Um menino anticomunista
O fim da Primeira Guerra Mundial havia dado ocasião a várias revoluções entre os vencidos, nos principais países da Europa. Não foram todas sangrentas, mas se realizaram com base na ameaça da força, como a deposição da monarquia na Alemanha e na Áustria: os monarcas se retiraram para evitar a violência.
Eram fatos próprios a marcar muito a imaginação das pessoas, mas especialmente a de um menino. Então, a ideia de enormes magotes populares, cantando hinos revolucionários e aproximando-se das grades dos palácios dos reis, enquanto estes saíam fugindo para não serem mortos; tudo isso me ficava na mente, de modo muito dramático. Pensava no Kaiser, Imperador da Alemanha, expulso para um castelo na Holanda; no Imperador da Áustria, morrendo de tuberculose na Ilha da Madeira, numa verdadeira miséria…
E, entre esses acontecimentos, o que mais causou impressão no Brasil e no mundo foi a Revolução de 1917, que depôs o Tzar e introduziu o comunismo na Rússia.
Impressões sobre a Revolução Russa
Evidentemente, quando essa revolução arrebentou, eu tive certa noção do que estava acontecendo, pois o fato causou tremenda impressão e foi muito comentado no ambiente doméstico. Porém, tendo apenas nove anos nessa ocasião, eu não era capaz de analisar bem as opiniões em torno de mim, e nem me lembro claramente dessas notícias a respeito do comunismo na Rússia.
Entretanto, guardo memória de ouvir, uns dois anos depois, a narração impressionante do massacre praticado contra a família imperial russa.
O Tzar, a Tzarina e os filhos estavam presos na casa Ipatiev, na cidade de Ekaterinburg, quando, em determinado momento, os comunistas mandaram acordá-los durante a noite com ordem de se reunirem no porão. Vestiram-se depressa – pois eram prisioneiros e tinham de obedecer – e desceram ao porão, onde foi lido para eles um decreto condenando-os à morte. Em seguida, os homens armados que estavam lá assassinaram-nos de modo atroz.
Eu nem sabia que o Tzar não era católico. Para mim, era um coitado, uma vítima, quase um mártir!
Ouvi falar também de outras chacinas feitas pelos comunistas, especialmente com numerosos membros da nobreza russa: primos do Tzar, que usavam o título de grão-duques, príncipes e princesas, mortos de maneira bárbara.
Uma escuridão sinistra sobre a Rússia
Eu ainda não tinha informações exatas sobre a perseguição religiosa na Rússia. Ouvia algumas pessoas mencionarem execuções de Sacerdotes, com muita indignação humanitária, porque o Padre era um ente humano e não podia ser tratado assim, mas não por inconformidade ao verem a Religião perseguida.
Tudo isso arrepiava as pessoas como sendo um estampido de selvageria, que horrorizava e causava um profundo desagrado no mundo ocidental. E, no Brasil, a ideia principal era o horror à carnificina… Derramara-se muito sangue. O comunismo era apresentado como o partido da crueldade, formado por certa faixa da humanidade muito ruim que existia na Rússia. E inclusive os republicanos comentavam:
– Comunismo? Um regime de brutalidade e de falta de julgamento! O Tzar e a Tzarina não puderam se defender, mas foram massacrados como animais. Onde se viu isso?
Naturalmente, as senhoras se impressionavam mais do que os homens com a crueldade do comunismo, mas nessa diferença não havia nada de especial. Assim, a imagem que se fazia do comunismo era bastante real, mas, ao mesmo tempo, muito vazia.
Então, todas essas narrações formavam em mim uma miscelânea de ideias: percebia que haviam sido cometidos crimes medonhos, pois muitas pessoas tinham sido mortas, e que fora estabelecido um regime de desordem, o qual tinha feito descer sobre a Rússia uma escuridão sinistra, à maneira das noites polares nas quais nunca se faz dia. Tinha a impressão de um tal caos que, de vez em quando, encontrar-se-ia na rua um carro parado ou um bonde quebrado, porque os operários tinham se recusado a trabalhar… Imaginava o pedaço de um móvel quebrado, roubado de uma casa fina e depois queimado… Uma tirania feroz; todo mundo com carranca tremenda, trabalhando pouco, com tristeza, para viver mal.
