Tentativas de apostolado
Quando terminava o recreio, um irmão da Companhia dava um sinal com o apito e os alunos formavam filas, cada um em sua seção, para subirem às salas de aula. E todos entravam no prédio através de uma porta, consideravelmente mais alta do que o nível do chão, à qual se chegava por uma pequena escada que partia do pátio. Esta se abria em duas partes – de maneira a formar um “V” ao contrário – que convergiam para um pequeno patamar comum, onde se distribuíam os alunos e entravam nas salas de aula.
Cumprimentos na escada
Com ajuda do apito, o irmão dava ordens:
– Subam deste lado!
E depois:
– Subam do outro lado!
Assim entravam as divisões, uma depois da outra, de maneira que quando alguns alunos paravam, outros avançavam, de acordo com o sinal. Portanto, a todo momento, um grupo subia a escada desfilando diante de outro que esperava.
Eu notei que os meninos de um e de outro lado, quando eram amigos ou parentes, ao se encontrarem na escada permutavam um pequeno cumprimento ou um riso, de modo discreto, sendo que o sinal mais frequente e amistoso era um simples movimento de sobrancelhas.
Também percebi que o aluno da frente de uma fila, chegando ao alto da escada, estava em posição de superioridade em relação aos que subiam diante dele. Estes, sendo cumprimentados, sentiam-se distinguidos perante os outros por serem notados na fileira, pois isso indicava certa manifestação de relações e de importância. Igualmente notei que os meninos possuidores de certo prestígio recebiam numerosos cumprimentos.
Esse sistema estava estabelecido consuetudinariamente e por instinto, o que me espantava, pois era quase conservador e revelava certa atenção e cortesia.
Tratava-se de uma “politicança” brasileira característica!
A política da sobrancelha
Então, vendo nisso um meio de adquirir prestígio e impor a minha posição sem brigas nem taponas, empreendi uma ação de diplomacia no topo da escada, gradualmente e sem chamar a atenção.
Quando o irmão apitava para encerrar o recreio, eu ia correndo, arranjava um jeito de ficar na ponta da fila e começava uma troca de cumprimentos com este, aquele e aquele outro menino que subiam. Por exemplo, quando passava um que era meu parente ou apenas conhecido em casa, eu lhe fazia uma pequena e amável expressão de sobrancelhas. Depois vinha um colega com quem eu também tinha certa liberdade, e ele respondia ao meu sinal. Logo atrás aparecia um outro com o qual eu mantinha menos relações, mas era mais sensível ao prestígio: ele me olhava como quem espera uma atenção, e eu também lhe dava o cumprimento…
Era necessário empregar certa habilidade política para isso. Fui multiplicando as saudações e, por fim, quase toda a fila era cumprimentada, embora eu distribuísse gentilezas de modo diverso, mais ou menos pronunciadas, a golpes de sobrancelhas e sorrisos, e sem jamais manifestar cumplicidade com os aspectos revolucionários dos colegas.
Com o tempo, cheguei a ser um dos mais cumprimentados do colégio. Isso foi constituindo uma contextura de relações que não tinham nenhum fundamento a não ser essa troca de gentilezas prestigiantes. Era uma partilha do “bolo” do prestígio, a qual era vantajosa para criar um ambiente que fizesse face aos revolucionários, realçando os alunos melhores – os que estavam numa situação parecida com a minha – e vexando os ruins. Posteriormente, em períodos livres da vida de colégio, os membros desse “partido das sobrancelhas” podiam encontrar com quem conversar e deixavam de estar isolados, o que já era um passo para a constituição de um ambiente geral menos nocivo.
Essa política da sobrancelha também quebrava boa parte do gelo que se fazia em torno de mim. Eu granjeava certa simpatia e, nas horas em que pudesse ser vaiado ou quando os piores quisessem preparar um motim contra mim, muitos alunos não os acompanhariam. Assim, eu teria alguns do meu lado e não me encontraria em posição de inferioridade.
A estratégia do táxi
Lembro-me de outra tentativa de apostolado.
Os antigos haviam sido educados no pânico da corrente de ar, da chuva e do resfriado. Por isso, mamãe tinha muito receio de que eu me resfriasse, e sempre me dava uma ordem muito expressa: quando chovia, eu deveria mandar vir um táxi para voltar do colégio a casa. Às vezes, ela mesma fazia questão de encomendá-lo por telefone, para que me esperasse na saída. Eu era o único menino do colégio que tinha essa condução, pois os outros voltavam nos automóveis enviados pelas famílias, ou em bonde, quando os pais eram menos abastados.
