Troca de vontades
Dr. Plinio estava tão unido a Dona Lucilia que havia uma identidade de vontades entre ambos, ou seja, tinham o mesmo estado de espírito e a mesma mentalidade. Respeitadas as legítimas diferenças temperamentais, essa união se dava no pensar, querer e sentir.
Dadas as qualidades de Dona Lucilia, naturalmente a condição de mãe que ela exercia com aquela plenitude de afeto sobre a qual já tive ocasião de me referir várias vezes, ela modelou muito o meu estado de espírito. Mas eu também era muitíssimo apetente de ser modelado pelo estado de espírito dela.
Identidade de vontades
Sinto muito isso numa fotografia em que estou com ela, em Águas da Prata. Ela estava, no máximo, com uns quarenta anos, e eu era menino ainda. Ali estou pendurado em mamãe, querendo saber o que ela diz, o que está pensando, enfim, tudo.
Mas como relações entre mãe e filho, eu achava a coisa inteiramente normal e tinha a ideia de que, mais ou menos, todos os filhos tinham uma relação análoga com suas respectivas mães. Depois, com o tempo, percebi que não era assim.
Provavelmente, por vias de hereditariedade, eu tinha um fundo temperamental parecido com ela, mas além disso havia uma graça por onde o modo de ela conceber a vida e de sentir diante das coisas era inteiramente afim comigo. Quer fossem matérias da piedade, quer da vida moral interna da pessoa. De tal maneira afim que não percebo ter havido nesse campo a menor diferença entre nós. E o que ela via e sentia é precisamente o que eu via e sentia também, embora em outros campos houvesse diferenças muito grandes, exigidas pela minha vocação como, por exemplo, o feitio batalhador.
Então, o modo de ver a Igreja, o Sagrado Coração de Jesus, de sentir a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, o modo de nos querermos bem, de sentirmos como as pessoas se devem relacionar, a maneira de pensar nas coisas que ela não sabia serem metafísicas, etc.
Tudo isso em mim tem muito mais explicitude, é claro, pois minha vocação o exige. Mas o cerne, a matéria-prima é precisamente a mesma dela. Com uma semelhança que chega a não ter elementos de dessemelhança, de maneira tal que não vi ainda semelhança entre duas pessoas igual a essa.
A meu ver, isso descreve bem o que parece ser a identidade de vontades.
Por vezes, a expressão “fazer a vontade de alguém”, em ouvidos contemporâneos parece não dar bem tudo quanto está nela. Porque “fazer” manifesta, em geral, a ideia de uma ação externa. Então, “fazer a vontade” seria realizar atos externos conforme a intenção da pessoa.
Ora, na identidade de vontades trata-se de uma coisa mais profunda: ter o estado de espírito, a mentalidade de outrem; respeitadas as legítimas diferenças temperamentais, possuir aquele núcleo interno de pensar, querer e sentir, que é precisamente o ponto onde a união se dá.
Um perdão na ponta dos lábios
No Quadrinho1 e na fotografia com base na qual ele foi pintado, esse núcleo aparece muito bem. Ali há um estado de temperamento. Sem dúvida, Dona Lucilia sabe estar sendo fotografada e presta atenção em quem a fotografa. Mas ela tem uma segunda atenção muito acima disso. É meio indefinível, entretanto; parece ser um balanço de conjunto da existência dela, do mundo, da humanidade, colocados em presença de Deus, como quem diz: “Posto que assim sejam as coisas, qual é minha posição pessoal perante tudo isso? Assim foi minha vida, assim é o universo, assim é a Igreja. Fiz o balanço total.”
Parece-me que esse balanço está muito presente nesse semblante, porém como quem já tirou o resultado e tomou uma atitude ao mesmo tempo encantada e suavemente decepcionada.
Sentia-se muito isso no final da vida de mamãe, como se ela dissesse: “Tudo não é senão coisa contingente, passageira, só Deus fica na sua sublimidade, na sua eternidade, na sua bondade. Entretanto, Ele ama essas coisas e tem para elas um lugar de compaixão. Eu compreendo isso e participo da rejeição d’Ele ao mal e do seu amor ao que há de bom dentro disso. Assim, distancio-me de tudo isso, achando o que está certo em mim e na obra de Deus.” Isso supõe uma suavidade, uma bondade, mas também uma largueza de vistas que está muito acima, por exemplo, da cogitação média habitual das senhoras e dos homens, hoje.
Nota-se nessa fisionomia um modo de estar tranquila, amena, afável, e um perdão na ponta dos lábios para qualquer falta, por pior que tenha sido. Mas também, se a pessoa não pedir perdão e a coisa ficar rompida até o fim, Dona Lucilia morre na suavidade diante dessa ruptura.
É como eu vejo esse Quadrinho.
Acredito que, à força de sermos tratados assim por Dona Lucilia, alguma coisa dessas acaba por penetrar em nós. E, penetrando, pode ainda desenvolver-se. Entretanto, deve-se notar bem que isso é de tal maneira contrário ao espírito moderno, que supõe uma modificação muito grande, a qual pode se fazer com uma rapidez espantosa, por meio de uma graça.
Demoras cruciantes
Quando vem essa graça? Aí se entra no terreno cruciante das tais demoras de Deus, de Nossa Senhora.