Nesses pontos, o quadro era bem próximo da realidade, apesar de apresentado por uma imaginação infantil. Mas a noção da partilha dos bens e do princípio da propriedade privada negado, ainda era muito mais vaga para mim, talvez por ser menos comentada na São Paulo daquele tempo.
Reflexões sobre o perigo comunista
Quando fui me tornando um pouco mais velho, e também a recordação desses crimes foi diminuindo, notei que o aspecto mais mencionado a respeito do comunismo não era a história desses morticínios passados, mas a comunidade de bens. Entretanto, mesmo esse tema era muito pouco abordado nas conversas, o que me chamava a atenção.
Eu percebia que as senhoras reputavam essa comunidade como tendo certa analogia psicológica com a crueldade dos comunistas, dando a entender que também era cruel quem queria a supressão da propriedade privada. Do mesmo modo, as pessoas muito cruéis seriam tidas como comunistas. Tratava-se, portanto, de uma espécie de forma de ser criminoso.
Os senhores, em geral homens muito bem colocados, tomavam diante do assunto uma posição desinteressada. E, quando alguém mencionava o problema da propriedade privada e a comunidade de bens, assumiam a atitude distraída de quem não estava achando graça na conversa. Ou seja, essas pessoas tinham horror ao comunismo, mas como se tem horror de uma fera que está presa na jaula. No total, a Rússia funcionaria como a jaula do comunismo, o qual parecia um fenômeno acantonado nas geleiras eternas, fadado a não se expandir pelo resto do mundo.
Porém, inúmeras vezes ouvi mamãe participando de conversas em atitude de quem considerava o comunismo o mal dos males, a catástrofe das catástrofes e a infâmia das infâmias, e julgava que, mais cedo ou mais tarde, ele atingiria o Brasil. Entretanto, ela julgava que isso se daria num futuro tão incerto, que não fazia prognósticos sobre a data. Apenas tinha a ideia de um perigo universal.
Também, de vez em quando, eu ouvia uma ou outra senhora perguntar para um homem:
– Mas, você não tem receio de que isso venha para o Brasil?
E ele dava uma reposta assim:
– Não! Isso não é para nós! Nem precisamos pensar no assunto! O comunismo não é um perigo! Ele nunca se espalhará, pois, sendo tão extravagante, é impossível que os homens bons o aceitem! Além do mais, o Brasil não está maduro para o comunismo.
Era um refrão que eu ouvia várias vezes. Ora, esse era um ponto de desacordo comigo, pois eu achava que o comunismo era, de fato, um perigo. Porém, naqueles meus doze anos, ainda não tinha a arte de explicitar, como a aprendi mais tarde. Percebia que a atitude deles era errada, mas infelizmente não sabia formular a pergunta que estava no meu espírito: “Como o senhor define essa maturidade? Diz-se de um fruto que está maduro, mas o mesmo poderia ser dito de um tumor… Então, uma coisa boa, que chegou à sua plenitude, está madura; e uma evolução má, que também atingiu sua plenitude, está igualmente madura. O senhor acha que a maturidade boa do Brasil, nas suas qualidades, chegará até o comunismo? Ou o senhor pensa que a podridão existente em nosso País ainda não é tão grande, mas que vai chegar até lá? Então, eu pergunto: não é melhor começar a combatê-la agora, em vez de esperar que cresça ainda mais?”
Eu não dizia isso e ficava quieto, mas me ralava!
Atitudes contraditórias diante da Revolução Russa
Além do mais, notava que muitas pessoas que me circundavam, inclusive alguns monarquistas, tomavam em face da Revolução Russa uma atitude fundamentalmente contraditória. Sob certo ponto de vista, tinham horror a ela, mas, por outro lado, afirmavam que o regime czarista era de um despotismo pavorosamente antipático, no qual a prepotência ou preponderância da classe nobre se tornara injusta e irritante, e que uma revolução se impunha. Assim, eles justificavam o ódio dos que estavam por baixo contra a estrutura que derrubavam. Mas, depois, quando comentavam esse ódio na ação, que chegava até o crime, diziam:
– Não precisavam ter matado ninguém! Pelo contrário, deveriam ter confiscado uma parte dos bens pertencentes aos membros da nobreza, e deixado para eles algum dinheiro.
