Voltando a casa
Às quatro horas da tarde, os alunos saíam do Colégio São Luís.
Sendo eles muito buliçosos, entravam nos bondes e faziam uma grande algazarra, o que ocasionava reclamações por parte da companhia de bondes elétricos. Então, para impor-lhes respeito e evitar desordens, não saíam sozinhos, mas sempre ia algum padre capitaneando-os, levando-os até certo ponto do trajeto.
Todos os dias, na hora de sair, esse sacerdote ia pedir ao vice-superior do colégio, chamado de ministro, as passagens de bonde para ir e voltar:
– Padre, o senhor quer me dar dois passes de bonde, para acompanhar os alunos?
Às vezes, o outro respondia:
– Sim, mas o senhor precisa de dois passes? Como irá compor o trajeto?
– Preciso tomar um bonde que me levará até tal ponto e, depois, um outro que me deixará em tal lugar.
Em certas ocasiões, ele devia trocar de bonde três ou quatro vezes. Então, o ministro dizia:
– Não. Creio que o senhor pode fazer um percurso mais curto, assim e assim…
Os dois estudavam o caso, verificando qual era o melhor itinerário para gastar menos em passagens. Tratava-se de uma conversa mantida na presença dos alunos, os quais permaneciam prestando atenção, sobretudo eu.
Percebia que esse religioso, homem culto e inteligente, se colocava em relação ao superior numa disposição semelhante à de um menino. Dava algumas ideias, mas, afinal, quem resolvia qual seria o trajeto era o ministro, que dizia:
– Acho que não. O senhor toma o bonde tal e faz tal percurso assim… Basta um passe.
– Ah, sim! Pois não. Está bem.
O padre respondia com fisionomia impassível. Então, o ministro tirava um passe da carteira e dava-o a ele, que o aceitava e se retirava contente. Era uma atitude de obediência incondicional, com sentido realmente sublime. Um belo exemplo de vida religiosa.
No bonde
Na volta do colégio, o bonde estava sempre cheio de alunos.
Eu costumava sentar-me ao lado do padre e observava como ele tirava o chapéu ao passar em frente à igreja dos capuchinhos1 na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, gesto que várias pessoas no bonde também faziam, inclusive eu.
Meu desejo enfático seria permanecer longe dos outros alunos, durante o percurso, mas isso não seria tolerado, uma vez que eu já era “secessionista” em relação aos colegas a muitos outros títulos… Percebia que não agiria bem se me isolasse, dizendo:
– Vou ficar quieto, pois quero pensar um pouco.
No dia seguinte, haveria inimizades declaradas, pois essa atitude seria o contrário da mentalidade moderna, pela qual tudo era considerado simples, não havendo necessidade de refletir muito. Então, eu precisava fazer certa diplomacia, para harmonizar um pouco a situação. Portanto, quisesse ou não quisesse, fazia o trajeto conversando com os companheiros que moravam perto de minha casa, manifestando bom humor e boa vontade, ouvindo as suas gargalhadas e falatório.
Entretanto, quando eles tratavam, por exemplo, sobre marcas de automóveis, discutindo qual deles corria mais, freava, embreava ou desembreava melhor, eu não tinha o que dizer, nem formulava sequer uma pergunta, pois entendia bem que, se o fizesse, diria um absurdo ou algo que todo o mundo sabia… Por outro lado, eu de fato desejava sabotar esses temas e, apenas começavam a falar sobre qualquer máquina, fazia expressão de tédio. Também não entrava em assuntos mundanos e, menos ainda, em conversas imorais. Nesse último caso, amarrava a fisionomia.
Pelo contrário, eu promovia conversas de fundo social, político ou religioso quando encontrava alguns colegas que eu percebia servirem de interlocutores para tal.
Caçoadas
Entre os meninos que tomavam o bonde para voltar a casa, havia certos filhos de imigrantes com nomes que, às vezes, soavam de um modo estranho no Brasil. Então, alguns dos filhos da tradição caçoavam deles por causa disso.
Havia um aluno, chamado Butelli, cujos pais possuíam uma casa de modas na Rua da Consolação, a qual, naquele tempo, fazia parte de uma zona muito popular. Voltando das aulas, quando ele descia do bonde, havia uma vaia de todos os meninos que nele estavam, por causa do letreiro da loja: “Madame Butelli, Casa de Modas”. Ele seguia, pacífico e sem ousar reagir, procurando arrancar do seu desgosto algum riso, para se associar à gargalhada que os colegas davam de sua própria família, e com pavor de que alguém na casa de modas percebesse o que estava acontecendo. Era uma cena horrível!
