A cruz da fidelidade
Nos primeiros anos de minha inocência eu tinha sido o paradigma do menino feliz, afetivo e pacífico por temperamento, cheio de alegria despreocupada, vivendo numa espécie de paraíso, no contato amistoso e jovial com os outros, e levado a querer bem às pessoas, com veemência. Mas o descobrimento repentino do mal, ao ver que o mundo inteiro era um enorme charco de Revolução1, me fez perceber a minha fenomenal solidão.
Ah! Como era duro e difícil dizer “não” ao estado de espírito e à situação geral, tendo de medir cada passo e lutando com o ambiente, à maneira de um veado acuado por cães ferozes de todos os lados e a todo o momento, apenas porque eu era eu! A necessidade de travar essa batalha chocava a minha sociabilidade no mais alto ponto. Doía-me muito sentir-me de tal maneira cindido de todos, empurrado de lado e exilado, me heurtant2 com um mundo que caçoava da afetividade e pregava a brutalidade.
Era como alguém que estivesse a sós e bradasse com toda sua alma: “Não!”, ouvindo depois, de todos os lados, as montanhas, os ventos e até as estrelas responderem: “Não, não e não, para você também!”
Sentia também como se estivesse sozinho num campo, enfrentando um tufão, o qual soprava na direção oposta à minha. Ele destelhava casas, arrancava árvores e convulsionava pontes, enquanto eu devia andar, andar e andar implacavelmente.
O gigante Adamastor, perplexidade e angústia
Parecia levantar-se diante de mim algo como o gigante Adamastor mencionado por Camões3: um monstro da antiga mitologia, feito de fumaça, de trevas, de destruição e de sanha de arrasar, que esperava as naus na volta do Cabo das Tormentas para destroçá-las nos mares revoltos, pois não queria permitir que os europeus chegassem até a Ásia.
Essa era a impressão que me dava o mundo contemporâneo e revolucionário, com suas conspirações e manobras: um gigante espreitando em certa volta da vida de cada homem, a fim de que nenhum deles realizasse o ideal do verdadeiro católico. Assim, eu percebia as ciladas do mal rondando em torno de mim e estava sempre na dúvida sobre o que iria acontecer. Quantas vezes cheguei ao colégio, perplexo e até angustiado com o que poderia ocorrer naquele dia!
A contrariedade e a desventura pareciam tomar conta da minha existência. A felicidade me parecia um joujou4 do meu tempo de criança, diante da montanha gigantesca das infelicidades que se atravessava no meio da minha vida.
Inúmeras vezes me perguntava: “Será bem verdade?!” Olhava para as minhas mãos e pensava: “É a mim que está acontecendo isto? Tudo mudou, então, de um momento para outro?”
Dois modos de ver o universo
No ambiente do entre deux guerres5, quando era moda ser alegre, quando a música, o cinema e a literatura cantavam em plena euforia, dizendo: “a vida é uma brincadeira!”, e espalhavam por toda parte a ebulição do prazer, eu olhava em torno de mim e percebia que a minha alma era profundamente diferente de todo mundo que me rodeava, tão longe quanto a minha vista podia atingir. Sentia que os outros tinham um modo de ver o universo que era o contrário do meu e pensava: “Quanta alegria! No meio disso, só eu estou preocupado e apreensivo! Só eu estou fazendo força e devo conduzir esta luta sozinho! Ó dor! Ó dificuldade!”
Uma bigorna sob os golpes da preocupação
Lembro-me que eu tinha de ir a um dentista na Rua Marquês de Paranaguá6. Era obrigado a levantar-me mais cedo do que o normal, interromper o meu caminho habitual para o colégio e andar meio quarteirão, a partir da Rua da Consolação.
Naquele tempo, quase todos os tratamentos dentários tinham de ser aguentados “no duro”, pois a anestesia era utilizada apenas quando era preciso arrancar algum dente. Eu detestava aquilo e notava que o dentista antipatizava comigo, mas, apesar de tudo, nessas ocasiões eu me mantinha mais tempo isolado – pois não estava em casa nem no colégio – e empregava as horas vagas da espera e dos percursos para refletir sobre os problemas e as dificuldades. Sempre se repetia em mim a sensação de incerteza, como se o chão me faltasse por debaixo dos pés, e dizia para mim mesmo: “É curioso! A propósito de pontos inteiramente diferentes, tenho sempre a mesma sensação de uma bigorna sobre a qual se descarregam os golpes das preocupações. Essa bigorna sou eu”.