Eu já começava a tornar-me mais capaz de notar as correntes de opinião e, inclusive, os laivos de opiniões diversas e contraditórias existentes na mesma pessoa, o que me deixava interrogativo, pois, com o favor de Nossa Senhora, era feito de uma só peça e não compreendia a contradição. Então, perguntava-me: “Como é isso? Esse homem está deitado na contradição, como num sofá onde ele se escarrapacha? É um preguiçoso!”
Nas primeiras vezes em que notei essas contradições, pedi explicações:
– O senhor não vê que está numa contradição?
Fui acolhido com sofismas ou, então, com respostas evasivas, e percebi que meus interlocutores sabiam estar em contradição, mas não se incomodavam, pois, para eles, isso era perfeitamente normal. Portanto, essa atitude tinha uma lógica que não ousavam confessar nem para si mesmos, a qual continha afirmações subjacentes e ocultas, que também não queriam revelar. Essa ideia de um subsolo mental, no espírito de pessoas muito próximas de mim, me levou a fazer análises à maneira de escavações, e a verificar o inconsistente e oco da sociedade em que eu vivia.
Alguém me disse:
– Na Rússia, deveriam ter feito mais ou menos o que se fez na proclamação da República no Brasil.
Eu pensava: “No Brasil, compreende-se que tenha havido pouco ódio, pois a República foi proclamada após o regime imperial mais benigno que se possa imaginar. Mas, se existia na Rússia uma situação que determinava um ódio justo, não se poderia dizer que os comunistas foram simplesmente carniceiros. Seria preciso dosar essa afirmação! Em consequência, eu pergunto: era justo esse ódio? O que desejavam eles? Bem entendido, é verdade que havia qualquer coisa de exagerado e de disforme na monarquia russa, e mesmo no modo de as classes sociais estarem dispostas, umas em relação às outras. Mas, os comunistas deveriam ter derrubado o regime até esse ponto? Eles fizeram algo muito pior do que a situação anterior! Então, para que igualar tudo? Igualdade, vem cá! Quais são os teus direitos ao fanatismo com que tu és defendida, inclusive por aqueles que se arrepiam com a ferocidade de teus defensores? Vamos ver e examinar! Se é em teu nome que se fez essa revolução, eu quero te julgar!”
Também me perguntava: “Como era o povinho da Rússia? Seria tão odiento assim?” E não tardei em perceber que os mentores da Revolução Russa não haviam levantado propriamente o povo contra a burguesia e a nobreza, mas o tinham envenenado antes, espalhando no meio dele um ódio que vinha, no fundo, da alma de alguns pequenos burgueses estudiosos que frequentavam os alfarrábios. Assim, depois de envenenado o povo com esse ódio burguês, eles o lançaram por cima da própria burguesia.
E concluía: “Então, além do mais, a mentira está a serviço desse ideal comunista…? Eu devo tomar as minhas distâncias e reservas em relação a ele”.
Uma grande injustiça nas relações humanas
Em certa ocasião eu li no jornal o caso de uma senhora russa que fugiu dos comunistas, perdeu toda a fortuna e foi morar em Paris, onde aceitou o emprego de lavadora de louça na casa de uma família muito rica e parvenue. Como possuía um título de nobreza, várias pessoas achavam interessante convidá-la para festas e ela então comparecia como se fosse uma dama de alta situação, mas depois ia dormir num tugúrio qualquer, para recomeçar o seu trabalho no dia seguinte. Aconteceu que certo dia telefonou para ela uma outra senhora rica, cuja fortuna tinha sido feita em pouco tempo, e disse-lhe:
– Como está reinando na Rússia uma grande miséria, o governo comunista resolveu pôr à venda vários objetos de luxo confiscados, pertencentes outrora aos nobres. Eu comprei uma baixela de ouro e convido você para vir hoje à tarde, pois vou oferecer um lanche nesse serviço.
Tratava-se de uma injustiça, pois esses objetos haviam sido roubados pelos comunistas, mas a senhora russa aceitou o convite. Qual não foi a impressão dela, ao reconhecer a sua própria baixela de ouro! Ela olhou em volta e pensou que a dona da casa iria dar-lhe a baixela naquele ato, mas percebeu pela conversa que ninguém estava pensando nisso, e começou a lacrimejar, enquanto tomava o lanche no serviço que havia sido dela. Então, em certo momento perguntaram-lhe:
– Por que você está chorando tanto?