Um outro rapazinho de origem italiana, de sobrenome Pangella, também voltava a casa conosco. Os alunos iam descendo do bonde, conforme este passava perto das residências de cada um e, quando chegávamos à Rua Marquês de Paranaguá, travessa da Consolação, o Pangella puxava a tira de couro, para o bonde deter-se, e descia. Nesse momento, a meninada o vaiava, gritando:
– Panela! Panela!
Ele, em vez de olhar para a frente, não conseguia dominar a curiosidade, mas, vermelho de vergonha, voltava-se para trás e dava uma risada, como quem zombava de si mesmo, sendo aliado daqueles que o vaiavam. Depois, notava que a situação se tornava muito difícil para ele e, à medida que se distanciava do bonde – o qual ainda não tinha saído do ponto, pois desciam muitos meninos – caminhava sem olhar para trás. Mas eles berravam com mais força:
– Olha para cá! Panela! Panela!
Eu tinha pena do Pangella, e jamais acompanhei a vaia, pois considerava aquela atitude indigna e de uma selvageria que roçava pela crueldade.
Um conselho e seu resultado
Lembro-me de um episódio ocorrido no bonde, o qual foi motivo de um trauma.
Existia uma família de fazendeiros muito ricos, que frequentavam a minha residência. Em certo momento, tiveram a sua fortuna bastante diminuída, passando a ser pessoas apenas abastadas e, de vez em quando, eu ouvia contar em casa que isso acontecera porque o avô se lançara numa jogatina desenfreada.
Ora, um dos meninos dessa família era meu companheiro e quase sempre voltávamos juntos do colégio, num bonde que passava pela casa dele antes de chegar à minha. Em certa ocasião, durante o trajeto, ele me apontou uma grande e rica mansão e disse:
– Aquela é a casa de meu tio.
Ora, tratava-se de uma residência de muito mais nível que a dele. Então, tomei a iniciativa de fazer um comentário:
– Pois você está vendo: a sua família poderia ter uma casa igual a essa, se o seu avô tivesse algum juízo e não jogasse o dinheiro fora. Compare um pouquinho a sua casa com a do seu tio! Ao menos, isso serve para você não seguir o mesmo caminho de seu avô.
Ele não disse nada.
Resultado: os membros da minha família começaram a notar que aqueles amigos nos visitavam cada vez menos e, depois, nunca mais apareceram. Ora, vovó e mamãe jamais consentiam em tomar em consideração a perda da fortuna de alguém, para uma diminuição de relações!
Creio que isso se deveu ao meu comentário… Certamente, o menino contara em casa o que eu dissera, e os familiares interpretaram o caso assim:
– Vejam como comenta a nossa situação aquela família, com a qual temos amizade há tanto tempo!
Portanto, causei um horrível estrago, mas o fizera na minha seriedade, sem nenhuma maldade, aproveitando a ocasião para dar àquele colega o benefício de um bom conselho, pois percebia que na casa dele nunca lhe diriam algo semelhante.
As grades do banco e o gato de louça
Nesses percursos em bonde, eu me extasiava com as grades do banco alemão da Rua XV de Novembro: sérias, sólidas, dignas e realmente feitas para proteger.
Também gostava de prestar atenção nos tipos das construções que via pela rua, pois as fachadas dos prédios me pareciam algo à maneira da fisionomia das famílias que neles moravam.
Por exemplo, na esquina da Rua Martim Francisco com a Rua Martinico Prado, à esquerda de quem descia, existia uma casa, semelhante a um chalé, em cuja parte externa havia um relógio de Sol e um gato de louça, o qual causava a hilaridade e a brincadeira de todos os meninos que estavam no bonde comigo:
– Olha o gato! Quando ele vai cair?
Um padre oriental
Em algumas ocasiões, eu descia a Avenida Angélica a pé, com alguns companheiros, em direção às nossas casas.
Nessa avenida, ainda muito perto da Paulista, passávamos diante de uma casa pequena e modesta, onde morava um homem já de certa idade, corpulento e com uma enorme barba branca patriarcal.
