Uma grande revolução no mundo feminino
Se alguém quisesse estudar a história dessas grandes mudanças no Brasil, verificaria que, na realidade, as primeiras transformações tiveram início antes da Primeira Guerra Mundial, quando os eflúvios do movimento feminista europeu chegaram ao País. Houvera então uma primeira quebra na estrutura da sociedade, com enorme importância na evolução do pensamento das classes dirigentes.
Ausência do espírito de Cavalaria
Em via de regra, o homem do século XIX, inclusive o nobre europeu, já havia perdido o espírito da Cavalaria medieval.
Ora, esse espírito constituía uma das mais altas posturas do modo de ser masculino, a qual também se refletia nas senhoras, de algum modo. Ou seja, a dama de outrora não era propriamente uma “cavaleira”, mas, por admirar o ideal da Cavalaria, nela surgia uma nobreza de alma que a elevava acima da própria debilidade feminina, sem tirar-lhe a delicadeza.
Entretanto, no período do romantismo, com a ausência desse ideal, as senhoras manifestaram uma fragilidade excessiva, a qual causou uma espécie de saturação e uma sede do contrário, que a Revolução soube explorar posteriormente através do movimento feminista, procurando completar a figura feminina com certa nota de força que a dama do século XIX evidentemente não possuía.
Então, os impulsionadores desse movimento disseram à mulher do século XX: “Você não percebe que é uma fracalhona, e que alguma coisa falta à impostação de sua alma?”
Muitas se deixaram iludir.
Impossibilitadas de se voltarem para a tradição, porque desta havia sido arrancado um elemento integrante, fundamental, passaram a admirar apenas os homens que realizavam o ideal dos personagens de cinema, apresentando certas formas de heroísmo – já não cavalheiresco, mas cavalar – e parecendo ter algo daquela fortaleza de espírito que os românticos haviam perdido. Em última análise, grande parte da modernização do elemento feminino decorreu de que a admiração à Cavalaria lhe foi tirada.
Assim, a vingança da realidade contra a ablação do espírito de Cavalaria foi a mentalidade cowboy e self-made man para os homens, nos estilos norte-americanos, e para as mulheres, o movimento feminista.
As senhoras da Belle Époque e o prestígio materno
Como se apresentava o elemento feminino da alta sociedade de São Paulo, antes da Guerra de 1914?
Elas ainda possuíam algo da dama romântica do século XIX, para a qual era bonito ser melancólica, dolorida, sofredora, langorosa e um pouco doente; a mulher que afirmasse possuir uma saúde de ferro rebaixar-se-ia imediatamente para a categoria das sentimentalidades vulgares. Inclusive para as moças desse século, ficava bem ter alguma doença do fígado ou aquilo que chamavam de “migrânea”: uma forma elaborada de enxaqueca.
E, como era próprio à Belle Époque, essa indisposição se curava com sais lindos, vindos da França, cheios de valor simbólico. Então, existiam grandes vidros com tampas de cristal facetado – o que exercia sobre mim uma verdadeira fascinação, por ter sido sempre entusiasta das policromias –, os quais continham uma série de quadradinhos, com cores diferentes e virtudes próprias, dentro de um líquido que parecia possuir a síntese transparente de todos aqueles coloridos.
A senhora tirava a tampa com certo esforço, mas com um gesto muito bonito, depositava aquele cristal grosso e prestigioso sobre uma mesinha e, com um lenço comprido na mão, dizia:
– Estou passando muito mal.
Então, revestida de uma bela robe de chambre de tecido leve, gola grande e mangas largas, ela se deitava num canapé, apoiava um braço no encosto e aspirava os perfumes. Os filhos estremeciam de ternura, o marido se sentia altamente orgulhoso de ter como esposa uma dama tão requintada e a velha avó temia pela vida de sua filha.
Era o rito da doença e da tristeza, o qual fazia parte do prestígio materno. Uma senhora que não tivesse de vez em quando uma “migrânea”, se degradaria algum tanto.
Alguém poderá objetar que, desse modo, uma senhora é pouco útil. Respondo: para os assuntos administrativos, é verdade. Porém ela é útil para certas coisas tidas como inúteis, mas que são, na realidade, de uma importância muito maior: os imponderáveis da vida do lar. Compreendo que, com uma mãe assim, a despensa talvez esteja menos guarnecida e as refeições possam padecer um pouco, mas, afinal de contas, uma casa de família não é um restaurante de estação, no qual é preciso almoçar na hora certa, pois o trem vai partir: ela é antes de tudo um santuário.
De fato, essas senhoras tinham algo de bonecas e muito de oco, mas eram verdadeiras e simbólicas “damas-santuário”, que sabiam utilizar-se de maravilhosas técnicas para a produção de prestígio, o que era uma obra-prima da civilização. Um dos melhores benefícios que os pais podem dar aos filhos – ou os superiores aos súditos – é exatamente esse dom do prestígio, pois está na ordem das qualidades morais e incute o senso religioso da vida.
