Um rio de dignidade e afeto
Tal era a união de alma entre Dona Lucilia e seu filho, que ambos tinham o mesmo temperamento e modo de ser. Ao receber uma carta de sua mãe, Dr. Plinio, muito mais do que experimentar uma alegria nova e extraordinária, sentia a felicidade estável da continuação de um rio de dignidade e afeto, à margem do qual ele vivera, em cujas águas cristalinas navegara várias vezes, com toda espécie de encantos.
Creio que nunca passou pelo espírito de mamãe que uma carta dela destinada a mim fosse lida num auditório. Podem me imaginar em Paris recebendo essa missiva, na qual nota-se bem com que extremo afeto preparei a minha despedida e vendo, pela resposta, como ela foi sensível a esse meu gesto.
Um mesmo temperamento e modo de ser
Alguém poderia imaginar-me na portaria do Hôtel Régina, e o porteiro me dizendo:
— “Une lettre du Brésil pour vous”(1).
Eu, então, entrando rapidamente no primeiro salão, abrindo a carta, lendo e sentindo-me dominado por uma profunda impressão.
Ora, não foi o que se deu. Não me lembro dos pormenores de como a carta chegou. Mas imaginem que o porteiro me tenha dito isso, e eu, subindo no elevador “bonbonnière”, de cristal e carvalho, até meu quarto, lá tenha aberto tranquilamente a carta, sentado junto a uma mesa, e lido. Qual a repercussão da carta em mim?
Quem imaginasse que a repercussão foi intensíssima, julgaria ter uma ideia da realidade. Entretanto, ela foi plácida, tranquila e de uma intensidade que eu chamaria supersônica, quer dizer, uma coisa de tal amplitude que não repercute. Tal era a minha união de alma com Dona Lucilia, a certeza de que ela receberia daquela maneira o que eu lhe enviava, e que se exprimiria mais ou menos naquele sentimento, que eu li como se ela me tivesse dito tudo pelo telefone, e depois a carta me chegasse. Independente de ela dizer-me qualquer coisa, eu tinha certeza do que ela sentiria.
E ao tomar todas aquelas medidas que tomei, eu tinha certeza de como ela receberia e o que faria. De maneira tal que fiz uma narração do que eu já conhecia. Tal era a minha união de alma com ela, que assim se passavam as coisas. Era um mesmo temperamento, uma mesma alma, o mesmo modo de ser. Como se eu contasse a mim mesmo a tristeza que tive em me separar dela. Assim também era ela contar-me a tristeza que teve em se separar de mim. E isso é muito mais do que a surpresa, do que a emoção diante de cada palavra, do que o sentir-me invadido por uma alegria nova e extraordinária; era a felicidade estável da continuação de um rio de dignidade e afeto, a cuja margem eu vivera, em cujas águas cristalinas navegara várias vezes, e com toda espécie de encantos. De maneira que, para mim, se ela estivesse na sala ao lado e entrasse no meu quarto para dizer aquilo, era absolutamente a mesma coisa.
Não sei se as pessoas podem conceber que uma união entre duas almas possa chegar a esse ponto. Era como se fosse eu falando comigo mesmo, ou ela escrevendo para si própria.
O jarro do imperador
O que me impressionou mais foi o pequeno gesto delicado, e muito dela, que representava alguma coisa nova para mim: a distribuição das flores. A delicadeza de levar flores para a capela de nossa sede, era um modo amável de deixar transparecer que ela bem sabia ser o meu Movimento, para mim, mais do que o lar. É subconsciente, mas transparece. Em seguida, levar flores para a imagem no meu quarto, e por último, para o dela; as sobras iam ornar o jarro do imperador, na sala de estar, porque ela sabia que eu gostava muito desse jarro, sobre o qual, em certa ocasião, tivemos uma afetuosa “discussão”.
Uma vez tive um pesadelo de que eu apanhara uma pneumonia fortíssima, e que ela estava sem dinheiro para pagar as despesas do médico. Então, eu percebi, do meu quarto, que ela estava querendo vender o jarro do imperador. E sonhei que me levantei, doente, fui para o salão onde ela se encontrava e disse:
— Meu bem, isso não. Prefiro correr qualquer risco, a que se venda o jarro do imperador.