Entretanto, eu nem podia pensar em tomar um táxi por moleza. Não seria concebível que, na hora de me levantar de manhã, eu dissesse: “Tenho vontade de dormir mais meia hora! Mamãe me paga o táxi…” Isso não aconteceria nunca, irredutivelmente!
Então, nos dias de chuva, quando terminavam as aulas, via-se uma quantidade de automóveis lotando algumas calçadas próximas ao São Luís e, no meio, aparecia o táxi mandado por mamãe. Apesar de não ter a plaquinha em cima – a qual ainda não se usava – eu o reconhecia, pois vinha de um ponto próximo de minha residência.
Eu apreciava o táxi por ser muito cômodo e por me deixar diretamente em casa, mas também por outra razão: escolhia aqueles a quem quisesse fazer uma gentileza – e que iam na mesma direção dos Campos Elíseos – e enchia o veículo com eles. Alguns – sempre os mesmos – permaneciam perto de mim nesse momento, esperando que os convidasse para aproveitarem a oportunidade de chegar a casa depressa, mas, dentre esses, eu já sabia a quem era estratégico convidar ou não convidar, de acordo com a política da virtude. E os chamava, dizendo:
– Vamos! Entrem aqui! Hoje temos automóvel!
Naquele tempo os táxis eram altos, e é claro que não entravam apenas três alunos atrás, mas uma enxurrada de meninos. No banco da frente entravam três, um sentado junto ao chauffeur1 e outros dois voltados para trás. Alguns ficavam em pé no fundo, e todos falavam.
Era mais uma tentativa de ganhar terreno com os recursos da habilidade, mantendo alto o panache2 da virtude. A minha finalidade principal era fazer um apostolado religioso, ajudando a dilatar os espaços da Fé nas almas dos que ainda tinham conservado restos dela.
No fundo, eu tinha como meta a fórmula de Santo Inácio de Loyola, que me entusiasmava: Ad maiorem Dei gloriam3!
Mas, quais eram esses colegas, catados à pinça, que simpatizavam comigo?
Três categorias de inteligência
Entre os alunos havia três categorias intelectuais.
Para alguns, só existiam o cinema, o esporte e a imoralidade. Esses viviam dentro de um circuito semelhante a uma corrente elétrica, que circulava entre todos, feita de corre-corre e agitação. Não gostavam de ler e, por isso, eram os menos inteligentes e tinham de fazer muito esforço para participar de uma conversa de nível um tanto elevado.
Outros eram de uma categoria média: tinham gosto em fazer amizade com os menos inteligentes, mas a inteligência deles não era tão adormecida a ponto de não prestarem certa atenção transitória, ouvindo alguém falar sobre um tema superior.
Por fim, havia a minoria esparsa dos meninos mais inteligentes. Eles se davam bem com os do meio-termo e os inferiores, mas sentiam-se um tanto exilados e inconformados com o ambiente enormemente anti-intelectual que predominava. Esses não chegavam a protestar contra a opinião geral, mas desejavam ter conversas um pouco mais intelectualizadas e gostavam de debater sobre determinados assuntos. Quase sempre, eram também os menos aptos para toda espécie de esportes, com exceção do tênis.
Uma roda de intelectuais
Então, eu observava esses e pensava: “Tal colega é inteligente e tem o costume de ler… Esse outro gosta de conversar com ele… E aquele outro também lê. Vou começar a conversar com eles, tratando sobre certos temas e iniciando uma espécie de bate-bola4 do espírito!”
Assim, aproximando-me de um e de outro, no recreio ou na entrada e saída do colégio, fui constituindo aos poucos uma rodinha de intelectuais com quatro ou cinco alunos, sem que os amantes do esporte percebessem. Começava a formar com eles certa amizade, baseada numa troca de ideias, sobre matérias que nem sempre os professores ensinavam. Os meus amigos sabiam algo de literatura portuguesa, música – matéria da qual eu não entendia – e outras artes, e eu me interessava especialmente pela história da França.