A dama infeliz, nos estilos do século XIX
Também fazia parte desse rito a tristeza da vida familiar infeliz. Se um matrimônio fosse inteiramente bem sucedido, no estilo do happy end, ele se desdouraria.
Em geral, as moças eram educadas em colégios de freiras e se casavam eximiamente puras e inocentes. Quando contraíam núpcias, havia uma grande festa com o aspecto clássico do casamento feliz, com grande amor recíproco entre os esposos, e ambos partiam para a lua-de-mel. Ao voltarem, iam morar numa bonita casa, e transcorriam um ou dois anos até ocorrer algum episódio, pelo qual começava para ela a tragédia:
– Meu marido não é o que eu pensava! A vida não é mais nada para mim!
Logo ia pedir conselho à freira que a educara – quase sempre francesa –, a qual dizia:
– Mon enfant, il faut souffrir1.
Às vezes, a jovem esposa ia falar com algum padre ou, inclusive, com os próprios pais. E, como o pai era muito esquivo na matéria, ela pedia o apoio dos irmãos:
– Falem com meu marido!
Mas os irmãos eram também esquivos, pois, naquelas cidades pequenas, onde cada um conhecia os costumes de todos, eles não ousavam interpelar o cunhado…
Então, começava a longa vida da esposa abandonada, corretíssima e sublime, mas sempre sofredora e com ar de desilusão. Essa situação, entretanto, era cultivada também de modo bonito. Em certas ocasiões, por exemplo, a família estava reunida e todos conversavam, mas a senhora tinha uma atitude característica: o seu riso era mais discreto e ela mantinha longos silêncios em que permanecia olhando para o infinito, sem divertir-se com nada. Perto dela estava o marido, com cabelos frisados, bigode a la Kaiser, colarinho alto e punho duro. Ele não se incomodava com o drama dela e, pelo contrário, mostrava-se sempre animado e satisfeito.
Era esse o adorno da mulher, até o fim da sua vida. Isso não excluía que, quando o marido morresse, ela vestisse um luto pesado e manifestasse grande tristeza. Quando alguém a questionava sobre o defunto, ela dizia, influenciada pela educação da freira francesa:
– Coitado! Apesar de tudo, ele era o pai dos meus filhos e eu senti muito a sua morte.
Em algumas ocasiões, ele chamava a esposa na última hora e pedia-lhe perdão. Ela o perdoava de todo o coração, e a reconciliação era completa.
Entretanto, no meio de mil casais existia um ou outro muito bem sucedido. Mesmo assim, quando isso acontecia, a senhora não se dava por feliz e, então, insistia no assunto das doenças e mal-estares nervosos, pois a dama perfeitamente contente e bem-disposta era uma raridade que não quadrava bem com a época. O normal era a posição romântica diante da dor, a qual era considerada bonita no século XIX e prolongou-se de algum modo pelo século XX adentro.
Fragilidade e choramingo
Em minha época de jovem existiam ainda mulheres “retardadas”, no padrão da sofredora do século XIX, cujo sentimentalismo era representado pelas valsas da Áustria e da França. Até o início dos anos 20, inclusive, era apreciado o tipo da moça muito feminina, graciosa, etérea, com uma voz cândida e comparável a uma flor. Assim, eram frequentes os nomes como Dália, Rosa ou Margarida.
Lembro-me, por exemplo, de alguns trechos de uma canção que se ouvia por toda parte, a qual todo o mundo sabia cantar:
“Mimosa, tão delicada e melindrosa…
Tens o perfume de uma rosa…
Mimosa…”2
Eu também a aprendi, de tanto ouvi-la, e cantava a “Mimosa” a plenos pulmões, com voz de estentor e sem malícia nenhuma. Entretanto, analisando o estado de espírito que essa música representava, pensava: “Isso parece razoável, pois está de acordo com a natureza feminina, mas, no fundo, de que serve toda essa fragilidade? Uma mulher tão delicada, se tiver uma grande dificuldade na vida, se desfará em poeira, pois ela só sabe choramingar e cantar canções chorosas! É necessário ter força, energia, ênfase e resolução!”
Mulheres inconformadas
Então, a dama dos primórdios do século XX era uma pessoa hesitante entre duas correntes: tinha algo da senhora simbólica do período do romantismo, mas, por outro lado, também possuía aspectos da jovem moderna e esportiva que começava a aparecer, modelada pela Paris do avant-guerre3.
Esta não era mais a cidade solene, aristocrática e romântica, mas era a Paris da opereta e do chamado Vaudeville: teatrinho ligeiro com temas engraçados; a Paris em que já haviam entrado o automobilismo, a luz elétrica, o futebol e sobretudo a bicicleta, em especial uma delas, de forma ridícula, com uma roda enorme e outra pequena.
Muitos desses inventos haviam nascido no século XIX, mas eles só começaram a impregnar largamente as mentalidades no começo do século XX. Nesse sentido, a Exposição Mundial de 1900, na própria Paris, havia apresentado mil atrações exóticas, que causaram um interesse fabuloso.
