Três mortes
Na época em que eu estudava no Colégio São Luís, a Providência se serviu de alguns fatos, para fazer bem à minha alma.
Um conhecido, afogado no Rio Tietê
Havia em São Paulo um rapaz de quinze ou dezesseis anos, que eu conhecia. Sendo bastante perito em natação, pertencia ao Clube Tietê, localizado à beira do rio de mesmo nome, o qual era muito limpo naqueles remotos tempos.
Certo dia, uma pessoa veio me dar uma notícia:
– Você sabe que fulano morreu?
Perguntei:
– Mas, como?
– Ele estava em perfeita saúde e, no sábado à tarde, foi nadar no Clube Tietê. Subiu a um trampolim, brincando com os amigos, lançou-se de cima e afundou diretamente. Todos pensaram que havia mergulhado em boa forma e, como demorava em sair, houve brincadeiras gerais: “Que fôlego ele tem!” Mas, ao cabo de alguns minutos, uma vez que não aparecia, avisaram a direção do clube. Mandaram então nadadores procurarem pelo rapaz, e logo ele foi trazido à tona: era um cadáver. Talvez tenha batido com a cabeça no fundo do rio. A família notou que ele tardava em chegar para o jantar e, de repente, recebeu um telefonema: ele morreu! O corpo foi levado a um necrotério para ser examinado e, assim, verificar a causa da sua morte.
Exclamei:
– Então, os jovens também morrem!
– Oh, sim! Como qualquer um…
Meu interlocutor, pessoa de bastante idade, deu um bocejo e um olhar malicioso, como quem dizia: “Você pensa que a morte não o atingirá? Ela está mais perto de mim, mas você também será alcançado pelas garras dela, de um momento para outro…”
Pensei: “A ideia de que eu posso morrer a qualquer instante consola esse homem, o qual sempre afirma querer-me bem… Percebo que ele tem alegria em olhar para mim e notar que, na minha curta idade, já estou sentindo o roçar dos dedos da morte!”
Por relações de sociedade, tive de comparecer ao velório. Vi o jovem esticado, com o queixo preso por um pano e os pés amarrados por uma fita. O lustre da sala estava coberto com um crepe preto, e a mãe dele chorava. Refleti: “E se isso acontecesse comigo…? Se fosse minha mãe a que estivesse aqui, chorando? Eu posso morrer!”
Posteriormente, no colégio, ouvi o comentário de um sacerdote sobre o caso:
– Esse moço vivia num ambiente que não favorecia muito a prática da castidade. Quem sabe se, após ele ter imergido nas águas para se refrescar agradavelmente, quando deu acordo de si, estava no calor do Inferno?
Lembro-me da impressão que me causaram essas palavras. Arregalei os olhos e pensei: “Ele bem pode ter razão!”
A morte de um colega
Pouco tempo depois, num período de férias, recebi a notícia de que um outro menino morrera de modo bárbaro.
Eu estava brincando sozinho no jardim, quando vi mamãe descer as escadas externas da casa e dirigir-se para mim com olhar de piedade, bondade e muita pena, querendo me agradar especialmente. Fui logo para junto dela e, então, com o cuidado de quem iria contar-me algo que poderia me contristar, disse-me:
– Meu filho, você vai passar por uma situação que ainda não conhece.
Permaneci em silêncio e ela continuou:
– Sabe quem está mal à morte?
Pensei tratar-se de alguém da geração dela e disse, com certa indiferença:
– Não.
– Lembra-se de tal menino assim, seu amigo?
Era um colega do São Luís, de minha idade, aproximadamente. Respondi:
– Lembro-me.
– Ele está desenganado pelos médicos e vai morrer.
– Mas, como? O que aconteceu?
– Ele brincava em casa, com vários amigos entre os quais um primo, um tanto desequilibrado. A brincadeira se transformou em briga, e esse primo, tomando uma tesourinha de unhas que encontrara sobre um móvel, investiu contra ele e cravou-lhe uma das pontas perto da arcada de um dos olhos. Apesar de ser muito profundo, esse ferimento não seria nada, mas acontece que, evidentemente, a tesoura não estava desinfetada e o resultado foi uma infecção pavorosa, cujo alastramento os remédios não puderam conter. Você reze por ele.
Naquele tempo, os antibióticos ainda não existiam. Os médicos davam o menino por perdido, pois o organismo dele estava reagindo mal, com febre alta e delírios…
Mamãe também me disse:
– É a primeira vez que morre uma pessoa próxima de você. Então, é preciso que se prepare para sentir os reflexos da morte.