Eu me esforçava para que a minha conversação fosse fluente e prazenteira, tocando os assuntos que agradassem a eles, para atraí-los e, lentamente, ia introduzindo os meus temas, ou seja, a Revolução e a Contra-Revolução – que eu ainda não nomeava desse modo –, mas sem nunca tratar a fundo sobre pontos em que eles pudessem me ridicularizar.
Esses eram os que formavam uma das minhas rodas de amigos no colégio.
Discussões agradáveis
Dentre eles, o mais inteligente era um menino da família Andrada5, o qual era descendente de alguns bons oradores. Curiosamente, possuía algo do espírito do Iluminismo6, anterior à Revolução Francesa, e tinha raciocínios todos feitos de abstrações, com premissas simples e brilhantes, facilidade de expressão e uma lógica terrível, o que causava certa impressão. Quando defendia um ponto de vista oposto ao meu, era às vezes difícil de rebater e me dava trabalho na argumentação, mas agradava-me discutir com ele, por causa da sua inteligência.
Conversas com o filho do Governador
Eu era também muito amigo do Vítor Luís, o mais novo dos filhos de Washington Luís, Governador do Estado7. Era da minha idade e cursávamos juntos8.
Rapaz bem inteligente, apesar de não ter nada de um orador nem ser dado a argumentar, possuía uma voz muito cantante e era uma das poucas pessoas realmente engraçadas que eu conheci, sem chegar a ser contador de piadas. Sabia observar bem a realidade concreta e inclusive as situações cômicas, das quais dava uma risada sonora e inteligente, que convidava a rir com ele. Não era o riso do moleque alvar, mas a gargalhada do projeto de homem inteligente que havia nele.
Tornamo-nos amigos íntimos.
Ele e o Andrada tinham modos de ser opostos, e não se entendiam, e eu era, de certo modo, o elemento intermediário entre um e outro, por dar-me bem com ambos.
Segundo ele mesmo narrava, Vítor Luís via o próprio pai continuamente cercado de uma enorme veneração, mas, ao ler os jornais, percebia também que este era atacado e tinha curiosidade de saber como se portava diante desses ataques que sofria. Então, contou-me que, certa vez, numa noite de Natal, leu na Folha da Manhã9 um artigo contra o pai. O palácio dos Campos Elíseos estava quase vazio e a família do Governador preparava-se para sair mais tarde. O Vítor deixou o jornal no escritório do pai, perto da cadeira onde este devia sentar-se, e permaneceu num canto, com o ar de um menino que se distrai com outras coisas, para ver qual seria a reação dele ao ler o artigo.
Daí a pouco chegou o Washington Luís, sentou-se, e, encontrando a Folha da Manhã, tomou-a, sem imaginar que se tratava de um jogo do filho. Dizia-me o Vítor que tinha os olhos cravados no pai. Impassível, este leu o artigo inteiro, colocou o jornal de lado, pensou durante algum tempo, levantou-se e saiu. Esse era o temperamento do Governador, e nós dois – eu mais do que ele – achávamos aquilo admirável, pois nos parecia terrível o fato de um homem ler um ataque contra si mesmo no jornal, e não manifestar ódio, cólera e indignação, ou insegurança e perturbação, mas conservar-se frio. Aquela posição mental parecia-nos de uma energia quase sobre-humana.
Era uma atitude nitidamente infantil de nossa parte, mas, depois, refletindo sobre as minhas leituras de História, entendi que todos os grandes personagens foram atacadíssimos e que nunca entrou para a celebridade um homem não atacado. Depois, também falou profundamente à minha alma a ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo foi atacado, e de que maneira! Pensava: “O mito de que as qualidades de um homem possam subir a um tal grau que se imponham e desarmem o ataque é completamente falso, pois Ele teve todas essas qualidades e foi atacado. Logo, o ideal da pessoa não atacada é perfeitamente irrealizável”.
Cheguei à conclusão de que o homem inatacado não chega a ser verdadeiramente homem.
Primos e parentes
Em segundo lugar, estava o pequeno grupo dos meus primos e parentes, menos intelectualizados. Alguns deles se afastavam completamente e fugiam de mim, mas outros, como Sérgio Magalhães10, o qual era da minha idade, mantinham relações cordiais comigo e nos visitávamos com certa frequência.