Por vezes, refletia do seguinte modo: “Se, em vez de estar colocado nesta situação, eu tivesse um defeito físico notável, o qual chamasse a atenção, como, por exemplo, uma perna ou um braço amputado, poderia ser que algumas pessoas me evitassem, mas eu encontraria caminho por toda parte, pois ter-se-ia pena de um estropiado. Entretanto, como tudo é diferente nas minhas atuais condições! Quantos problemas graves! Que batalha para enfrentar!”
No jardim de casa
Na aparência, tinha uma existência normal, alegre e sem preocupações: muito conforto e largueza, ambiente doméstico modelar e boas relações com os primos, possuindo fartamente as diversões e comodidades que um menino de São Paulo daquele tempo poderia ter.
Lembro-me das brincadeiras no jardim de minha casa, nos dias em que se reuniam vinte ou trinta crianças da família, correndo de um lado para outro. Eu preferiria que me deixassem sossegado, pois tinha vontade de me sentar e me pôr a pensar. Entretanto, com chapéu de palha e fita elástica sob o queixo, eu mostrava animação, participava da algazarra, e ainda entretinha e divertia os outros. Era um ótimo companheiro, para que ninguém viesse me dizer: “como você é triste e esquisito!”, o que me deixaria completamente desclassificado no meu próprio meio.
Grandes decepções
Observava e pensava: “Está vendo aquele? E aquela? Que desilusão! Aquele outro não é como os demais, por enquanto, mas já estou percebendo o que vai ser daqui a pouco…”
Também, analisando as pessoas más em diversos ambientes, eu notava que havia entre elas duas categorias. Uma era a dos que praticavam o mal, porque o amavam, e outra – mais numerosa – era a dos preguiçosos e medrosos, que não amavam o mal, mas não tinham força nem ânimo para resistir às exigências dele. E pensava: “Se a dor me persegue desse modo, é sinal de que também vai atrás dos outros. Entretanto, eles não quiseram segui-la e têm as costas voltadas para ela. Por exemplo, se um deles fosse filho de mamãe, e ela o tratasse como me trata a mim, esse teria a sensação de ser absorvido para um mundo de grande elevação, mas de muito sofrimento. Ele não quereria, pois sentir-se-ia repelido por todos, e, por isso, entrou na via hollywoodiana7, que permanece sempre aberta para todo mundo. Ele se diverte e se alegra, inclusive no pacto com o pecado”.
Algo que me doía como uma punhalada era ver, em certos meninos um tanto mais velhos do que eu, restos moribundos de inocência, à maneira de épaves8. E pensava: “Esse que estou vendo, aquele outro, se tivessem dito ‘sim’ à dor como eu disse, estariam na posição em que eu me encontro. Não estão, pois responderam com brutalidade a esse chamado que ouviram”.
Entretanto, eu não detinha muito os olhos sobre esse espetáculo, pois não adiantava e também não queria sofrer o desnecessário, mas percebia que eles sentiam o contraste entre os destroços deles e a minha integridade. Viam-me sofrer sozinho e faziam um ato de dureza, como se dissessem: “Eu não segui essa via e não me incomodo em nada para ajudá-lo, pois sua causa me é estranha! É verdade que você está vendo em mim certa tristeza, mas o meu caminho está escolhido para todo o sempre, e por você não tenho sequer simpatia. Não conte comigo!”
Aquilo para mim era tremendo! Esses não me criavam dificuldades, mas cruzavam os braços e não me ajudavam nem sequer com o dedo mínimo.
Comecei a observar esses que não combatiam o mal por não terem coragem de enfrentá-lo, e notei que eles não queriam sacrifícios nem tristezas, mas apenas uma vida encestada, tranquila e mole, o que me parecia vergonhoso. Fui percebendo assim o quanto essa segunda forma de mal era pior do que a primeira, por alguns aspectos. E pensava: “Que infâmia! Que contradição há em fazer o mal porque outros querem, por preguiça de dizer: ‘Eu entro em luta, mas não agirei mal!’”
“Não há um varão que esteja comigo”
Assim transcorreram alguns anos de desilusões, sentindo uma enorme necessidade de conhecer alguém que fosse ideologicamente consonante comigo; um interlocutor, pelo menos, com quem pudesse conversar, como eu conversava comigo mesmo. De vez em quando, o meu desejo dessa grande afinidade de alma com alguém gerava uma esperança, inclusive em relação a certas pessoas idosas: “Quem sabe aquele? Quem sabe aquela parenta? Quem sabe aquele outro?” Mas, implacavelmente, no fim do dia, o meu boletim registrava uma cruel e amarga decepção.