Ela respondeu:
– Vou dizer. Ponham-se no meu papel e compreenderão. Isto foi meu, e eu passei os melhores dias da minha vida tomando chá neste serviço todas as tardes. Agora está nas mãos de outra pessoa, a quem felicito, pois ela tem com isso um elemento de satisfação, mas é compreensível que eu tenha saudades dos dias de felicidade que vivi.
– Ah! É verdade. Coitadinha!
No fim, todos se despediram dela, que saiu sozinha e a pé, enquanto as outras tomavam bonitos automóveis, e a baixela de ouro permaneceu na casa da senhora parvenue.
Isso era contado no jornal como um fato interessante, mas eu fiquei indignadíssimo, pois compreendi que não se tratava apenas de uma injustiça individual feita pela falsa dona da baixela contra a verdadeira, mas de todo um sistema errado de relações humanas, sem noção de propriedade privada nem de justiça.
Os colegas face ao comunismo
Assim, todas as narrações a respeito dos acontecimentos havidos na Rússia me pareciam absolutamente indignantes, além de toda expressão. Mas eu notava que meus colegas não se interessavam por isso. Em geral não aprovavam o comunismo, mas também não o reprovavam. Eles nada tinham a ver com o assunto. Que o mundo caísse! Que a Europa se esboroasse! Eles não se incomodavam, pois eram ricos e felizes, tinham automóveis, comiam à vontade, iam passar férias em Guarujá, em Santos, em Campos do Jordão ou nas fazendas. Divertiam-se! O resto, pouco importava, pois o gozo era a grande finalidade da vida.
Por exemplo, certo aluno muito turbulento do Colégio São Luís fazia de conta que não sabia o que se passava na Rússia, mas era muito compassivo em relação a qualquer facínora, contra o qual agisse alguma polícia do mundo. Nesse caso, as simpatias dele e de outros meninos se acendiam, causando indignação e conversas, mas o assassinato do Tzar e de sua família pelos comunistas não despertava nenhum comentário.
Alguns colegas, inclusive, achavam a Revolução Russa muito boa. Segundo eles, assim mesmo deveriam ser as coisas, pois esses monarcas eram homens iguais a todos, mas se apresentavam como superiores, o que não se podia aceitar!
A greve de 1917 em São Paulo
Eu ouvi também pessoas de minha família comentarem as revoluções e motins comunistas havidos em São Paulo, no ano de 19171. Falavam de piquetes de operários imigrantes, que vinham do Brás para o centro da cidade, a fim de proclamar o comunismo em São Paulo. E o Governador Washington Luís lançava a Força Pública em cima deles, em cargas de cavalaria, para acabar com esse movimento anarquista. Então, diziam que ele fizera a famosa afirmação, a qual não creio ser verdadeira, pois é estúpida e mal pensada: “A questão social é uma questão de pata de cavalo”.
Igualitarismo entre alunos e professores
Eu notava que certas formas de respeito para com os professores ainda existiam no Colégio São Luís, sobretudo quando o professor era Padre. No momento em que este entrava na sala, todos se levantavam e rezavam. Ele se sentava na cátedra, punha o barrete e começava a dar a sua aula.
Entretanto, certos alunos continuavam a fazer pontas de lápis e a mexer nos objetos enquanto o Padre entrava. Rezavam também, mas eu percebia que aquela minúscula e rotineira cerimônia estava sendo corroída nas suas duas pontas: era acompanhada pelos alunos com atraso e, antes de terminado o pequeno ato ritual, alguns já estavam alheios a ele, cuidando de outras coisas.
Por outro lado, muitos professores gostavam de dar aula fora da cátedra, em pé ou andando de um lado para outro, numa igualha com os alunos.
Alguns dos meus colegas também achavam engraçado dar um tapa no barrete dos Padres para fazê-lo cair. Entretanto, como até na atitude de um menino a Revolução é esperta, aquilo não era praticado como um ato de agressão. Nunca! Às vezes, um aluno, andando pelo corredor ou pelo pátio, conversando afetuosamente com um Sacerdote, de repente jogava-lhe o barrete no chão e tratava-o apenas pelo nome.
Lembro-me especialmente do Pe. Achótegui2, nessas circunstâncias. Um aluno lhe dizia, amável, com ar de intimidade e brincadeira:
– Então, Achótegui! Lá foi para o chão o seu barrete?