Sobretudo, eu era muito amigo do Reizinho11, que tinha quase a mania de estar comigo, de manhã e de tarde. Eu costumava ir à residência dele, mas, sobretudo, encontrava-o na minha todos os dias, no meu quarto e na sala de estudos, numa grande intimidade, chegando ele, inclusive, a dormir em minha casa, algumas vezes. Éramos dois meninos de calças curtas e eu aceitava tudo isso de muito bom grado.
Sendo de fundo melancólico, ele gostava de me ouvir falar e, assim, ia sugerindo os assuntos sobre os quais eu discorria. Então, percebi que podia fazer-lhe certo bem nessas expansões e tentei todo o possível. Em certas ocasiões, saía para passear com ele e com outro companheiro da mesma idade. Íamos conversando pela rua e eles quase se penduravam em mim para ouvir o que eu dizia. A tal ponto que, um dia, meu primo mais velho12 me disse:
– Plinio, assim não pode ser! Veja o que você está fazendo com esses dois!
– O que estou fazendo com eles?
– Onde você põe os pés, eles põem também. Os dois estão sempre atropelando-o de cá, de lá e de acolá, e você decide a respeito de todo o programa deles! Quando você diz: “Vamos a tal confeitaria?”, sua sugestão é uma lei! Você não percebe que assim deforma a personalidade deles?
A comunhão do Reizinho
Lembro-me de que, certa vez, o Reizinho tinha ido dormir em minha casa e, de manhã, fomos juntos ao Coração de Jesus. Meu primo se confessou, nós dois comungamos e, depois, em vez de retornar à casa dele13 – mais próxima da igreja – para tomar o café, ele foi tomá-lo comigo, a fim de podermos conversar.
Nessa ocasião, estávamos sentados no sofá do quarto de minha irmã, a qual não se encontrava ali, e ele me disse:
– Que coisa magnífica, essa comunhão no Coração de Jesus! Como fiquei impressionado, sobretudo na hora em que começaram a bater os sinos! Você tem de ser muito mais enérgico comigo! Deveria esbravejar, dizer-me desaforos e bater-me, exigindo que eu me confesse e comungue com frequência! Eu bateria em você também, mas acabaria indo! Eu quereria mudar! Desejaria ser outro!
Era uma hora da graça.
Apostolado meticuloso
Havia, por último, um setor de meninos que se destacavam por uma moralidade maior que a dos outros, segundo o critério dos Mandamentos da Lei de Deus e da Igreja. A esses eu também dava apoio, mas, em geral, eram moles e fracos.
Nos três setores, eu dava especial atenção àqueles em cujo olhar e em cujo porte transparecia algo que indicava serem eles maravilháveis. Ou seja, aqueles que poderiam ser atraídos para os meus ideais. Para cada um deles a minha técnica de apostolado era aplicada meticulosamente, com todo cuidado. Depois dos cumprimentos amáveis, uma aproximação gradual, seguida de conversas e do convite para algum passeio no domingo. Este concluía com o lanche em alguma confeitaria, durante o qual tínhamos grandes conversas.
O rapaz aceitava minha influência, até o momento em que se dava conta: se seguisse o meu caminho, entraria em oposição a toda a opinião pública do colégio, cuja pressão causava um verdadeiro terror. A conclusão era quase sempre a mesma: um esmorecimento da amizade e um distanciamento. Ou, em certos casos, a relação com esses colegas de tal maneira perdia o interesse apostólico, que eu a deixava morrer.
Um colega íntegro e sofrido
Certa vez, eu estava saindo do São Luís com alguns colegas que moravam no mesmo bairro. Éramos um grupo grande de rapazes a pé, naturalmente conversando sobre inúmeros assuntos.
Quando entramos por certa rua, passou um automóvel bem devagarzinho, junto a uma esquina. Era um veículo alemão, de tipo “vitoriano”, cuja parte metálica tinha uma cor creme claro – cor de sorvete bem feito –, o qual fazia um contraste muito bonito com a capota de lona, semicircular, de um preto lustroso, que estava meio levantada para evitar o sol, dando a impressão de carruagem antiga.
Era pouco barulhento: não ronronava nem resfolegava, como os “Ford bigode”14, mas percebia-se que aquele silêncio era sinal de uma extraordinária eficácia mecânica.
À frente, num lugar espaçoso, a própria dona do automóvel ia guiando. Era uma senhora da mais alta sociedade de São Paulo, riquíssima e bonita, a qual costumava sair à tarde15.