Apenas sentia apoio em minha mãe9, mas nem mesmo ela podia calcular o que essa luta representava para mim, pois tais problemas não haviam atravessado a infância dela. Além do mais, como eu tentava ocultar de todo mundo o que sofria, ela não percebia o meu choque com o ambiente.
Eu imaginava que a Europa das tradições, a Europa da Semaine de Suzette10, de Rosa von Tannenburg11 e de Carlos Magno, ainda tivesse algo do que eu amava, mas entendia que o continente americano, do Norte ao Sul, se encontrava muito influenciado pelo cinema de Hollywood e era semelhante ao que via em torno de mim. Ora, para mim, Hollywood era o index12 das coisas como não deviam ser, do modo como não se devia pensar, entrar ou sair, sentar ou levantar, tossir, respirar ou piscar. Era a Geena13, onde tudo acontecia de maneira errada.
E pensava: “Se fosse morar na Europa, encontraria alguém com quem pudesse estabelecer uma relação de alma, pela qual eu deixaria de ser um infeliz”.
Muitos anos mais tarde, quando li a biografia de São Pio X, conheci a frase da Escritura que diz: “De gentibus non est vir mecum”14 – “Entre todas as nações, não há um varão que esteja comigo”. E disse: “Esse era o gemido de minha infância!”
“Ninguém é como você”
Iniciava-se para mim a tentação do respeito humano, pois percebia que, ao entrar em alguns ambientes, todos os presentes notavam que eu trazia uma fisionomia de reflexão e de seriedade. E, por causa disso, os mais velhos me tratavam com cordialidade, mas com certa distância e com olhar desapontado, como quem diz: “Esse é um bobo!”
Então, sentia como se alguém me dissesse: “Ninguém é como você! Você vai ser um cretino, um estúpido, do qual todo o mundo vai rir! Você vive em cogitações que só se compreenderiam na alma de um artista ou de um poeta, mas você não tem dons artísticos. É um poeta que não sabe rimar e um músico que não sabe compor. Quando se trata de imaginar uma melodia, você não vai além de dó-mi-sol-dó. Que uso fazer de você, miserável, tão maravilhável e incapaz de fazer aquilo que os homens julgam maravilhoso? Você está tentando abrir para si, na vida, uma via de maravilhas que ninguém seguiu – nem sequer os grandes homens – e que o levará ao insucesso. Não se faz carreira assim! Mas, se renunciar a essas ideias, como sendo falsas e infundadas, você será um homem eficiente e esperto, adquirirá jeito para os negócios e terá um certo modo de tratar os outros, pelo qual os levará para onde quiser. Agora, porém, você não os leva, porque tem cogitações e vias que eles não possuem, mas que todos percebem, ainda que você não o diga, apenas pelo seu olhar! Renuncie radicalmente a essas reflexões, empurre de lado esse pulchrum15 e essas maravilhas que não existem, e você será um homem de sucessos econômicos e de realização política!”
Rumo ao deserto das incógnitas
Quando via homens de trinta, quarenta ou cinquenta anos de idade, os quais eu reputava não muito distantes da velhice; ou senhores de setenta anos, que já me pareciam sócios da morte, uma das minhas perguntas era: “Chegarei até lá? Como serei quando chegar? Que espécie de homem? Qual será meu futuro? Até que ponto conseguirei ser aquilo que desejo ser? Qual é essa grande incógnita que está na minha frente? Sou muito jovem ainda, sinto-me forte e saudável, cheio de energia e vitalidade, e, ainda mais, minha mãe me obriga a fazer toda espécie de ginásticas e ingerir remédios – como óleo de fígado de bacalhau – para fortalecer a minha saúde… Na família de meu pai16 morre-se tarde e, na de minha mãe, muito tarde. Pela regra geral, é provável que eu viva longamente e esteja, portanto, no começo de minha existência…”
Em certas ocasiões, fazendo parte da meninada da época, entrávamos em algum salão para sermos apresentados e cumprimentar os mais idosos. Estes nos recebiam com sorrisos e proferiam frases deste gênero:
– Ah, você está numa idade encantadora! Pudesse eu voltar para sua idade!
De fato, eu me sentia quase como um quinquagenário ou sexagenário fanado, cheio de rugas, provado pela dor e pela aflição, carregando uma tragédia dentro de mim. E pensava: “Esse senhor, na minha idade, não calculou o peso do futuro que tinha diante de si! Eu sinto esse peso da incerteza. Oh! Se eu pudesse saber o que vou ser!”