Ainda hoje, não sei por que, pensando nisso, me passou pela cabeça a questão da dispersão do povo judaico que se fez quarenta anos depois de Nosso Senhor morrer. Quer dizer, Ele profetizou, passou-se quase meio século até se cumprir. Por que quase meio século? Para Ele era pouco, mas para a vida de um homem… Os Apóstolos, por exemplo, durante quarenta anos viram Jerusalém próspera, comendo, bebendo, dormindo; no Templo, cujo véu se tinha rasgado durante o terremoto, se repetiam os sacrifícios, eram eleitos sacerdotes prevaricadores, a religião deles continuava a funcionar normalmente.
São Tiago morreu sem ver a destruição de Jerusalém. É uma coisa espantosa! E surgem problemas internos: São Barnabé com São Paulo; São Pedro com São Paulo.
Eles, portanto, passando por todas essas coisas e o Templo impávido, quase caçoando dos Apóstolos. Podemos imaginar, durante quarenta anos as populações que subiam a montanha do Templo cantando, etc.; e, nada, nada. De repente, vem aquele arrasamento.
A vida espiritual tem às vezes demoras cruciantes. Deseja-se uma graça durante décadas, e não vem. De repente ela chega.
Por que Nossa Senhora tarda em atender? Por que Santa Ana e São Joaquim tinham que estar velhos quando a Santíssima Virgem nasceu? Simplesmente não se sabe…
Devemos nos pôr a pedir, pedir, pedir! Às vezes essa graça é concedida sem que a percebamos. Continuamos a suplicar e não notamos que a graça foi dada. São os mistérios da conduta de Nossa Senhora.
Por exemplo, quando desejamos muito essa troca de vontade, o querer muito já é um começo de trocar, sem dúvida. Entretanto, não percebemos; quando manifestávamos esse desejo, já era o começo da troca. É muito misterioso, mas é assim.
A natureza das disposições de alma que as pessoas obtêm pedindo a intercessão de mamãe, ao rezar junto à sua sepultura, é tal que se nota tratar-se só de um começo, e essas graças vão muito para a frente. As pessoas percebem que andando na luz dessas graças vão por um caminho definido, no qual não se é urgido a andar, mas que de boa mente são atraídas e convidadas a percorrer.
Há uma passagem das Sagradas Escrituras que diz: “Atraí-nos com o perfume dos vossos unguentos e nós correremos” (cf. Ct 1, 3-4). Isso se aplica a todas as ações da graça. Portanto, pode adequar-se também à graça obtida pela intercessão de Dona Lucilia. Há um “perfume” que leva a pessoa a correr, ao notar aberta diante de si uma larga caminhada rumo ao porto ou ao ponto certo.
Amor e reparação
Mamãe transbordava de adoração para com Nosso Senhor Jesus Cristo, e era gratíssima a Ele. Mas a nota característica da piedade dela, em relação ao Sagrado Coração de Jesus, consistia no amor e na reparação. Para ela o Sagrado Coração de Jesus era visto por excelência como o grande rejeitado, o grande injustiçado, que amou os homens de um modo inextinguível e foi sempre mal correspondido. E é enquanto ofendido que ela O adorava. De uma adoração evidentemente reparadora, pois tinha a intenção de reparar.
Ademais, ela pedia muito, era muito suplicante.
Assim, adoração, reparação e petição eram as três notas distintivas de um culto que transbordava de gratidão.
Um fatinho que acho nunca ter contado, mas que Dona Lucilia narrava com uma gratidão única.
Quando arrebentou a revolução de 1930, o Washington Luís andou com sanhas de convocar todos os moços para pegarem em armas para defendê-lo. E mamãe não quis de nenhum modo que eu fosse. Eu também não queria. Fui a uma fazenda de amigos, em Campos do Jordão, e ali fiquei durante o período da revolução.
Dona Lucilia ficou muito preocupada com esse assunto, receando que, de repente, nos recrutassem lá e eu fosse levado para a frente de combate.
Certo dia, ela foi rezar nessa intenção junto à imagem do Coração de Jesus, na sala de visitas de casa. Levou uma rosa para Ele e pediu-Lhe que, com a maior urgência, fizesse cessar esse tormento, e desse um sinal de que atenderia a essa súplica.
Em seguida, desceu da sala para o jardim, provavelmente para continuar a rezar um pouquinho. Começou, então, a ouvir o troar de canhões, ficou alarmada e foi ver o que estava acontecendo. Pouco depois chegaram informações de se tratar do fim da revolução. Dona Lucilia foi correndo à imagem do Sagrado Coração de Jesus para agradecer e encontrou a rosa toda desfolhada no chão. Até o fim da vida ela vibrava de gratidão quando contava isso.
Não obstante, a nota preponderante da devoção dela ao Sagrado Coração de Jesus era a reparação. Isso se refletia de modo muito equilibrado no trato dela comigo, em meu tempo de criança.
Quando eu fazia uma ação má, ela me chamava e dizia as razões pelas quais aquilo era ruim. Naturalmente, explicava que ofendia a Deus, era pecado, etc. De vez em quando ela dizia também: “Você não percebe que faz sofrer sua mãe?” Ao dizer isso ela deixava entrever tanto sofrimento, mas um sofrimento tão cheio de afeto e de uma tristeza injustamente desferida por mim nela, que me cortava a alma. E me ajudava muito a fazer o propósito de não repetir o que eu tinha feito. v
Plinio Corrêa de Oliveiria (Extraído de conferência de 5/3/1983)
Revista Dr Plinio 229 (Abril de 2017)
1) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia. Ver Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.
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