À tardinha, quando o tempo estava bonito e ensolarado, ele permanecia na calçada com a sua família, todos sentados em cadeiras, o que, aliás, também faziam muitos imigrantes e pessoas modestas. Fumava um cachimbo comprido e se regalava em estar ali, vendo o movimento dos automóveis, rodeado por sua esposa e filhos.
Entretanto, ele estava sempre vestido de batina. Era um padre Católico Apostólico Romano, mas de um rito oriental.
Pode-se imaginar a reação dos meus colegas – todos pequenos brasileiros –, vindos do Colégio São Luís e passando em frente a essa cena! O contraste com os jesuítas era grande demais… Davam risada e alguns faziam comentários, que não sei se o padre entendia ou não, mas que, às vezes, eram caçoadas as quais, aliás, não perturbavam em nada a placidez do padre e nem a da sua filharada…
– Olha lá, o padre casado! Que coisa! Ha-ha-ha!
Eu apenas olhava…
Aquilo começou a causar certa tensão no bairro e, ao que parece, o padre foi reclamar no São Luís. Por outro lado, alguns alunos foram interpelar os padres do colégio, pois julgavam tratar-se de um sacerdote de vida desregrada… Então, o Reitor mandou dar um esclarecimento em todas as salas, o que foi feito de modo normal, sem gravidade especial. Vários professores, durante as respectivas aulas, explicaram do que se tratava. Em nossa sala, um deles disse:
– Venho da parte do padre Reitor, e tenho de fazer aos senhores uma comunicação.
Contou-nos que em alguns ritos orientais – de cuja existência nem tínhamos ideia – a Santa Sé permitia a ordenação de homens casados, em determinadas circunstâncias. Portanto, era um costume autorizado pela Igreja na sua sabedoria. Nessas condições, a situação do padre da Avenida Angélica era inteiramente regular e em ordem com o Direito Canônico, razão pela qual era injusto zombarem dele.
Tudo nos foi detalhado, per longum et latum2. Eu pensei comigo: “Isso vai dar numa brincadeira lá fora, no recreio, inclusive com os padres do colégio! Vão começar a dizer-lhes: ‘Por que não passam para um rito oriental?’”
Entretanto, não aconteceu nada e houve tranquilidade completa a esse respeito. O assunto ficou resolvido, a caçoada cessou e nunca mais ouvi qualquer comentário depreciativo sobre o assunto.
Amizades efêmeras
Em outra ocasião em que eu voltava para casa, descendo a pé pela Avenida Angélica, vinha comigo um rapazinho de minha idade, o qual me parecia bom e simpático.
Por alguma razão, de que não me lembro, tínhamos sido dos primeiros a sair do colégio, de maneira que andávamos à frente de vários grupos de alunos, os quais também desciam pela mesma avenida. Conversávamos normalmente quando, de repente, ouvi bem atrás de nós a voz de um menino que chamava por aquele que estava a meu lado.
Com o canto dos olhos, olhei para o meu companheiro, para ver o que ele faria: não respondeu e fingiu não ouvir. Mas o outro vinha correndo e nós, pelo contrário, caminhávamos devagar, pois eu não gostava de andar depressa e o meu colega acertava o passo dele pelo meu. Entretanto, a voz daquele menino chamando por meu companheiro era cada vez mais insistente. Percebi tratar-se de um amigo dele, o qual desejava aproximar-se para conversar, por ter muito apreço por ele.
Eu nem sequer conhecia bem aquele outro, em meio à multidão dos alunos do São Luís, mas não me importaria em deixá-lo continuar o caminho junto conosco, se quisesse participar de nossa conversa.
Afinal, quando a voz se tornou mais próxima, o meu amigo parou, voltou as costas e disse com tom amargurado:
– Hum! Mas que pressa e que mania de falar comigo! Que coisa tediosa! O que deseja ele?
Eu pensei: “Ele retribui uma simpatia dessa maneira? Amanhã, chegará a minha vez… De repente, ele vai saturar-se da minha companhia, como já se saturou desse outro… Isso é um amigo?”
Percebi que, já na vida dos meninos, as amizades se desfaziam e as relações se rompiam facilmente, como folhas mortas que caem de uma árvore.
Um acidente
Algo que me desagradava em alguns meninos, fortes e bem dispostos, era o excessivo cuidado com certas regras de saúde e de prudência. Eu compreendia que as mães deles tivessem essa preocupação, mas os homens são de outro modo!