Assim era a minha aflição, pensando no dia de amanhã. Eu não tinha vontade de morrer, mas, pelo contrário, queria viver. A minha situação era como a de alguém que abomina o estar sedento e exposto ao sol, mas se encontra na orla de um deserto, diante da alternativa: morrer ou entrar no deserto. Ele não quer morrer, mas também não quer entrar no deserto. O que fazer? Os fatos o impelem deserto adentro…
Previsão para toda uma vida
E dizia para mim mesmo: “O que se estende diante de você é uma longa e intérmina vida de incompreensão e de batalha, de isolamento e de dor. É patente que não terá glorificações nessa luta. Você não será aclamado como grande homem, mas sempre malvisto por todos. De sua família, ninguém será tão pouco quanto você, pois será menos do que todos os parentes de sua idade. Veja como todo mundo gosta deles e levam uma vida fácil! Diante de você, pelo contrário, há um caminho estreito, pedregoso e cercado de espinhos, os quais o arranharão, o estraçalharão e lhe farão toda espécie de mal, enquanto eles correrão em bonitos automóveis sobre avenidas asfaltadas, com árvores frutíferas ou floridas de ambos os lados. Eles sempre passarão junto a você como se não o conhecessem, olhando-o com desdém, pois você será o incompreendido e o execrado, enquanto eles rirão e farão parte do carnaval geral!”
Vida de carrasco?
Lembro-me de uma das histórias que Dª Lucilia contava, na qual entrava a descrição da vida de um carrasco no Ancien Régime17. Junto a certa aldeia havia uma casinha muito bem cuidada e arranjadinha, com um pequeno jardim, trepadeira, cortininhas e crianças brincando. Ali vivia o carrasco, homem de uns quarenta anos, sério, calmo e um pouco sinistro, mas chefe modelar de uma família unidíssima.
Entretanto, eles viviam sem amigos, pois ninguém visitava o carrasco. Quando chegava o domingo, ele ia para a Missa na aldeia, mas todo mundo se afastava dele e, inclusive, ninguém se sentava no banco da igreja que ele ocupava com a família. Todos reconheciam que a profissão de carrasco deveria existir e era honrada, mas ela importava numa espécie de naturalidade no derramar sangue, o que a tornava de algum modo repudiável e punha aquele homem à margem da sociedade, não como infame nem criminoso, mas como pessoa diante da qual se devia fazer o vazio.
Ora, eu pressentia para mim a vida de um carrasco, pois as pessoas viam o intransigente como os antigos consideravam o carrasco.
“Por que nasci com esta mentalidade?”
Para os meus ombros, aquela cruz era enorme e desproporcionada. Sofri tanto quanto um menino pode sofrer e compreendi, in radice18, que esse sofrimento iria tão longe quanto o de um homem pode ir.
Então, vinha-me naturalmente ao espírito a pergunta: “Mas, afinal, quem sou eu? Por que nasci com esta mentalidade, a qual para mim vale mais do que a luz dos meus olhos, mais do que minha mãe, mais do que meu pai, mais do que qualquer coisa na vida? Que papel eu tenho? Por outro lado, como é que posso pensar num chamado especial para mim, uma vez que a imensa massa das pessoas – inclusive pessoas respeitáveis – não vê o que eu vejo? Como imaginar a meu respeito algo a mais do que os outros pensam? Não estarei em presença de uma afirmação da inteligência universal? E, se estou em presença dessa afirmação, será razoável que eu oponha meu critério pessoal ao enorme fluxo do critério desse bom senso geral? Essa escolha que fiz não foi prévia a qualquer raciocínio e, portanto, gratuita? Tudo o que estou imaginando, discernindo ou entrevendo, não serão quimeras ou ilusões de meu espírito?”
Mas, depois, pensando melhor, dizia: “Vamos para frente! É impossível que Deus não queira de mim alguma coisa no futuro. Devo ir me formando e mantendo-me fiel, até que apareçam, um dia, as circunstâncias que expliquem por que nasci, e a Providência faça baixar do Céu um ‘gancho’ ou uma ‘corda’, para eu poder cumprir o destino que tenho!”
Eu utilizava a palavra “destino”, não ousando empregar o termo “vocação” em relação a mim mesmo, pois pensava que ele se aplicava apenas ao clero.