Ela me falava com muito carinho, mas, naturalmente, a ideia da morte me impressionou e vieram-me ao espírito as seguintes perguntas: “E eu, que por todo lugar encontro antipatias, não posso de repente receber uma tesourada em cada olho? O que pode me acontecer? Morrer! Que horror! A morte pode me agarrar de um momento para outro! E aonde me levará?!”
Rezei alguma oração por esse meu colega e continuei a brincar, mas não conseguia esquecer-me do assunto.
A infecção não foi debelada: poucos dias depois, deu numa meningite e o menino morreu.
Quem poderia prever que uma briga entre rapazinhos de boa família iria degenerar num crime? Quem haveria de dizer que esse crime causaria a morte daquele colega? Ele me parecia estuante de saúde, dando-me a impressão de uma taça de champagne, espumante de vida! A morte passara por ele dizendo: “Venha! Acabou-se!”
Que coisa terrível!
Recordações do colega falecido
Não pude ver o corpo do menino, mas comecei a lembrar-me dele, de sua mãe e de sua família…
Recordava-me de duas palmeiras muito bonitas, existentes em ambos os lados da residência dele. Certamente, eu não iria mais frequentar aquela casa. As palmeiras continuariam lá, mas o menino estava estendido no cemitério. Oh! A morte…
Eu não tinha especial amizade com ele, mas apenas certas relações. Dava-me muito mais com um primo dele, o qual era um dos quatro ou cinco amigos que eu tinha no colégio…
As famílias deles eram conhecidas da minha e voltávamos juntos do São Luís quase todos os dias, pois as nossas residências eram próximas. Alguns dias antes, ambos haviam estado juntos em minha casa, após as aulas, pois desejavam falar comigo. A presença do outro menino me pareceu normal, pois já me visitara em algumas ocasiões, mas não esperava a vinda daquele colega.
Tocaram a campainha e um criado abriu. Ao encontrá-los, eles me olharam. Todos tínhamos entre dez e doze anos e, nessa idade, a sensibilidade de uma criança quando vai à casa da outra é enorme, pois ela entra num mundo diferente do seu.
Percebi o juízo que fizeram a meu respeito e lembro-me da impressão que tive dos dois, em pé, junto à porta de entrada.
Aquele que pouco depois iria morrer parecia-me o tipo perfeito da criança bem sucedida, humanamente. Era o modelo do que se poderia desejar nessa matéria: de companhia agradável, com um modo de ser amável, próprio de certo gênero de pessoas bem educadas. Tinha a fronte proporcionada, olhos e cabelos pretos, brasileiro a cem por cento, vestido e penteado com a maior perfeição.
Era muito vivo e tenso, no bom sentido da palavra, com uma grande capacidade de realização, que parecia exprimir-se nas pontas dos dedos e na ponta do nariz, o qual era aquilino e adunco, conferindo-lhe certo aspecto de ave de rapina, enquanto a cabeça e o pescoço, com jeito crítico e dominador, davam-lhe o ar de um garnisé.
Ele passaria por um pequeno conde e tinha um pouquinho de arrogância, não em relação a mim, mas no modo de considerar tudo, parecendo olhar com o nariz… Lembro-me dele, analisando a porta de minha casa, como quem verificava a sua qualidade e, depois, examinando o criado.
O primo dele, pelo contrário, era desgracioso, mas muito mais inteligente, subtil e bom observador. Foi uma das pessoas mais engraçadas que conheci em minha vida, com uma enorme vitalidade, feita de emoções vivas e grandes depressões.
Dentre os três, quem fazia o papel do menino sem graça era eu. Eles chamavam muito mais a atenção, por serem mais brilhantes e dotados do que eu, sob alguns aspectos, pois a minha placidez e propensão para a reflexão me levavam a ter certa introspecção, cujos frutos só apareciam numa conversa profunda, o que não agradava as pessoas superficiais.
Eles entraram, sentamo-nos, tivemos uma boa prosa e nos despedimos.
A morte desse menino causou-me uma impressão muito salutar a respeito dos desígnios de Deus. Durante essas férias, passei alguns dias com dificuldade de pensar em outra coisa.
No velório de um outro companheiro
Não posso me esquecer de que, não muito tempo depois, por coincidência, morreu um outro colega meu, de família abastada. Nessa ocasião eu já estava um pouco mais experiente, e capaz de formar melhores opiniões e juízos sobre as coisas.
Não sei qual foi a causa de sua morte, mas fui ao enterro dele, o primeiro a que assisti em minha vida1. A casa desse menino tinha uma sala de visitas com pé-direito muito alto, móveis dourados e grandes espelhos, os quais, na ocasião, estavam todos revestidos de gaze preta, bem como os lustres. O ambiente era iluminado apenas por quatro velas, em torno do caixão.