Por exemplo, algumas senhoras recomendavam que nunca se devia tomar o bonde andando. Isso me parecia muito respeitável, pois, se elas aconselhassem seus filhos em sentido contrário, eles acabariam subindo no teto do bonde! Eu, entretanto, às vezes gostava de esperar que o bonde começasse a se movimentar, para entrar nele, e fazia-o com certa facilidade.
Aliás, eu observava o modo das pessoas subirem nos bondes abertos e descerem deles, enquanto estes ainda andavam. A pequena corrida para entrar e, depois, no momento de pular, a freada e o começo da caminhada, tudo isso me parecia caracterizar as psicologias de maneira extraordinária!
Entretanto, eu era muito desajeitado para saltar do bonde andando e tinha medo de fazê-lo.
Certa vez, eu queria descer na Rua das Palmeiras, mas, quando acionei o sinal, talvez fosse tarde demais, pois o bonde não parou. Então, achei que essa era uma bela ocasião de dar um pulo, com o bonde andando a toda a velocidade.
Porém, na hora de saltar, um dos meus pés ficou preso em certa peça de ferro, onde os passageiros punham os pés. Caí de costas e o bonde continuou, arrastando-me longamente pela Rua Sebastião Pereira! O motorneiro nem me viu e nenhum passageiro se levantou para avisá-lo do que acontecera. Então, enquanto era passeado regaladamente pelo chão, pensei: “Não consigo tirar o meu pé daí, nem posso mexer-me. O perigo é grande. O que vou fazer? Deixar-me levar, até esse bonde parar. Vou ter a precaução de suspender a perna livre, pois, ao menos essa, não baterá em nada. O resto, vamos ver…”
Mais adiante, no ponto de parada, o bonde se deteve. Por minha falta de habilidade, eu não conseguia retirar o meu pé daquele estribo e, então, o motorneiro me ajudou a desenganchá-lo.
O final do caso foi trágico, pois eu estava vestindo um traje branco… Mas, sendo muito distraído, ao levantar-me olhei para a parte da frente de minhas roupas, verificando que estavam limpas e, de início, tranquilizei-me, pois então não haveria encrencas. Entretanto, refletindo um pouco, percebi que as minhas costas haviam limpado a Rua Sebastião Pereira! Então, bati-me a pé para casa, dessa rua até a Alameda Barão de Limeira.
Quando cheguei, encontrei minha mãe junto à porta, conversando com um sobrinho dela, mais velho do que eu, o qual era surdo de nascença. Ela se aproximou logo para me receber e disse:
– Filhão, como vai você?
– Mãezinha, muito bem!
Ela me olhou de frente, sem notar nada de anormal. Abracei-a e beijei-a, não querendo mostrar-lhe as minhas costas, para ver se conseguia entrar correndo e trocar de roupas, sem ela perceber, mas não pensei na reação que poderia ter o meu primo…
Como ele não ouvia, falava de modo singular. Então, enquanto ela me perguntava como tinha sido o meu dia no colégio, e eu lhe dava as notícias mais conformistas que se podem imaginar, ele começou a dizer:
– Pliniôôô, olha aí, Pliniôôô!
Mamãe não prestou atenção, mas ele continuava:
– Tia Lucilia! Pliniôôô caiu do bonde!
Ela não ouviu bem, e eu fuzilei-o com o olhar, mas ele insistiu:
– É isso mesmo! Caiu do bonde! Tia Lucilia, veja aqui atrás!
Mamãe disse:
– Quero ver.
E olhou-me por trás… Foi a tragédia! Para mim, era um desastre sobre o outro! Se o meu primo não estivesse na entrada de casa, eu teria resolvido o caso!
Poderia ter mentido para ela, dizendo que, ao descer do bonde, este se pusera em movimento inopinadamente, arrastando-me, mas não o fiz e tive de reconhecer o acontecido:
– Mãezinha, desci do bonde andando e caí.
– Ah, mas isso estava proibido! Como aconteceu?
Ela certamente tinha as suas razões para não querer que eu descesse do bonde assim: sabia que eu era muito desajeitado… Naquele momento, não me disse nada, mas, um pouco mais tarde, deu-me uma repreensão e uma explicação sobre o perigo que havia em descer do bonde daquele modo…
1 Igreja da Imaculada Conceição.
2 Literalmente, “no seu comprimento e na sua largura”: por inteiro, em toda a sua extensão.
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