E ela me retrucou:
— Isso, nunca! Meu filho vale mais do que esse jarro.
E respondi:
— É precisamente o que eu contesto, de maneira que não quero que a senhora venda.
Quando acordei, contei para ela o sonho. Então ela fincou o pé, afirmando que venderia certamente o jarro do imperador, e que era bom eu saber, porque agora ela tomaria ainda mais cuidado do que antes de ter esse sonho. A coisa terminou em nada, naturalmente, mas eu insistia em que não era o caso de vender o jarro do imperador.
Na carta há uma alusão ao jarro do imperador, que ficou todo florido. Era um gracejo que ela fazia, mas quão discreto; não tem nada de uma piada moderna, é uma outra coisa, nem comparemos.
As cartas de Dr. Plinio eram lidas e relidas
Certa vez, voltando da Europa, avisei-a que viria em tal dia; mas encontrei um jeito de chegar na véspera, com o intuito de fazer-lhe uma surpresa e poupá-la do receio, durante a noite, de eu estar voando a cinco mil metros de altitude e qualquer coisa acontecer com o avião. Os desastres aéreos, naquele tempo, eram muito mais frequentes do que hoje. Lembro-me de que entrei no quarto de manhã e encontrei-a deitada na cama. Ela já estava com a vista muito fraca e, por isso, apesar de ser dia, estava com o abat-jour aceso bem junto dos olhos dela, relendo a minha última carta. Ela me esperava para o dia seguinte. Eu entrei e saudei-a:
— Meu bem, como vai a senhora?
— Oh, você!
Abraçamo-nos e nos beijamos.
Meu pai me disse:
— Você não sabe quantas vezes essa carta foi lida e relida…
Então, perguntei:
— Mas por que a senhora estava relendo esta última carta, tão sumária?
— Cada vez que eu leio, sinto alguma coisa que não tinha sentido anteriormente. Deixa a carta, que isso é comigo.
Isso indica bem como são diversas as relações entre mãe e filho. O próprio do relacionamento do filho com a mãe é ser totalmente confiante. Nem lhe passa pela cabeça que ela não retribua inteiramente o afeto que se tem por ela. Mas a mãe para o filho não. Quando é uma boa mãe católica, ela não rateia nunca. Quer sentir a alegria da segurança, apalpar mais outra vez. A releitura da carta dava a ela essa tranquilidade.
Filha da Igreja Católica Apostólica Romana
Quando eu era pequeno, frequentemente dava-se isto: estávamos brincando todos no jardim – meus primos, minha irmã, e eu pelo meio –, de repente eu sumia e a “Fräulein” começava a me procurar. Até que um dia ela disse: “Não adianta, quando o Plinio some, já se sabe… ele está com a mãe.”
Eu pensava:
“Mamãe tem outra substância, outro entretenimento, outro afeto, outra seriedade… Eu escapo dessa gente de qualquer modo, subo e vou dar uma prosinha com ela.”
Podem imaginar como ela me recebia! E como era a prosinha: olhos nos olhos, coração no coração, a mais unida que se possa imaginar. Até a hora em que viessem me pegar e pôr no meio da criançada de novo, com a ideia de que criança brinca com criança e que não deve estar muito tempo com os mais velhos. Então, no meio da criançada eu brincava também. Mas de vez em quando me voltava à mente: “Mamãe deve estar em tal sala assim; se eu der uma corridinha agora e disser alguma coisa para ela, obtenho alguma coisa dela para mim”. Ora, essa atitude a inclinava a sentir-se unida a mim, é evidente. Isso desde pequeno até o último momento, com a graça de Nossa Senhora, foi assim.
Dessa maneira, as minhas tendências afinaram, pela graça da Santíssima Virgem, com as dela. E o seu modo de ser pareceu-me o feitio natural, a posição ambiental exata que correspondia com certo lado do meu modo de ser que eu desejava que prevalecesse e vencesse. Portanto, para mim, aquilo não era apenas uma consonância, mas um programa de vida.