Tudo isso produziu um novo tipo de moça: contente, saudável, atraindo não mais pela beleza e pelo prestígio como a antiga, mas pela leveza, pela movimentação e pelas gargalhadas sonoras. Enquanto as senhoras do romantismo quase não riam, a nova geração se utilizava das grandes risadas como meio de impressionar. Jovens engraçadas, repetindo pequenos ditos e muito mais iniciadas nos problemas da vida, por meio de inúmeros condutos: governantas pouco recomendáveis, romances, teatros e cinemas, bem como por conselhos das próprias mães, que não queriam sujeitar as filhas aos desgostos que elas mesmas haviam sofrido. Eram, sobretudo, moças muito pouco dispostas a assumir o papel da esposa infeliz.
Nascia uma inconformidade da mulher em relação a certos estilos de vida do romantismo, nos quais ela ainda vivia: a proibição de sair a sós, o noivado acompanhado por uma velha senhora que chamavam pau-de-cabeleira e mil outros costumes que não morreram tão depressa, mas que, sobretudo no Brasil, sobreviveram por algum tempo e levaram decênios para desaparecer.
Assim como existe a explosão da bomba atômica e a sua posterior radioatividade, desse modo houve a “explosão” feminista e depois as suas consequências, as quais foram se desdobrando indefinidamente.
A mulher em ação durante a Primeira Guerra Mundia
Mais transformações
Em meio a esse ambiente, arrebentou a Primeira Guerra Mundial e a vida social passou por um eclipse, inclusive no Brasil.
Paris entrou no estado de guerra, e cessou o impulso da frivolidade no mundo. Entretanto, durante esse tempo, as senhoras parisienses sofreram uma profunda transformação: elas começaram a dar auxílios em hospitais de sangue, a trabalhar em repartições de guerra no meio dos homens, a dar entrevistas de imprensa, a atravessar ruas e praças a sós, para comprarem objetos triviais e não mais as rendas e sedas, que as senhoras do romantismo costumavam adquirir quando saíam de casa.
Terminada a Primeira Guerra Mundial, começou uma gradual transformação do traje feminino
Então, as modas se simplificaram enormemente. Antes, todos os vestidos femininos se abriam numa espécie de roda e desciam até os pés, comportando inclusive uma cauda, nos dias de festa. Mas a semimasculinização brusca da mulher durante a guerra tornou necessário dar à saia uma forma de tubo, que, no começo, também descia até os pés, mas depois começou a subir, sob o pretexto de facilitar o acesso aos bondes.
Terminada a guerra, dois fatos acentuaram essa simplificação. Em primeiro lugar, a queda das principais monarquias da Europa ocasionou uma diminuição do prestígio da aristocracia, a qual, por natureza, tendia para as modas não meramente funcionais.
Em segundo lugar, a vitória alcançada pelos Estados Unidos conferiu enorme prestígio ao estilo de vida norte-americano, influenciando profundamente as mentalidades e os costumes. Ora, entre essas novidades estava o modelo da moça norte-americana, a qual era a mesma jovem alegre e moderna do período anterior à guerra, mas multiplicada por si mesma.
O resultado dessas mudanças foi um desprestígio da influência materna ao longo dos anos: as “senhoras-santuário” se tornaram senhoras de administração, e de verdadeiras donas de casa passaram a ser meras governantas…
Isso produziu modificações sensíveis na ordem material.
O penteado das senhoras
Outrora, era considerado bonito para uma senhora possuir uma cabeleira abundante.
Eu conheci uma, a qual se gabava de ter tanto cabelo, que este lhe descia quase até os pés. E ela o enrolava todo por cima da cabeça, enfeitando-o com objetos que representavam passarinhos e flores, o que me dava a impressão de um bazar… Em algumas revistas, era frequente ver figuras de senhoras do povo, muito honestas, as quais se deixavam fotografar mostrando o cabelo solto, que às vezes lhes chegava até os joelhos ou até os calcanhares.
A arte de pentear consistia em equilibrar todos aqueles cabelos no alto da cabeça. E a profissão dos penteadores era muito apreciada, pois eles estudavam as fisionomias e, de acordo com estas, construíam verdadeiros castelos capilares, para o que era preciso calcular uma série de fatores. As senhoras mudavam muito de penteado, conforme a moda. Discutiam, conversavam, consultavam as revistas que mostravam novos estilos e o tema era objeto de longas conversas.
Ora, durante o conflito mundial, as cabeleiras grandes e solenes começaram a diminuir, pois não era possível para uma senhora andar de um lado para o outro com aquele “edifício” capilar.
E, de repente, pouco depois da guerra, foi lançada na França uma moda de cabelo muito curto, quase à maneira dos homens: uma espécie de balaio cortado, com franjas que desciam até as maçãs do rosto, tendo dois chumaços presos sobre as faces, de maneira a formar duas pontas. O novo estilo consistia em fazer aparecer o cabelo dentro da linha geral do rosto, e não mais como uma construção em cima da cabeça. Esse modo de pentear-se era chamado “à la garçonne”.