Não pude focalizá-la bem quando passou, mas lembro-me do chauffeur dela, o qual estava ao seu lado para ajudá-la, pois, para uma mulher daquele tempo, era uma aventura guiar um automóvel. Esse motorista era um rapagão bem limpo e arranjado, muito forte e rubicundo de saúde, com fisionomia de alemão que acabou de tomar lanche.
Entre a senhora e o chauffeur havia um cão. Era um galgo grego, também cheio de saúde, muito bonito e bem lavado, vendo a rua como se a entendesse e com a boca aberta, na qual via-se uma língua macia e vibrante – parecendo ter ondulações parlantes – e dentes prestigiosamente ameaçadores.
Tudo aquilo falava de uma vida opulentamente deliciosa. Quando apareceu esse automóvel numa esquina, eu estava no meio da meninada e, a meu lado, vinha andando um rapazinho de dez ou onze anos, pouco mais novo do que eu e mais moço do que todos os outros, o qual usava a mala de colégio pendurada nas costas, com correias de couro.
Nesse momento, o Vítor Luís bateu com a mão nas costas do rapaz, sobre a mala, e me perguntou:
– Plinio, você conhece o João Baptista16?
Eu não o conhecia, apesar de estarmos andando juntos, e respondi:
– Não.
O Vítor não deu o sobrenome do outro e disse apenas:
– Mas, você não sabe? É filho dessa senhora, Dª Sarah Pinto!
E bateu novamente nas costas dele.
A dona do automóvel era a mãe do rapazinho. Olhei para ele e percebi que
tinha uma fisionomia muito sofrida, de alguém que era perseguido, mas possuía senso moral e mantinha a sua integridade.
Ele não disse nada e tomou atitude de alguém que não tivesse ouvido, fechando um pouco as vistas como se olhasse algo à distância, dando a entender, por esta forma, que estava com a atenção voltada para outro assunto e, por isso, não respondia. Pensei: “Para alguém dessa idade saber fazer isso, é inegável que ‘tomou chá em pequeno’17! Por outro lado, deve ter recebido muitas ‘pancadas’, pois já tem o truque preparado…”
Uma vez que o menino me tinha sido apresentado, estendi-lhe a mão e disse, com tom cerimonioso:
– Prazer em conhecê-lo!
Dois amigos de Plinio
À noite, na hora de ir dormir, as imagens do dia se sobrepunham para mim: via o automóvel passando e o menino com ar de sofrimento… O contraste me levava à reflexão e pareceu-me que aquele colega seria captável para uma boa amizade.
Então, procurei-o depois para conversar, ele acercou-se muito a mim e fizemos uma excelente camaradagem, o que me autorizava toda espécie de esperanças. Ele sempre via a realidade pelo prisma do maravilhoso, e isso me levava a pensar que possuía uma grande vocação e era talhado para me seguir.
Notei que se dava com ele algo de misterioso: apesar de ser um menino um tanto apagado, sempre havia uma matilha de gente montada contra ele, tratando-o de maneira estúpida.
João Batista tinha um irmão mais moço, chamado Antônio Carlos18, com o qual eu também fiz amizade. Durante os recreios, enquanto os outros jogavam e corriam, permanecíamos os três sentados nos degraus de uma escada externa do jardim, conversando e trocando moedas europeias que colecionávamos.
Dizia-se no colégio que a mãe dos dois irmãos, quando se tratava de levar os filhos a alguma festa, dizia: “Tó vai! João fica!”, pois o mais velho era muito sério. Assim, entre os alunos, passaram a ser apelidados de “João-Fica” e “Tó-Vai”.
Em certa ocasião, estávamos os três na escada do jardim, trocando moedas, quando se aproximou um Padre e permaneceu no alto, com os braços cruzados, olhando-nos e, manifestamente, desejando entrar em nossa conversa. Havia entre nós uma amizade tão cordial, que o Sacerdote em certo momento perguntou:
– Vocês são parentes?
Eu respondi:
– De nenhum modo.
João disse:
– Não, senhor! Você é meu primo.
Pouco tempo antes, uma prima dele havia se casado com um primo meu. Então ele julgava, de modo infantil, que se tinha tornado meu primo.