Esse modo de ser de mamãe resultava das suas qualidades, da sua condição de filha da Igreja Católica Apostólica Romana, mas com o específico da geração e da família dela, acompanhado de uma carga de sobrenatural, infelizmente muito menos densa em outras pessoas. Entretanto, trazia uma marca de certa tradição católica, que o feitio da família dela indicava bem.
Vocabulário elevado, timbres de voz agradáveis de ouvir
O modo de ser geral na geração de Dona Lucilia e da mãe dela era, antes de tudo, muito cerimonioso, mas muito íntimo. Conversavam sobre coisas bastante simples com muita intimidade e naturalidade, mas o tempo inteiro com muitíssima cortesia. De maneira que, por exemplo, no meu tempo de criança, nunca presenciei uma briga entre os mais velhos. Sequer um levantar de voz, um gênero de resposta ácido, nunca vi isso. Pode ser que quando sozinhos tivessem algum atrito. Na minha presença nunca. A coisa corria num manso lago azul.
Exprimiam-se muito bem, com um vocabulário bonito, não frequente em qualquer lugar, habitualmente com timbres de voz agradáveis de ouvir. Ninguém tinha voz muito anasalada, ou estridente, nada disso. Eram timbres que causavam a impressão de que a voz de um comentava a do outro. Tinha-se mais a impressão das várias notas de um mesmo teclado, do que propriamente aparelhos diferentes que estivessem tocando.
A ocasião de a família estar junta era a hora das refeições, uns minutos antes e algum tempo depois. À mesa também surgiam, às vezes, temas muito elevados: política, discussão de religião; e quando o assunto era elevado, a conversa tendia ligeiramente para o discurso e a conferência. Quando o tema baixava, passava a ser completamente caseiro, mas sempre num vocabulário elevado. Ademais, com uma coisa que minha geração e as posteriores já não conheceram, que é a vida sem pressa. Aquele era um gênero de gente que não era arrastada, vagarosa, mas não fazia nada correndo.
A não ser uma coisa: a hora de tomar o trem; a família sempre foi um pouco atrasada em horários. Então, havia “epopeias” contadas como fatos engraçados, de trens que um pegou de tal jeito à última hora, esses e aqueles episódios. Um tio que foi pegar um trem na Estação da Luz, a bilheteria estava fechada e não se passava mais. Ele viu que um elevador de carga ia levando coisas para baixo, guiado por um homem. Era proibido passageiro descer pelo elevador de carga. E ele estava longe e não alcançava o elevador. Então, deu um berro tão imponente, que o condutor parou instintivamente o elevador, e ele entrou sem dizer nada. O homem ficou tão tonto, que trouxe meu tio até embaixo e ele pegou o último vagão do trem. Era a única forma de pressa que tinha cidadania entre eles. O resto era devagar.
Falar devagar, cada palavra pronunciada inteiramente e, durante a conversa, com um pouco de pausa. Quando o tema chegava a uma altura maior, ou uma parte mais enfática, falava-se mais devagar do que mais depressa, e fazia-se fisionomia para o caso. De maneira que, por exemplo, um está contando uma conversa delicada que teve com alguém sobre tal coisa: “Bom… bom… você pode imaginar o meu apuro”.
Gesto e pequena pausa, atitude para completar o ambiente. Depois a narração continuava. Despedida, ou saudação na entrada: calma. Ninguém entrava ou saía correndo. Todos os fatos da vida passados com densidade; ninguém era atado ou amarrado, nem do corre-corre. Havia um relógio de parede, na sala de jantar, que parecia ritmar a atmosfera da casa: “tem-tem-tem”.
Tudo isso que estava muito em consonância com Dona Lucilia, ela havia levado a uma espécie de auge, ao seu ponto mais característico. Mas com a nota católica muito presente. Era a tradição católica, onde a piedade pessoal de alguém – no caso, mamãe – tinha posto a nota católica retonificada, reavivada pela ação dela. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/7/1979)
Revista Dr Plinio 257 (Agosto de 2019)
1) Do francês: Uma carta do Brasil para o senhor.
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