Garçon, em Francês, significa rapaz. “À la garçonne” equivaleria a dizer “estilo rapariga”, mas, uma vez que a palavra garçonne não existia – pois foi criada na ocasião para indicar o feminino de garçon –, ela indicava a moça que tomava ares de homem.
Essa moda alterou o perfil psicológico da mulher.
Até então, considerava-se que a senhora deveria ser a mais feminina possível, mas, a partir dessa transformação, passou a ser bem vista a mulher masculinizada. Discretamente, essa moda igualitária dava a ideia de que o verdadeiro encanto não estava em que a mulher fosse muito delicada e o homem muito másculo, mas, pelo contrário, numa espécie de fusão entre o homem e a mulher: ele um tanto afeminado e ela um pouco máscula, constituiriam uma boa harmonia.
Na realidade, era uma grande deformação.
Atitudes da sociedade face à nova moda
Em pouco tempo, a moda “à la garçonne” chegou ao Brasil4, e lembro-me do escândalo que ela causou inicialmente. As moças foram as primeiras a cortarem seus cabelos, ocasionando nas famílias uma enorme surpresa, e a reação de algumas senhoras:
– Fulana cortou o cabelo?! Não diga! Isso é uma loucura! Não vamos fazer o mesmo!
Mas, logo depois, muitas damas de trinta, quarenta ou cinquenta anos, com a esperança de parecerem jovens, abandonaram os cabelos compridos que lhes davam ares muito dignos, próprios de mães de família, e passaram a usar a nova moda, perdendo o aspecto de recato e deixando de inspirar aquele respeito que era uma proteção para a própria reputação da pureza delas. Mais tarde, o cabelo “à la garçonne” começou a “despratear” também as matriarcas de cabelos brancos.
Por outro lado, até então, as desigualdades sociais se notavam muito pela diferença dos penteados. Uma pessoa mais modesta tinha menos recursos, menos gosto e menos tempo para pentear-se com esmero, enquanto que alguém de uma classe abastada dispunha desses meios. Entretanto, a moda “à la garçonne” nivelava todos os penteados. Um rubicão tinha sido cruzado, dando a entender que as grandes senhoras não queriam mais ser as respeitáveis aristocratas que outrora foram, mas desejavam apresentar-se como meninotas quaisquer.
Com tudo isso, os próprios contrafortes da instituição da família foram prejudicados.
Além do mais, depois do escândalo inicial apareceram as damas medíocres, que não cortavam seus cabelos, mas davam risadas da surpresa que outros tinham, ao saberem que alguma senhora havia cortado os seus:
– Ha-ha-ha! Não tomemos isso a sério! Não tem nada! Ela? É respeitável, fiel ao marido, modelo de mãe de família! O que vai acontecer? Isso jamais abalará a pureza dela, nem a seriedade de seu lar. Não vamos confundir cabelo com moralidade, pois são coisas completamente diferentes! Não sejamos loucos! Sabe? Vejamos os lados positivos da coisa: ela é moderna, engraçada… Um espírito generoso, que gosta das coisas novas. Não quer permanecer amarrada na rotina do passado. Deixem-na divertir-se e ir para a frente! É o futuro que entra…
Passou a ser malvisto quem se declarasse contra aquelas que cortavam o cabelo “à la garçonne”.
Então, apesar de não adotarem ainda o novo estilo, essas pessoas medíocres faziam o papel de uma retaguarda para proteger as que o faziam. E, por terem todos os ares de boas senhoras, a proteção delas dava garantia à propagação da moda.
No primeiro e no segundo ano, elas defenderam aquelas que cortavam seus cabelos. No terceiro, quando todo o mundo estava habituado à moda, elas fizeram cortar os seus. No quarto ano, começaram a zombar das que não o tinham feito ainda, organizando a detração contra elas. No quinto ano, todo o elemento feminino das melhores famílias estava penteado “à la garçonne”.
Conheci incontáveis casos de mães de família que cortaram seus cabelos, mas continuaram a ser muito dignas. Entretanto, o exemplo que elas transmitiam para as suas filhas ou netas era no rumo da desagregação da família.
Quem havia contribuído mais, para lançar as senhoras e moças nesse passo perigoso? A mulher medíocre.
Outros aspectos de uma decadência
Além dessas modas, as senhoras começaram a usar dois novos tipos de chapéu: o canotier5 e o chapeau cloche6. Este último era de feltro, em forma de sino, assumindo exatamente o formato da cabeça. Ambos os chapéus eram simples cuias com pequenas abas, muito diferentes dos chapéus do avant-guerre, os quais eram verdadeiras bandejas onde se representavam os reinos vegetal e animal: jardins zoológicos e botânicos de borracha, com fitas de veludo, cabeças de passarinhos, cachos de cerejas, flores, plumas e algumas figuras mitológicas, o que era passavelmente ridículo e, de fato, não podia durar mais.
Entretanto, quando as damas aderiram à moda dos chapéus canotier e cloche, passaram de um ridículo para o outro.