Entretanto, um dia ouvi de repente a notícia de que, no ano seguinte, os dois irmãos iriam para a Bélgica estudar num colégio católico, pois a mãe deles não estava satisfeita com os modos que o João Batista vinha tomando no Brasil.
Então, foram mandados para a Bélgica.
“Quer fazer o favor de me passar o pão?”
Certa vez, convidei um amigo de minha idade – doze ou treze anos –, colega do São Luís e membro de uma família conhecida da minha, para ir jantar em nossa casa. Esse rapaz era aproveitável para o meu apostolado e eu já estava obtendo certo resultado com ele.
Entretanto, antes do jantar, enquanto conversávamos, tivemos uma discussão, na qual ele dizia:
– Você tem para com as pessoas um trato muito diferente do normal!
Eu lhe perguntei:
– Diga-me: no que sou diferente?
– Acho que você é excessivamente cerimonioso.
Eu já tinha discutido sobre esse ponto com outros amigos de colégio. Então, disse a ele:
– Sou cerimonioso, mas menos do que você está dizendo. Aponte-me algo em que eu o seja de modo excessivo, e lhe responderei.
– Daqui a pouco você vai ver, durante a refeição!
– Está bem, vamos lá!
Nisso, veio o copeiro avisar que o jantar estava servido, e subimos à sala de jantar, a qual estava muito concorrida, pois, além dos que moravam em minha casa, havia nesse dia alguns visitantes.
A disposição à mesa era em ordem decrescente, por idade, de modo que os mais velhos se sentavam na ponta “norte”, enquanto os mais moços iam ficando longe, em direção à ponta “sul”. Isso nos trazia certa vantagem, pois assim podíamos trocar algumas palavras entre nós, sem que os mais velhos deitassem atenção em nossa conversa. Naturalmente, esse meu colega e eu, como éramos mocinhos, ainda de calça curta, permanecíamos na mesma ponta. Por ser visitante, ele estava um tanto mais próximo dos mais velhos, quase em frente a mim.
Estávamos falando e, em certo momento, eu quis servir-me de pão. Entretanto, como havia muita gente, o copeiro não dava conta de todo o serviço. Um pouco distante de mim, por coincidência ao alcance de meu colega, estava um recipiente, adornado com marfim ou esmalte, o qual imitava uma pequena cesta e continha fatias de pão.
Então, distraidamente e levado pelo hábito, pedi a ele:
– Você quer fazer o favor de me passar o pão?
Eu havia falado baixinho, pois os meninos não falavam alto entre si à mesa dos maiores, para não perturbar a conversa com bobagens. E ele respondeu, também baixinho, sem que os outros ouvissem:
– Está vendo? Eu não dizia que você é extraordinariamente cerimonioso?
Levantando uma sobrancelha, perguntei-lhe:
– Por quê?
– Você conhece um menino de nossa idade que peça para outro, de modo tão cerimonioso, um pedaço de pão? Apenas você fala desse modo! Ninguém é assim! Foi por isso que discutimos há pouco!
E, para me imitar, passou-me a cestinha de pão com um gesto gentil, gracejando:
– Pois não! Tenha a bondade de se servir…
Eu disse:
– Você está aprendendo… Muito bem!
Ele continuou:
– Lá fora eu te pego!
– Quem te pega sou eu – respondi.
Cerimônia, respeito e grandeza
Quando o jantar terminou, fomos ao jardim para tomar um pouco de ar. Estávamos a sós e ali falamos a respeito do caso. Ele disse:
– Você sabe muito bem que, entre rapazes de nossa idade, quando um quer o pão, basta olhar para a cestinha e apenas dizer para o outro: “Pão!” Se for muito cerimonioso, dirá: “Fulano, faça o favor de me passar o pão” – o que já seria uma fórmula muito amável! O segundo já entende tratar-se do pão que está perto dele e passa-o ao primeiro, o qual nem se lembra de dizer “obrigado”. Eu acho isso natural!
Fiquei tão espantado, que nem soube responder imediatamente, pois, quando alguém me fazia um favor, o normal para mim era dizer “muito obrigado”. Então ele continuou:
– Você, pelo contrário, me pergunta se eu, por acaso, quero fazer o favor de passar a você o pão que está diante de mim. Por que perguntar? Você já tem certeza de que eu quero! Tanto mais que nós somos colegas do mesmo colégio e, portanto, chegados um ao outro, por uma série de razões. Estou com você todos os dias! Além disso, quando eu faço o gesto mais simples do mundo, como pegar o pão e passá-lo, você ainda diz que fica muito agradecido, e chama isso de favor! Como?! O dono do pão é você, pois eu sou seu convidado e estou comendo à sua mesa! Em sua família, todos são tão cerimoniosos, que causam espanto!