Ia correndo à frente dele, apanhava o barrete e devolvia-o. Mas eu estava vendo que, em pouco tempo, os alunos não o apanhariam mais, e seria o próprio Sacerdote que o faria. O respeito à autoridade era destruído em todos os campos e de todos os modos.
Respeito de Dª Lucilia pelas empregadas
Para mim, a pessoa de mentalidade mais anticomunista que eu conhecia era mamãe. Numa civilização onde todo mundo fosse à maneira dela, haveria harmonia, acordo, respeito e afeto.
Ela tratava as pessoas com muita objetividade e com o grande senso de justiça e de amor ao próximo, que caracteriza a Religião Católica, reconhecendo o que Deus concedera a cada um, dando-lhe o mérito adequado e mostrando prazer e alegria em tributar a todos o devido respeito.
Por exemplo, ela nunca repreendia as empregadas na minha presença, nem de minha irmã, mas em separado para não as humilhar. E, quando tinha de despedir uma delas – em via de regra, por alguma desinteligência – fazia-o a sós.
Certa vez, entretanto, eu assisti a essa cena de despedida, por estar aberta a porta da sala onde mamãe se encontrava. Sentada, numa atitude inteiramente distendida, ela atendia com muita bondade a uma criada de quarto chamada Benedita. Mulher enorme – para minha ótica naquele tempo –, com fisionomia um tanto preguiçosa e olhos que pareciam não ver longe por falta de vontade. E mamãe disse-lhe:
– Bem, eu já disse a você que é melhor sair. Então, vamos nos despedir agora, e lhe darei tanto.
O sistema do pagamento era curioso. Ela já havia feito as contas do que devia à empregada e, então, arranjava um papelzinho em que escrevia algo a lápis, com uma caligrafia sempre muito bonita. Depois, prendia o dinheiro no papel com um alfinete ornamental, o qual tinha uma pequena ponta colorida, de vidro ou de porcelana.
E concluiu:
– Eu desejo que você seja feliz, e que Deus a acompanhe.
E outras palavras desse gênero. Aquilo era uma espécie de pequeno julgamento, acompanhado de perdão. A empregada ouviu com respeito, agradeceu e desejou também felicidades para ela e toda a nossa família.
Assim, houve várias despedidas, todas nessa clave, das quais eu guardei uma lembrança genérica.
Em outra ocasião, voltando a pé da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, mamãe encontrou-se na esquina de casa com uma cozinheira chamada Belmira, a qual não trabalhava mais conosco – não sei por quê – e era empregada em outra residência. Deteve-se e conversou durante alguns instantes com a Belmira, o que levou certa pessoa da família a lhe fazer depois uma censura:
– Como?! Parar na rua para falar com essa empregada? Não tem propósito!
Ela disse:
– Eu o faço, e assim mesmo tem de ser.
Era a alegria dela em respeitar a Belmira. Mamãe, tão altamente respeitadora da família imperial!
“Reforma Agrária”: uma intuição
Quando eu ia para o Colégio São Luís, o meu bonde percorria interminavelmente a Rua da Consolação, às vezes formando uma fila com outros bondes, e sempre parava na esquina da Rua Coronel José Euzébio. Essa era uma ruazinha muito arborizada, que descia até junto ao Cemitério da Consolação, à esquerda de quem olha a porta de entrada.
Não posso me esquecer que, um dia, passando em frente àquela rua, a caminho da Avenida Paulista, olhando para fora, eu vi, de repente, uma casinha muito modesta, prédio térreo de moradia, provavelmente de operários, a qual tinha na porta uma placa de metal em cuja parte superior estava escrito: “Partido Comunista do Brasil” ou “Partido Comunista Brasileiro” – não me lembro bem – com um emblema.
Eu estava com a mente e os ouvidos lotados das ressonâncias da proclamação do comunismo na Rússia, e de tudo quanto se lhe seguiu. Então, quando li aquele título, a minha primeira ideia foi: “O governo deveria mandar fechar isso”. Mas, também imediatamente, pensei: “Se eu já fosse homem feito, e procurasse as autoridades, pedindo-lhes que fechassem esse partido, as pessoas dariam risada e diriam: “Plinio, não se preocupe! É um grupinho, numa ruela de nada! Uma casa de operários! Você dá importância a isso? É uma coisa ridícula! Isso nunca se espalhará num país católico como o Brasil!”