Elas também deixavam de usar adornos bonitos. Por exemplo, sumiram de repente as aigrettes7 e também algo que era muito frequente em grandes recepções: diademas feitos de casco de tartaruga, de uma cor marrom, semelhante ao âmbar. Esse enfeite circundava a cabeça das senhoras e tinha um dispositivo no qual se prendiam penas de garça muito delicadas, o que formava uma espécie de chafariz seco, de mil gotas de água, de um branco éclatant8. Era estupendo!
Ao mesmo tempo, o cumprimento às senhoras começou a mudar. Muitas pessoas, que costumavam despedir-se dos conhecidos apenas com um gesto de mão, quando encontravam
senhoras idosas – ou simplesmente de idade madura – ainda lhes osculavam a mão para
cumprimentá-las, mesmo se fossem da parentela íntima. Nessa nova fase, os mais modernizados, pelo contrário, davam um handshake, sacudindo a mão da senhora. Era o respeito às damas, valor da cultura ocidental e europeia, que minguava diante do igualitarismo invasor. A senhora tradicional cumprimentava sorrindo e dando a mão a beijar, enquanto a moderna apertava a mão do homem e olhava-o bem nos olhos. A senhora moderna começava a fumar, enquanto muitas damas tradicionais consideravam isso um desdouro. O modo de rir, de vestir, de andar, de falar, de comer, de pensar e de ser começava a variar de matizes, de uma dama para outra.
As joias falsas
No período anterior à Primeira Guerra Mundial, as senhoras de São Paulo possuíam boas joias, luxuosas ou modestas, mas não existia propriamente bijuteria.
Era frequente ver alguma mulher do povo usando grossos brincos de ouro, constituídos por simples argolas. Ela os trouxera da sua terra natal – algum lugar da Itália, de Portugal ou da Espanha – onde já os utilizara enquanto camponesa e chegara ao Brasil com eles. Era a sua pequena joia.
Entretanto, acabada a guerra, tudo começou a mudar e entrou a indústria das joias falsas na cidade. Eu assisti a essa “invasão”, a qual foi simultânea à influência norte-americana e teve seus primórdios do seguinte modo:
Houve no século XIX uma difusão de grandes e verdadeiras joias, maior do que havia sido nos períodos anteriores. O contato com o Oriente e a África, favorecido pelas navegações, tornou mais fácil, por exemplo, para uma lady9 inglesa de 1850, obter um belo colar de brilhantes, do que o fora no século XVI. O resultado foi que algumas joias suntuosas tornaram-se mais frequentes.
Depois, a indústria e o comércio tornaram possíveis as imensas fortunas, cujos proprietários se permitiam tais aquisições: mandavam vir essas pedrarias e enfeitavam-se com elas. Então, os donos das joias médias sentiram uma espécie de vazio e um desejo de se ornarem com os objetos imponentes e belíssimos, que os recursos da grande classe permitiam. Ora, isso não sendo possível, apareceu o bluff 10: a joia industrial.
Ela começou a fazer-se presente no Brasil poucos anos depois da Grande Guerra. Havia em São Paulo uma loja famosa – provavelmente norte-americana – com o nome de uma empresa que comercializava essas joias em vários países do mundo: a Casa Sloper.
Nela não se vendiam propriamente joias falsificadas, que dessem a impressão de serem verdadeiras, mas joias-fantasia, sem a dignidade das joias reais. Ou seja: bijuteria ordinária, ostensivamente inautêntica e não-preciosa, com aspectos que não existem na natureza.
O colar de “pérolas” marca Sloper, por exemplo, era escandalosamente falso, pois nem sequer visava imitar pérolas autênticas, mas era constituído por enormes bolotas brancas, de um tamanho que nem o Xá da Pérsia possuía… Esses enfeites eram fabricados com matéria muito barata, produzida para dar lucro, e procurando disfarçar pelo volume a ausência da qualidade.
Havia na loja inúmeros objetos desse gênero: colares de uma tonalidade fosca, feitos de pequenas pedras extraídas das Cataratas do Niágara; grandes anéis verdes, de certa massa antecessora do plástico; colossais “brilhantes” e vistosas “ametistas”, elaborados com cacos de vidro, ou ainda objetos de certa matéria amarelada, que lembrava o âmbar sem imitá-lo, e de outra substância vermelha, semelhante a uma bala ordinária lambida por alguma criança…
Uma dama de olhos azuis ou verdes comprava uma bagatela dessas, com cores semelhantes para combinar com sua fisionomia, enfeitava-se para realçar a própria beleza e saía à rua, toda jactanciosa, como se fosse possuidora de um grande adorno. Assim, várias senhoras que não tinham as superjoias riquíssimas vindas da Pérsia ou da Índia, começaram a tomar certo ar de alegria, de despreocupação e de saliência, num estado de espírito em que a ilusão substituía a autenticidade.
Essa indústria das pseudojoias tornava possível a qualquer pessoa cobrir-se de bijuterias baratas, e a joia autêntica perdeu muito de seu poder de destaque. Então, essas peças falsas começaram a ser usadas também pelas senhoras que possuíam joias verdadeiras. E, com o passar dos anos, mesmo as mais ricas, se não comprassem joias de marca Sloper, sentiam-se fora da moda.