Não sei se esse meu colega mitificava um pouco o que ele presenciava em minha casa, mas isso correspondia, entretanto, a uma certa realidade, pois, quando eu ia almoçar ou jantar em outras casas, de famílias do mesmo meio social, via que o sistema era bem diferente…
Ele então continuou:
– Mas você é muito mais cerimonioso do que qualquer um! Esses seus modos de ser diferem de todo o mundo! Para que todas essas fórmulas? Isso não é complicar a vida?
Eu lhe respondi:
– Não! É torná-la agradável!
– Mas isso é completamente falso, artificial! Não tem propósito!
– Diga uma coisa: você então afirma que cada um deve tratar os outros com naturalidade?
– É isso mesmo!
– Então, a minha naturalidade é essa! Você pensa que isso é artificial? Não é! Eu sou assim! Trato meus pais, minha irmã e toda a gente com cerimônia! Não sei pedir pão para uma pessoa de outra maneira. Se você fosse meu copeiro, eu diria, apontando para a cesta: “Luís (era o nome do copeiro de casa), dê-me o pão”. Você quer ser tratado como um empregado? Sua ambição é galgar a condição de copeiro? E, mesmo assim, aos empregados eu não digo “faça isto!”, mas quase sempre utilizo uma expressão afável. Quanto mais devo tratar com atenção especial a você, que não é meu empregado, mas um amigo a quem distingui, convidando-o para jantar em minha casa! Então, digo-lhe: “Quer fazer o favor de me passar a cestinha de pão?” Essa atenção manifesta a consideração, a boa vontade e a simpatia que eu lhe tenho, e é uma prova de amizade. Isso não é um defeito e não vejo razão para alterar meu feitio!
– Pois eu fico sem jeito e me sinto muito mal ao seu lado! Não sei tratar você assim! Fui educado de modo diverso, à maneira moderna.
Ele não disse tudo o que pensava, mas entendi que sua ideia era a seguinte: “A prova de amizade é ser íntimo”. E eu, pelo contrário, só gostava da intimidade quando esta conservava um tonus19 cerimonioso. Então respondi:
– Meu caro, vejo que existem duas formas de conceber a educação. De fato, o trato moderno é como você disse: uma vez que são dois amigos, um diz simplesmente ao outro: “Pão”! Mas eu sou fiel à tradição, segundo a qual se deve procurar ser amável com todo o mundo e usar fórmulas bonitas para realçar a amizade. A distância, o respeito e a cerimônia tornam a vida agradável. De que lado está a boa educação? Deve-se fazer como eu fiz! Aprenda a ser assim! É um benefício que eu lhe faço, com muita alegria! Ou, então, não sei como vai ser o nosso relacionamento, pois sou eu quem se sentirá mal ao seu lado, se você agir de outra maneira.
Ele retrucou:
– Olha o que você está me dizendo, por exemplo! Por que não utiliza uma argumentação como a de dois colegas que estão brincando? Não, você me encosta à parede, como um advogado esmagando outro.
Respondi:
– Não sei falar de outra maneira.
E afirmei também que era preciso ser cerimonioso, para ter grandeza. Ele ficou pasmo e perguntou:
– Mas, grandeza? Para quê?
– É muito simples. Quem deseja ser respeitado, precisa começar por respeitar-se a si próprio. E o modo de fazê-lo é praticar de um modo elevado e bonito até os atos pequenos e sem importância. Assim, quando os outros notam que alguém se respeita a si mesmo, passam a respeitá-lo também. Então, por exemplo, ao perguntar se você queria me fazer o favor de passar o pão, mostrei que eu estou respeitando você e, por isso, exijo que me respeite também. Você, se não quiser ser respeitado, vá correndo e ponha-se debaixo dos pés dos outros para deixar-se pisar, e eles esmagarão você como uma pulga. Eu quero ser respeitado a vida inteira. Esse é o senso da grandeza!
