobrasse, mas só depois de havê-los incitado muito a comerem à vontade.
A doçura festiva se estendia largamente, passando pelo Ano-Bom, e os dias transcorriam numa atmosfera natalina que culminava no dia 6 de janeiro. Apesar de não ser objeto de nenhuma comemoração especial, essa era a data em que, na imaginação das crianças e até dos adultos, apareciam três Reis, os quais eram também sábios e magos, vindos das brumas ignotas do Oriente. Não se sabia de onde vinham, mas eram portadores de trajes magníficos e jóias maravilhosas, e compareciam em fila, com seus servos e seus camelos, para adorar a Jesus. Esse desfile de Reis, cheios de sabedoria, a se inclinarem diante do Menino Deus, constituía a última alegria de algo que ia cessar. As luzes da árvore de Natal continuavam acesas, o presépio estava ali e, para as crianças temperantes, tudo isso era uma saudade do Natal e uma transição para a vida comum. Rezávamos mais um pouco, comíamos alguns doces e, à noite, voltávamos para os nossos quartos sabendo que no dia seguinte nós mesmos desmontaríamos o pinheiro, recolheríamos as figuras do presépio, mamãe guardaria todos os enfeites e nós voltaríamos para as férias comuns, que já não tinham o esplendor natalino.
No dia seguinte não tínhamos propriamente tristeza, mas uma grande luz ficava apagada atrás de nós. Entretanto, nossas almas estavam um pouco mais luminosas do que antes do Natal.
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