As abotoaduras para os homens e meninos, as quais eram, com frequência, feitas de ouro e pedras preciosas, também passaram a ser “falsificadas” pela Casa Sloper, apresentando enormes “safiras” e “rubis” de aspecto cafajeste.
Lembro-me do choque de algumas poucas senhoras, vendo aparecer essas joias espalhafatosas na atmosfera da vida social distinta. Apesar de não dizê-lo, elas tinham a seguinte ideia, ditada pelo bom senso: quem faz tal espalhafato quer chamar a atenção sobre si e, no fundo, é capaz de indiscrições, frivolidades, vaidades e traições. Alguém que utilize essas joias, deu um passo no caminho que as pessoas de má reputação percorrem até o fim.
Certa vez, compareci a um jantar no qual estava presente uma senhora distinta e educada, com uma joia colossal. Era um colar representando grandes argolas de ouro, com uma espécie de disco feito de alguma matéria de cor creme, contendo uma série de pequenos traços verdes.
Ela parecia contentíssima, não por aquilo ser bonito, mas pelo simples fato de tratar-se de uma novidade. Sentou-se no meio das outras, esperando que todas comentassem o enfeite, mas desde logo ninguém se pronunciou. Eu estava sentado bem em frente a ela e observei o colar, que à primeira vista me pareceu lindo. Conhecendo bem a pessoa, sabia que, pelos seus recursos, não poderia comprar uma joia que parecia de tão alto valor para os meus olhos de criança inexperiente, mas depois comecei a perceber que o objeto tinha uma cor de gema de ovo muito decepcionante. Em certo momento, alguém perguntou a ela:
– Diga-me, onde você comprou esse pendentif11 tão vistoso?
Ela disse:
– Quanto você acha que paguei por isto?
O interlocutor, para ser amável, atribuiu um alto preço ao pendentif. Ela respondeu:
– Nunca! Comprei-o apenas por tanto na Casa Sloper.
– Mas… Você tem tão boas joias! Por que colocou isso no pescoço?
– Ha-ha-ha! Nestes tempos novos não se faz questão de objetos tão caros. Pode-se aplicar o preço da joia em negócios e utilizar uma destas: simples, mas bonita e atraente! Com isso eu fico mais moça e mais elegante do que vocês! Para que gastar dinheiro com as joias pequenas, quando é possível possuir uma grande? Vocês todos deveriam comprar joias na Sloper!
Essa senhora se admirava enormemente a si própria, por julgar-se esperta, mas não percebia que ela tinha sido o “pato” da Casa Sloper…
Percebi ser aquilo o sintoma de um movimento que tomava conta do mundo, banalizando e vulgarizando tudo, inclusive as pessoas que me eram chegadas. Com indiferença e menosprezo, elas largavam aquilo que na véspera haviam amado…
Certo dia, andando pela Rua Direita, de repente dei com a vitrine dessa loja e parei para examiná-la. Havia ali toda espécie de penduricalhos: tudo vistoso, chamejante e ordinário! Pensei: “Aqui está a praça dos horrores. Soou um gongo na história do pensamento humano! O que há no fundo de tudo isso é igualitarismo! Essa é uma moda pregada por aqueles que desejam acabar com as joias verdadeiras, para fazer cessar o adorno da riqueza. A partir de agora, o homem ou a senhora não brilharão mais pelas suas joias, mas por possuírem uma fábrica ou um banco…”
E notei que o uso das joias começava a ser abolido, não para promover a humildade, mas para enfear tudo e banir os reflexos de Deus na sociedade humana.
A possível atitude daquelas que possuíam a chave da situação
Lembro-me de uma cena que presenciei aos onze ou doze anos de idade, em certa casa de São Paulo, cujos donos celebravam as suas bodas de prata.
Compareci com minha irmã à comemoração, que se realizava numa sala de visitas, de bom nível, com bonitos móveis, um piano de cauda e alguns assentos que chamavam de pouf, nos quais habitualmente sentavam-se as pessoas mais jovens e modernizadas. A noite já vinha caindo, as janelas estavam fechadas, havia alguns abajures acesos e reinava uma discreta penumbra naquele ambiente, onde a dona da casa recebia as amigas, enquanto os homens permaneciam no escritório do marido dela.
Entramos falando e dando risadas, como fazem as crianças, e encontramos todas aquelas senhoras vestidas com dignidade, decência e compostura, usando leques, mas sem movimentá-los muito, e conversando baixinho, como convinha num salão de tanta categoria.
Tive uma enorme impressão de tédio e de frustração. Elas próprias não encontravam graça nem davam importância nenhuma à conversa. Estavam lá por mera obrigação, desejando, no fundo, abandonar aquele ambiente conservador e espalhar-se pela rua. Imediatamente veio-me a seguinte ideia: “Se essas senhoras deixassem a dormideira, cessassem de cochichar por trás dos leques e, junto às suas respectivas famílias, falassem contra a modernidade, atacando o que deve ser atacado; se elas se pronunciassem contra o espírito revolucionário que Hollywood espalha pelo mundo; se fizessem isso no Brasil inteiro, elas ainda poderiam dar à sociedade um bom impulso que dificilmente não seria vitorioso, desde que as técnicas adequadas fossem empregadas.