Um menino esperado
Por outro lado, quando eu travava contato com ambientes novos – em certas festas de aniversário, por exemplo – e via muitos meninos pela primeira vez, tinha a clara noção de que, para eles, eu era um monitum19, chamando-os a serem mais sérios.
Ao me conhecerem, abria-se nas almas deles um espaço para mim – escuridão se me negassem, foco de luz se me aceitassem – pelo qual sentiam que a vida deles, até então, havia sido um preâmbulo. Tinham a impressão singular de ver uma pessoa esperada pela História, pois a meninada possuía a noção confusa de que, naquelas circunstâncias do mundo, deveria vir alguém que lhes indicasse um rumo.
Desse modo, no começo do contato com eles, dava-se, muitas vezes, uma vitória da minha presença – pacífica e desarmada –, motivada por essa esperança. Mas, logo depois, devido à prevenção que existia contra mim, havia um fechamento da parte deles, e o efeito que eu produzia era sepultado. Eu causava a alguns certa inibição e a outros, uma espécie de ódio agressivo.
Porém, ainda que me rejeitassem, a batalha continuava subconscientemente naquelas almas, pois eu havia criado neles um fato consumado.
Brisas e luzes num mar sereno
Existiam aspectos agradáveis da vida que compensassem todas as minhas dificuldades? Havia em tudo isso alguma felicidade? Eu notava que a situação em que eu vivia me torturava, mas que nela eu crescia, pois fazia amadurecer o meu espírito e, inclusive, me tornava mais inteligente. Em relação ao menino que eu havia sido anteriormente, era quase outra pessoa. Nesse sentido, devo dizer que o embate com o mal me foi altamente benfazejo, pois me obrigou a compreender a vida sob outra luz.
Além do mais, por natureza, eu tinha a tendência de considerar a realidade pelos seus lados bons, compreendendo bem o nexo entre todas as coisas legítimas e boas, e dando muito valor àquilo que podia me alegrar. De maneira que, gozando dessas coisas, eu não as fruía de um modo animal, mas, sobretudo, pelo prazer de alma que elas me davam.
Lembro-me de certas fotografias da Europa que eu via nessa época, representando, por exemplo, panoramas suíços: a Suíça dos lagos e das montanhas, com auroras feéricas, róseas e azul pastel, que me encantavam. Uma dessas imagens mostrava o Castelo de Chillon, nos bordos do Lago Léman20. A paisagem me parecia ter algo de uma superdelicadeza da natureza, tranquila e estável. Águas tão serenas, transparentes e puras, os Alpes com neves tão castas e magníficas, um frio tão equilibrado e sensato! Aquele me parecia ser um castelo paradisíaco, representativo de todos os outros.
Tudo isso me causava um tal frêmito, que eu desejaria olhar indefinidamente para essa fotografia, fazendo reflexões. Não o fazia por falta de tempo e porque não se compreenderia tal atitude da parte de um menino. Mas, se a tivesse no meu quarto, seria capaz de passar sestas inteiras sem dormir, contemplando-a.
Assim, percebia que a tradição havia deixado muito de apreciável e de agradável nos ambientes daquele tempo, restos de um passado que me falava de uma espécie de transmundo ou de “transesfera”21. Eram como brisas e luzes, vindas de um mar sereno, por meio das quais, em certas horas, eu podia esquecer a batalha e respirar a plenos pulmões. Era a felicidade da virtude, eram as alegrias da Fé, as certezas da esperança, os entusiasmos do amor de Deus e, no fundo, o desejo do Céu.
A graça do Natal
Isso se dava, por exemplo, na Missa do Galo.
Na noite de Natal, a partir das oito ou nove horas, a expectativa pela Missa era tão viva, que os moleques na rua começavam a bater com paus nos postes de ferro, imitando de modo rudimentar os sinos das igrejas. E nós íamos a pé para a Igreja do Sagrado Coração de Jesus.
Todas as casas tinham suas portas e janelas abertas, e as luzes acesas. Então, durante o percurso, eu via nas residências modestas, como também nas que eram quase palácios, árvores de Natal, menores ou maiores, com velas acesas. Ouvia-se algum gramofone reproduzindo roufenhamente músicas de Natal, e percebia-se a alegria das famílias: todos estavam acabando de se aprontar e começavam a sair também, e em algumas casas permanecia apenas um criado tomando conta. Nas ruas se viam as pessoas andando com muita paz e com o vagar característico de quem costumava estar dormindo naquela hora tardia.