A residência estava cheia de familiares do falecido e de alunos do Colégio São Luís. As pessoas entravam sussurrando e iam abraçar os pais dele ou os parentes que se encontravam em torno do esquife. Quando chegava alguém muito íntimo do morto, havia soluços da parte da família e do amigo, uns chorando nos ombros dos outros…
Em certo momento, pouco antes do enterro, foram avisar a mãe do menino que havia chegado a hora de fechar o caixão e, portanto, ela podia despedir-se do filho. Então, ouvi gemidos no andar de cima da casa e depois vi a senhora entrar, apoiada no marido e quase carregada por pessoas da família, enquanto todos abriam caminho à sua passagem. Ela chorava e gritava de modo lancinante:
– Aaah! Ai, meu filho, meu filho! Como a morte te levou, ó meu filho?! Ai! A morte, a morte! Meu querido, meu querido!
Parecia a própria imagem da dor.
Ela aproximou-se do caixão, osculou o menino, pôs-lhe a mão na cabeça e continuou a soluçar, repetindo o nome dele. Era uma verdadeira dilaceração.
Aquela cena mostrava o quanto essas pessoas levavam a sério a vida e a morte. Eu olhava tudo com olhos arregalados e pensava: “Onde estará a alma dele? Se estiver no Céu, oh! maravilha! E se estiver no purgatório, para queimar durante dez, cem ou quinhentos anos, por haver consentido num mau pensamento, do qual se arrependeu apenas na hora da morte? Se eu fosse mandado permanecer no fogo por um dia inteiro, o que diria? Como é isso? E se foi para o Inferno?! Ele que foi um rapaz simpático e agradável, como deve estar? Ardendo de ódio e desespero, para todo o sempre, e blasfemando contra Deus?”
Essas meditações fizeram-me um enorme bem.
A solenidade dos enterros
Naquele tempo, os funerais e todo o ritual que envolvia a morte tinham uma grande respeitabilidade, pois os atos da sociedade ainda eram muito pervadidos pela consideração da presença de Deus.
Os veículos de enterro eram carruagens, com plumas pretas colocadas sobre quatro colunas, e cavalos adornados com plumas da mesma cor, como no tempo do Ancien Régime. O cocheiro e os acompanhantes, empregados da funerária, usavam chapéus bicornes de estilo napoleônico, culotes, meias pretas e sapatos de verniz.
Outra cena interessante era o funeral italiano.
Na Alameda Barão de Limeira, quando ouvíamos ao longe uma música forte, teatral e popular, já sabíamos o que era: o enterro de uma criança, filha de imigrantes.
Então, deixávamos o estudo e íamos correndo ao portão ou à janela, sem a Fräulein perceber, pois essa atitude seria considerada por ela uma grave infração ao dever de estudar Aritmética ou Geografia, matérias muito menos entretidas, para nós, que o enterro do bambino…
Víamos passar o cortejo, o qual tinha à frente uma banda tocando, com os clarinetistas na primeira fileira. Os seus membros vestiam uniformes de Bersaglieri2, com chapéu militar, feito de uma espécie de tela encerada, preta e lustrosa, com abas pequenas e tendo atrás um rabo de galo, brilhante e tingido de preto, o qual se movia quando eles gesticulavam. Utilizavam um paletó de estilo também militar.
Se a família tinha posses, o esquife de uma criança recém-nascida, todo revestido de tecido branco, era levado sobre um automóvel da mesma cor. Não havia acompanhamento religioso, pois, sendo o defunto batizado e inocente, não tivera tempo de pecar e, portanto, morrera em estado de graça. A família, em automóvel ou a pé, conforme os recursos, não manifestava desolação, mas mantinha uma atitude discretamente festiva. Aquilo parecia uma pequena canonização, de alguém que havia ido diretamente para o Céu!
A música exprimia a alegria da subida de um anjinho ao Paraíso e a homenagem àquela alma santa que já estava rezando pelos outros. Era uma cena bastante pitoresca, representando a solidez da instituição da família e com muitas marcas de Fé.
1 Essa afirmação parece entrar em contradição com os episódios narrados acima, a respeito do falecimento de outro jovem, conhecido do Autor. Porém, os documentos utilizados nesta compilação permitem provar que as mortes referidas neste capítulo se deram na sequência cronológica aqui apresentada. No primeiro caso, o Autor pode ter assistido apenas ao velório, sem comparecer ao enterro.
2 Soldados italianos de infantaria ligeira.
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