“Na realidade, elas não percebem que possuem a chave da situação e têm as cartas na mão para ganhar a partida, pois, apesar de tudo, se agissem com energia, seriam ouvidas e teriam peso nos acontecimentos. Mas… haverá um meio de fazer com que elas se movam nesse sentido?”
A minha resposta era a seguinte: “Elas não se movem, pois veem o mundo da mocidade e da adolescência caminhar, como imenso rebanho sem pastor, na direção de Hollywood. Então, permanecem amedrontadas e deixam o mal avançar”.
Dª Lucilia e a modernidade
Como reagiu Dª Lucilia em face das novas modas?
Por um fenômeno curioso, ela possuía uma mentalidade mais antiga do que a média das senhoras da sua geração e sentia muita afinidade com os costumes do tempo da sua própria mãe, com a qual conversava quase à maneira de uma irmã ou coetânea. A idade psicológica de minha mãe, portanto, estava entre ela mesma e minha avó. Por isso, uma das minhas tias tratava mamãe com certa distância, como se entre as duas houvesse um valo divisório.
A atenção de mamãe estava especialmente voltada para a mudança dos costumes. Ela percebia que as pessoas adotavam um modo de ser bruto, rígido e interesseiro, com menos afeto, menos elevação de alma e menos espírito religioso do que no tempo dela. Tudo isso lhe causava muita surpresa, pois notava que uma profunda transformação da alma humana estava em curso.
Entretanto, com base na doutrina católica e nos restos de tradição que conhecera, ela formava para si, amorosamente, a imagem de um mundo do qual já não existiam senão ruínas. Ela “modelava” determinadas realidades e corrigia pela imaginação certos defeitos das pessoas com as quais tratava, pondo em realce os pontos luminosos que nelas ainda havia. Assim, ela constituiu o seu próprio palácio interior, um tanto diferente do mundo que o meu olhar desconfiado ia descobrindo.
De qualquer modo, ela foi recusando aos poucos todas as modificações trazidas pela Revolução. Essa rejeição não era de todo consciente, mas eu sustento que uma recusa subconsciente do mal revela, muitas vezes, maior profundidade no amor ao bem do que a própria recusa consciente, assim como, reciprocamente, a adesão subconsciente ao mal revela, em numerosas ocasiões, maior maldade do que a própria adesão explícita.
Recusando a moda “à la garçonne”
Quando entrou a moda “à la garçonne”, uma senhora chegada à nossa família foi das primeiras a adotá-la. Mamãe, entretanto, enfrentou a nova tendência de modo muito simples: não cortou os cabelos.
Lembro-me de um pequeno episódio da vida caseira, a esse respeito.
Estava eu em minha casa, participando de um almoço. Segundo o sistema patriarcal das famílias antigas, estava presente uma boa parte da parentela, conversando, e, naturalmente, mamãe se encontrava ali também, próxima à cabeceira da mesa. Eu ocupava um dos lugares próprios aos mais jovens, um tanto longe dela, numa posição onde não podia observá-la bem.
Vários daqueles parentes eram mais ou menos da idade dela, e algumas senhoras da família já haviam cortado o cabelo. Outras já se pintavam – pois, além do estilo “à la garçonne”, começava o costume de colorir os lábios e as maçãs do rosto – e todas comentavam essas novidades com alegria. O almoço chegava ao fim e, em determinado momento, uma delas se dirigiu a mamãe, dizendo amavelmente:
– Lucilia, quando você cortará seu cabelo?
Ela explicou as razões pelas quais não queria mudar seu penteado, mas toda a família começou a insistir para que ela também se pintasse e adotasse a nova moda:
– Lucilia, por que você não se pinta? Por que não corta o cabelo? Onde já se viu uma atitude assim? Todo o mundo está fazendo isso!
Houve então uma verdadeira argumentação, à maneira de um debate parlamentar, no qual mamãe não dizia nada, mas permanecia ouvindo tranquila, suave, aveludada e muito firme, parecendo dizer: “Deixem-me, que eu mesma resolvo isso”. Não era em vão que uma irmã dela, com muita benquerença, às vezes chamava-a de “teimosa mansa”. Ela não brigava, mas fazia aquilo que desejava…
Eu, entretanto, ouvindo tantas insistências e notando que ela permanecia quietinha, não interpretei bem a atitude de mamãe e pareceu-me que ela deveria tomar uma posição mais militante, argumentando contra eles. Percebendo que a ofensiva se tornava muito forte, tive receio de que ela fraquejasse e cedesse à pressão, pelo seu pendor de comprazer aos outros. Eu era mais categórico e gostava de discutir, pondo o preto sobre o branco!