Entretanto, na parte inferior da placa, lia-se: “Reforma Agrária”. Sem saber por que, tive um arrepio e pensei: “Não sei o que significa, mas deve ser péssimo!”
Chegando a casa, perguntei:
– O que é Reforma Agrária?
Disseram-me:
– Ah! Isso é um movimento comunista, feito para dividir as terras dos proprietários.
Lembro-me que fiquei indignadíssimo e pensei: “Querem tirar as fazendas dos fazendeiros? Isso é um crime!” É de notar que nem meus pais nem minha avó possuíam terras e, portanto, essa reforma não me prejudicaria em nada, imediatamente. Mas aquela partilha, com base na igualdade, me dava impressão de imoralidade e de mau odor de pólvora. E concluí: “Por aí vai começar o comunismo! É preciso fechar-lhe o passo. Isso tem de acabar!”
Mas esse pensamento veio acompanhado de uma reflexão triste: “Compreendo que a palavra ‘agrária’ diz respeito ao campo. Ora, eu nunca entenderei os problemas do campo! Já estive várias vezes lá, mas aquilo para mim é um outro mundo. Podem dizer-me que é muito bonito, mas não o entendo. Portanto, para argumentar contra a Reforma Agrária, nunca saberei tratar sobre os assuntos do campo e, provavelmente, não disporei de gente que estude esses problemas para me ajudar”.
Essa foi a primeira vez em que meu olhar e minha inteligência pousaram sobre as palavras e o tema da Reforma Agrária.
Exercer o métier de ascensorista?
Eu começava a me perguntar: se viesse o comunismo ao Brasil e eu tivesse de exercer um métier, qual escolheria? Pensava que deveria ser um trabalho no qual eu não tivesse de me movimentar, devido à minha relutância em andar, e cheguei à conclusão de que seria ascensorista. “Perfeito – pensava –, eu trabalho sentado num banquinho, onde não existe possibilidade de erro, aperto aqueles botões e o elevador sobe e desce”.
Um menino anticomunista
Não tardei em perceber que, se não houvesse uma reação, o comunismo realmente haveria de tomar conta do Brasil e do mundo, pois todos os países caminhavam nos rumos da Revolução. Mas depois pensei: “De qualquer jeito, haverá uma solução, pois Nossa Senhora intervirá!”
E tinha a ideia de que haveria uma grande luta para que esse enorme adversário fosse derrubado. Não preciso dizer que, com essa mentalidade, eu já era anticomunista como o sou até hoje3, isto é, até onde se possa ser.
Assim, quando minhas ideias sobre o comunismo estavam se formando, comecei a ler também algo sobre a Revolução Francesa, na revista de L’Université des Annales. Então, irromperam diante de mim, de repente, Danton4, Marat5 e Robespierre6. E esse encontro foi um dos fatos determinantes de minha vida.
1 Trata-se da Greve Geral, de julho de 1917, de inspiração anarquista, que se estendeu de São Paulo a outros Estados, notadamente o Rio Grande do Sul. Verdadeira insurreição, por ocasião da qual houve confrontos armados entre as forças do Governo e os revoltosos, além da paralisação da indústria e do comércio do Brasil.
2 O Pe. José Asunción Achótegui, SJ, era professor de Matemática no Colégio São Luís. Cf. Volume II desta coleção, pp. 331-332.
3 A presente anotação é do ano de 1989.
4 George Jacques Danton (1759-1794), personagem de grande atuação na Revolução Francesa, Deputado na Convenção, fundador do clube revolucionário dos Cordeliers e Ministro da Justiça, colaborou na criação do Tribunal Revolucionário, que enviou incontáveis vítimas ao cadafalso. Condenado à morte por esse mesmo tribunal, foi guilhotinado.
5 Jean-Paul Marat (1743-1793), fundador do jornal revolucionário l’Ami du Peuple, teve grande responsabilidade pelos massacres de setembro de 1792 e foi morto por Charlotte Corday.
6 Maximilien de Robespierre (1758-1794), dirigente do clube revolucionário dos Jacobinos e Deputado na Convenção, decretou o início do Terror e instituiu o culto do Ser Supremo. Foi guilhotinado no dia seguinte ao golpe de Thermidor.
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