Às dez horas as igrejas eram abertas e começavam a chegar as pessoas que desejavam ter um lugar cômodo para assistir à cerimônia. Muitos permaneciam esperando por duas horas inteiras, sentados e, às vezes, rezando. As senhoras cochichando de vez em quando, umas com as outras, e os homens bocejando. Aos poucos, o público ia enchendo o templo. E, cada vez que se abria a porta da igreja, uma luz forte iluminava a calçada e ouviam-se da rua os primeiros ecos dos cânticos natalinos.
Eu via a igreja iluminada de um modo que, para minha ótica, era feérico. O altar estava cheio de flores, e sentia-se algo que pareceria uma contradição: recolhimento e explosão de alegria ao mesmo tempo, o que me enchia a alma! Por fim, tocavam os sinos para festejar o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, todos se levantavam e entrava o Padre paramentado, trazendo a imagem do Menino Jesus. Levava-a até o presépio e ali a colocava. A Missa começava e o Natal chegava ao seu auge na hora da Consagração e da Comunhão. Vinha-me a ideia de que Nosso Senhor tinha nascido em Belém, numa noite como aquela, e de que Ele estava realmente presente em nós. Fazia os meus pedidos, mas, sobretudo, o que me impressionava era uma sensação de intimidade. Eu tinha uma estampa que representava Nosso Senhor Jesus Cristo segurando um menino com a mão – o qual tinha cabelos pretos e cacheados –, e apertando-o junto ao peito d’Ele. Em baixo, havia uma jaculatória, que dizia: “Ó bom Jesus, tende piedade de mim!” E nesse momento eu rezava, pensando: “Espiritualmente, Nosso Senhor está fazendo isso comigo nesta hora. E eu peço: ‘Ó bom Jesus, tende piedade de mim!’”
Tinha então a sensação de uma graça que vinha de uma imensa altura! E de tal qualidade, que enchia as pessoas de duas disposições de espírito que pareceriam incompatíveis, mas que convivem maravilhosamente: a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime e, de outro lado, a doçura de quem recebe uma misericórdia sem limites.
Parecia-me que, depois de celebrada a Missa, essas graças de Natal se difundiam por todas as casas. E, quando chegávamos de volta, a nossa já não parecia ser bem a mesma que tínhamos deixado: havia nela algo de religioso, de sacral e de recolhido, que era para mim uma verdadeira maravilha. Mas, ao mesmo tempo, algo de tão alegre, que não se sentia alegria igual ao longo do ano inteiro. Começavam os ósculos e as felicitações. E não preciso dizer que eu era enormemente mais sensível ao carinho de uma pessoa, do que a todos os outros somados… Eu já vinha da igreja contando com essas manifestações de afeto que eram um complemento da noite de Natal: a mãe católica osculando um filho.
Depois, começava a festa de Natal, que já descrevi em outra ocasião22.
Exercícios de maravilhamento e consolidação da inocência
Lembro-me também de um fato insignificante. Certa vez, eu estava passando pela Rua Libero Badaró23, e encontrei uma loja, não muito grande, que anunciava a venda a granel de pequenos objetos feitos em madeira, muito baratos, os quais representavam cenas de várias épocas do passado.
Então, vi uma grande caixa com uma quantidade de espelhinhos, cada um dos quais tinha na parte de trás uma cena dos antigos tempos, provavelmente impressa. Encantei-me com um espelhinho que trazia um jardim, sobre o qual se via um céu azul muito delicado, e senhoras e senhores do Ancien Régime – elas com saia-balão – conversando entre si amavelmente. Ao lado havia uma alta alameda e uma escadaria, da qual desciam algumas pessoas, também conversando. Assim, os de baixo e os de cima se esperavam e se acolhiam. Era uma cena da vida num palácio.
Mais adiante havia um baú, cheio de caixinhas muito bonitas, pouco maiores que o espelhinho, feitas de madeira, de formas diferentes e todas pintadas, de maneira a representar baús de tipo antigo, como os que eram usados no século XV, sobretudo no norte da Itália, antes do aparecimento do armário perpendicular. Então, escolhi um bauzinho de estilo florentino, de um verde-garrafa profundo, com sulcos dourados.
Comprei os dois objetos, mais encantado com o modelo ideal que representavam, do que com eles tal como eram na realidade, mas julgando serem de grande valor. Coloquei-os nos meus bolsos de colegial do melhor modo que pude – de maneira a não incomodar os meus vizinhos de bonde – e levei-os para casa. Quando cheguei, uma pessoa bem mais velha do que eu me perguntou:
– O que você traz no bolso?