Então, julgando que o silêncio dela representasse uma vacilação, afastei a minha cadeira, levantei-me do meu lugar, coloquei-me ao lado dela, instintivamente ajoelhei-me, com um joelho só, e disse, do modo mais afetuoso e respeitoso que me era possível, olhando para ela:
– Meu bem, a senhora não vai cortar o cabelo! As outras podem fazer o que quiserem e eu não tenho nada com isso, mas a senhora, não!
Ela agradou-me um pouco, mas não disse nem sim, nem não, e manteve silêncio. Lembro-me bem da sua fisionomia e do seu leve sorriso, o qual me deixava certa dúvida. Na realidade, ela estava encantada com meu pedido e queria deixar-me falar, mas eu temi ainda mais e então insisti:
– Minha queridinha, a senhora me garante, a senhora jura por Deus que, enquanto viver, nunca cortará seu cabelo nem se pintará? Eu posso estar certo disso? Vamos, prometa!
Era uma opinião contrária à de todos os outros. Eu estava de costas para eles, mas senti que havia causado uma enorme e contundente trombada. Aquela cena tão dramática produziu uma surpresa, fez-se um grande silêncio e a conversa morreu. Talvez alguém pensasse que eu havia enlouquecido…
Mamãe me olhou. Percebi que ela havia compreendido bem o meu gesto e estava muitíssimo comprazida. Então sorriu e disse:
– Filhão, eu prometo! Pode ficar tranquilo, pois nunca farei isso. Sua mãe jamais mudará.
Deu-me um beijo e encerrou a discussão assim:
– Não vou fazer o que vocês pedem, pois meu filho não está querendo, e eu não recusarei um pedido dele. O Plinio não quer, eu não faço!
Naturalmente, ela havia se utilizado da minha intervenção como pretexto… Diante do pedido tão patético de um filho, todos compreenderam a sua resposta. Levantei-me, beijei-a várias vezes e me lembro, até hoje, que senti nela uma espécie de fluxo de agrado, como se estivesse esperando de mim aquela atitude. Depois me sentei sossegado e os comensais mudaram de tema. Entretanto, percebi estarem todos sentindo vergonha pelo que haviam feito com ela…
Nunca mais ouvi alguém insistindo para que ela cortasse o cabelo. Não se falou mais sobre isso na família, pois sabiam que a decisão de mamãe era definitiva.
Uma auréola prateada
Alguém poderia perguntar por que tive tanto empenho em pedir a Dª Lucilia que não cortasse o cabelo e não se pintasse.
Evidentemente, o corte de cabelo de uma senhora não tem relação direta com nenhum Mandamento da Lei de Deus, mas, naquele tempo e naquela contextura, com as circunstâncias e os antecedentes da época, o cabelo “à la garçonne” e o rouge eram os símbolos de quem aderia à modernidade e embarcava na Revolução. Portanto, tratava-se de uma decadência com significado próprio: as senhoras perdiam as suas “auréolas”. Ora, na ordem temporal, essa perda era muito reprovável, pois o esplendor de uma senhora é o reflexo de alguma grandeza de Deus.
Tudo quanto eu queria e venerava em Dª Lucilia era o contrário daquilo que representava a nova moda. Sem saber explicitá-lo, eu tinha horror a imaginar mamãe participando do fandango universal em que estava entrando o mundo.
Quero crer que, se ela tivesse cortado o cabelo, nada se alteraria em seu interior, mas, de qualquer maneira, vendo nela a aparência do contrário de si própria, ter-me-ia sido muito difícil conservar a convicção inteira de que ela permanecia a mesma. Ou seja, para mim, irremediavelmente, ela deixaria de ser mamãe. Portanto, naquele caso, o que estava em jogo para mim era a pessoa de minha mãe.
Ela cumpriu a promessa até a morte: nunca se pintou, nem quis cortar os cabelos “à la garçonne”. Creio que ela teria agido assim, mesmo se eu não tivesse pedido, mas parece-me que teve um gosto especial em atender-me. Em certo momento, ela adaptou o seu penteado e fez desaparecer o exagerado edifício capilar do antigo estilo – apesar de manter seus cabelos sempre compridos – o que, aliás, foi uma atitude muito aceitável.
Até o fim da vida, de vez em quando ela contava esse fato e eu me encantava de ouvi-la. Era o modo de ela reviver o episódio.
Quando, pela última vez, eu a vi deitada no esquife, com seus cabelos muito brancos e abundantes, como auréola prateada e majestosa diante dos meus olhos, e com seus lábios absolutamente livres de qualquer pintura, pensei: “Ela morreu, atendendo o pedido que seu filho, genuflexo, lhe fez com um drama na alma”.
Esse foi um marco da minha infância.
1 “Minha filha, é preciso sofrer”.
2 Peça musical composta em 1921 por Leopoldo Fróes.
3 “Antes da guerra”: período anterior à Primeira Guerra Mundial.
4 Essa moda chegou ao Brasil em 1920.
5 Chapéu de palha.
6 “Chapéu-sino”.
7 Penachos utilizados para adornar chapéus e capacetes.
8 Fulgurante.
9 Dama.
10 Engano, logro.
11 Joia suspensa a uma corrente.
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