Ele não teve o que responder e ficou quieto. Pouco tempo depois, fui para Santos e ele ainda me escreveu uma carta, que lhe respondi. Entretanto, quando voltei a São Paulo não o procurei, pois ele tinha tanta vulgaridade, que o convívio mútuo não me parecia mais possível. Ele entendeu isso, também nunca mais me procurou e eu o perdi de vista completamente.
O que houve nesse episódio entre dois meninos? Um atrito entre o meu modo de ser e a Revolução. Como a minha vida teria sido muito mais cômoda, se eu me adaptasse ao estilo dos meus colegas, todo despachado, sem educação nem modos!
Tentativas fracassadas
Assim, apesar do esforço, todas as minhas tentativas de apostolado, sem exceção, fracassaram completamente. Alguns colegas continuaram sendo meus amigos, por gostarem da minha companhia e por julgarem que eu conversava de modo agradável, mas não consegui nenhuma adesão durável a minhas ideias.
Por outro lado, eu notava que, no fundo, os que pareciam ter amizade comigo, mas também com os alunos revolucionários, eram, de fato, amigos deles e não meus.
Então, qual foi o resultado de tudo isso?
Esse apostolado parece ter sido útil apenas para o meu próprio aprendizado, mas, ao menos, produziu o seguinte fruto: quando chegou para mim o fim do curso, a minha posição era inteiramente conhecida como a do único aluno que havia resistido contra a onda geral.
Assim, a figura do católico passou a ser considerada em todo o Colégio São Luís. De maneira que meu dever estava cumprido e o exemplo estava dado, mas não me seguiram.
1 Em francês: motorista, chofer.
2 Em francês: penacho. Em sentido figurado: garbo, ufania.
3 Em latim: “Para a maior glória de Deus”. Cf. Volume II desta coleção, p. 228.
4 Termo utilizado para designar um jogo informal.
5 Carlos de Oliveira Coutinho, filho de Alberto de Oliveira Coutinho e de Valentina de Andrada de Sousa Queirós, ingressou no Colégio São Luís em 1920 como aluno do 1º ano, e foi colega de Plinio até o fim do curso.
6 Corrente de pensamento de grande força na Europa do século XVIII, cuja principal crença era o poder da razão humana para a solução dos problemas da sociedade. As suas figuras mais destacadas foram, entre outras, Voltaire, Rousseau, Diderot e os enciclopedistas.
7Washington Luís Pereira de Sousa foi Governador do Estado de São Paulo – ou “Presidente”, como se dizia na época – entre os anos 1920 e 1924, e Presidente da República de 1926 a 1930.
8 Vítor Luís Pereira de Sousa ingressou no Colégio São Luís em 1920, e cursou na mesma turma de Plinio em todos os anos da permanência deste no colégio.
9 Periódico editado na capital paulista, que mais tarde deu origem à Folha de São Paulo.
10 Sérgio de Magalhães, primo de Plinio em terceiro grau por parte dos Ribeiro dos Santos, ingressou no Colégio São Luís no ano de 1919 como aluno do Curso Preliminar, sendo colega de Plinio até o fim do ano seguinte, mas não cursou no mesmo estabelecimento nos anos de 1921 e 1922.
11 José Ribeiro dos Santos, filho do Dr. Gabriel Ribeiro dos Santos, irmão de Dª Lucilia. Ingressou no Colégio São Luís no ano de 1920, como aluno do Curso Elementar, e fez o Curso Preliminar em 1921. No ano seguinte não estudou no mesmo colégio, mas num internato britânico.
12 Antônio Caio Ribeiro dos Santos, primeiro filho de Dr. Gabriel.
13 Na Alameda Barão do Rio Branco, nº 58, no Bairro dos Campos Elíseos.
14 Assim era chamado no Brasil certo automóvel fabricado pela empresa Ford, lançado em 1908 e famoso por ser o primeiro veículo produzido em série.
15 Dª Sarah Pinto, esposa de Edgard da Rocha Conceição.
16 João Batista da Rocha Conceição entrou no Colégio São Luís no ano de 1922, como aluno do 1º ano.
17 “Tomar chá em pequeno”, segundo expressão brasileira, significa haver recebido uma boa educação.
18 Antônio Carlos da Rocha Conceição entrou no Colégio São Luís em 1922, junto com o irmão, como aluno do Curso Preliminar.
19 Em latim: tom, estilo.
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