Eu disse:
– Olhe que coisa bonita eu comprei! Uma caixinha linda, uma beleza!
A pessoa me olhou, fez um movimento com os lábios, como se dissesse: “Só isso?” e comentou:
– Está bem… Que engraçadinha!
O que equivalia a dizer: “Cretino, cale a boca! Você não deveria estar gastando dinheiro com isso! O que fazer dessa caixinha?” Outros, em casa, me olharam com estranheza, como se pensassem: “Esse menino cogita dessas coisas…?” E deram-me a entender que se tratava de objetos muito ordinários, nos quais não valia a pena prestar atenção.
O resultado é que eu me senti refoulé24, mas pensei: “Deve-se gostar destes baús e de coisas semelhantes! Sei que fiz um achado, mas, se eles são assim, não é por não apreciarem o baú, nem o espelho: eles não gostam de mim, pois, no fundo, eu sou como esses objetos! Na primeira ocasião em que puder, estando a sós, vou trancar-me e ‘conversarei’ com meu espelhinho e meu baú, para desenvolver essas minhas apetências”.
Assim eu comprava e guardava um mundo de bric-à-brac25, que eram para mim exercícios de émerveillement26. Aqueles objetos me encantavam e me faziam muito bem, pois eu percebia neles algo de cristão, que consolidava, ilustrava e confirmava todas as posições de minha inocência e, inclusive, de minha união com mamãe.
A felicidade da virtude
Nesses momentos de alegria em minha vida, eu sentia uma disposição interna de estabilidade, de lógica e de paz, que compensava em alguma medida o que eu sofria. Eu me rejubilava e vinha-me ao espírito a seguinte ideia instintiva: “O que eu possuo de boa ordenação em minha alma é algo que me dá um gáudio admirável! Os que pecam, pensam que são mais felizes, mas são bobos, pois, analisando o grau de prazer que o pecado pode dar nesta vida, percebe-se que ele não é um deleite comparável à felicidade de sentir e fruir o universo, à retidão daquele que está voltado para a virtude e para Deus. Eu observo de perto os impuros e orgulhosos, e vejo que eles têm fogachos, assomos, estremecimentos e frêmitos de prazeres sensíveis que passam. Então digo: o felizardo sou eu! Vergo sob o esforço da luta e quase racho sob o peso do sofrimento, mas há um lado da realidade que eu contemplo e diante do qual minha alma se expande inteira: aquele chapéu da Idade Média27, o penacho de uma armadura, o som de um clarim de cavalaria, aquela carruagem de Versailles que tanto me havia encantado e à qual me agarrei28…Todas essas coisas que são o sorriso de minha infância, a alegria de minha vida e a esperança de minha eternidade, dão-me no interior da alma não sei que ordem, que certeza, que segurança e que intransigência de ferro e de fogo; não sei que indiferença, que pouco caso e que afastamento em relação a tudo quanto não é isso ou não se relaciona com isso; e também que espécie, que grau e que forma de afeto por toda pessoa na qual eu note algum laivo disso!”
Dama medieval . Ilustração do livro Le Moyen âge ( A Idade Média), da coleção Cours complet d’Histoire ( Curis completo de história), de Albert Malet, pertencente a Plinio
Fiel à sacralidade
Mas, o que era, no fundo, esse aspecto da realidade que eu contemplava?
Um ponto central único, o qual tinha sido o enlevo de minha vida desde que eu abrira os olhos para ela: a ideia de um valor que se chama sacralidade e que contém a seriedade, a nobreza, a dignidade e a temperança, resumindo tudo em si e transcendendo o que é puramente humano, pois é celeste.
Era, talvez, a própria noção de ser – não só da criatura, mas do próprio Ser Divino – vista com uma clareza especial através dos reflexos visíveis, que me convidavam para a contemplação, para a ação, para a luta e para o heroísmo. Por outro lado, o asseio, a distinção e a compostura me conduziam para esse valor e me faziam viver num mundo ordenado, atraente, magnífico e delicioso, cheio das harmonias da inocência.
Eu notava que, se quisesse, em meio minuto poderia largar tudo isso, mas percebia que cometeria um pecado imenso, pois apagaria uma luz, que era a única coisa que valia em mim, e sem a qual eu me tornaria um ente desprezível. A condição para possuir essa luz era não ceder em nenhuma circunstância, por insignificante que parecesse, pois ela exigia de mim uma fidelidade ciumenta. Se eu, por exemplo, comesse uma paçoca de maneira indevida ou brincasse com uma minhoca de modo inadequado, diminuiria um tanto a intensidade dessa luz e debilitaria as minhas forças, pondo-me no risco de apagá-la por inteiro, e de cair numa espécie de apostasia em relação à minha própria pessoa.
Eu apostataria de ser Plinio.
Então, fazia-me a seguinte pergunta: “Você quer ser fiel a essa luz? Continuará a carregá-la em sua alma, mas pagará por ela um preço que ninguém paga: ser um pária, posto de lado e odiado, numa luta constante para se impor ao respeito e fazer brilhar aos olhos dos outros o que você traz dentro de si”.
Depois, porém, compreendi algo a mais: para ser verdadeiramente conforme a Nosso Senhor Jesus Cristo e à Santa Igreja Católica, eu deveria possuir duas qualidades. Uma, eu já a tinha: o horror e o ódio a toda forma de mal. Mas precisava adquirir a outra, como exigência inexorável: era o ódio a mim mesmo.
1 As palavras Revolução e Contra-Revolução, quando escritas com iniciais maiúsculas e não se referirem a algum episódio histórico determinado, são utilizadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em sua obra Revolução e Contra-Revolução, a saber:
Revolução: processo que se manifestou, na ordem dos fatos, no início do século XV. Nasceu ele de uma explosão de paixões desordenadas que vai conduzindo à destruição de toda a sociedade temporal, à completa subversão da ordem moral, à negação de Deus.
Contra-Revolução: luta incruenta para extinguir a Revolução e construir a Cristandade nova, toda resplandecente de Fé, de humilde espírito hierárquico e de ilibada pureza. (Corrêa de Oliveira, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. São Paulo: Retornarei, 2002, pp. 144 e 147.)
2 Em francês: colidindo.
3 Cf. Os Lusíadas, Canto V.
4 Em francês: brinquedo (jouet), na linguagem infantil.
5 Em francês: “entre duas guerras”; período que mediou entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, de 1918 a 1939.
6 No Bairro da Consolação.
7 Na linguagem do Autor, o adjetivo “hollywoodiano” qualifica com frequência a mentalidade reinante no Ocidente após a Primeira Guerra Mundial, fortemente influenciada pelo cinema de Hollywood. Cf. Volume II desta coleção, p. 85 ss.
8 Em francês: restos de um naufrágio.
9 Lucilia Ribeiro dos Santos Corrêa de Oliveira.
10 Revista infantil francesa muito lida por Plinio, com especial interesse pelas histórias de Bécassine. Cf. Volume I desta coleção, p. 246 ss.
11 Rosa von Tannenburg: personagem dos contos do Abade Schmidt, os quais Plinio lia com agrado, incentivado pela Fräulein Mathilde Heldmann, sua governanta alemã. Cf. Volume I desta coleção, p. 271.
12 Em latim: índice; antigo catálogo de livros proibidos pela Igreja Católica.
13 Termo de origem bíblica, sinônimo de Inferno. O vale da Geena, próximo de Jerusalém, contaminado pelo culto idolátrico a Moloc (Cf. Jr 32, 35), era considerado símbolo do lugar destinado à punição eterna dos pecadores, e é mencionado no Novo Testamento em Mt 10, 28; Mc 9, 42 e Lc 12, 5.
14 Is 63, 3.
15 Em latim: belo, beleza.
16 Dr. João Paulo Corrêa de Oliveira.
17 Em francês, literalmente: Antigo Regime. Período da história da França iniciado em princípios do século XVII e extinto em 1789, com a Revolução Francesa. Caracterizou-se por um requinte de bom gosto e pela elevação do convívio humano.
18 Em latim: na raiz, na origem.
19 Em latim: advertência, aviso.
20 Castelo do século XIII, perto de Montreux (Suíça).
21 Com frequência, Dr. Plinio utilizava o termo “transesfera” como expressão figurativa, a qual designaria uma região superior à esfera do mundo visível, mas em conexão com esta. Na verdade, referia-se ele a uma realidade teológica muito definida: a repercussão dos acontecimentos terrenos em Deus e a influência destes em certas resoluções d’Ele no governo do universo.
22 Cf. Volume I desta coleção, p. 486 ss.
23 No centro velho de São Paulo.
24 Em francês: repelido.
25 Em francês: conjunto de objetos usados, velhos e heterogêneos.
26 Em francês: maravilhamento.
27 Cf. Volume II desta coleção, p. 464 ss.
28 Cf. Volume I desta coleção, p. 161 ss.
Deixe uma resposta