A vitória é dos que sofrem bem
Apesar de todo o sofrimento, Dona Lucilia era suave, tranquila, sem o menor sinal de desespero, de estraçalhamento. Compreendia em toda a extensão quais eram as dores da vida, certa de que no undo a vitória é dos que sofrem, tendo sempre os olhos voltados para o Sagrado Coração de Jesus.
Dona Lucilia nasceu num período muitíssimo diferente do nosso, que na Europa talvez já tivesse começado a declinar um pouco, mas no Brasil ainda vivíamos de cheio: era o regime chamado do romantismo.
Romantismo e “hollywoodismo”
O romantismo era uma escola de pensamento pífia, mas que tomou conta do mundo, a qual erigia como rincípio que o sentido verdadeiro da vida do homem estava na dor; se o homem sofresse muito ele realizava sua existência. Exatamente o contrário de um princípio pior ainda, que era “hollywoodiano”, segundo o qual a vida do homem está no prazer; se ele gozasse intensamente a vida, teria realizado sua finalidade.
Ela nasceu no último período do romantismo e assistiu o levantar-se do sol espúrio do “hollywoodismo”.
Pela escola do romantismo, a pessoa devia examinar sua própria vida e buscar nela o que era ou podia ser uma causa de sofrimento. Os partidários dessa escola diziam – e nisso tinham razão, pois o mal absoluto não existe – que todo homem que examine bem suas condições de vida encontra razões de sofrimento, e deve estar atento a essas razões, compreendendo que elas muitas vezes não são removíveis. Então, é preciso aceitar essa dor reconhecendo – outra coisa verdadeira – que ela é um fator de valorização da alma.Com efeito, em linguagem católica, a dor é um fator de santificação e é necessário aceitá-la, embora, sendo possível, possamos e até devamos procurar remover os padecimentos que venham ao nosso encontro por permissão da Providência.
Por exemplo, uma doença. A pessoa está enferma, mas tratando-se bem pode ficar curada. O verdadeiro bom senso não é dizer: “Meu Deus, Vós mandastes sobre mim uma doença; abro os meus braços e me entrego!” Ora, tome remédio! Ou, atitude bem mais dura: faça regime, mas não choramingue aquilo que você pode remediar. Deus lhe enviou a doença, mas também o remédio e o dinheiro para comprá-lo.
Então compre o remédio, tome-o e acabe com essa enfermidade e com essa choradeira também.
Contudo, há doenças e sofrimentos que são irremovíveis. A pessoa precisa aceitá-los: “A Providência quis que toda a minha vida eu sofresse isso, vou aceitar de frente e não procurar fechar os olhos ao significado da minha dor; pelo contrário, vou vê-la inteira, tudo o que eu perco, tudo quanto eu sofro e ainda sofrerei por causa disso, e preparar minha alma como um guerreiro se prepara para a guerra.”
E o enfrentar consiste muitas vezes em travar uma luta mais dura do que a própria doença ou a própria provação. Por exemplo, a pessoa tem uma enfermidade e padece com isso. A reação poderia ser: “Ai, ai, ai… Como estou sofrendo!”
A verdade não é essa: “Você está sofrendo? Está bom, mas sua vida não é feita só de sofrimento, há outras coisas boas: pão com manteiga, por exemplo. Coma o pão, a manteiga, trabalhe, lute, ponha seu ideal onde deve estar, que é no serviço da Santa Igreja, na derrota de satanás, e meta o peito!”
Dureza de alma no trato
No caso de Dona Lucilia, ela via duas situações. No tempo desse romantismo, se dava à beleza física do elemento feminino uma importância muito grande, sendo que a formosura do rosto tinha uma importância muito maior do que a do corpo. A mulher podia ser uma “baleia”; desde que tivesse uma face fantástica, estava tudo aprovado. Mas se ela não era muito bonita de rosto, passava para o último lugar.
Em cada família a moça querida, admirada, apreciada era a filha bonita. E a filha que tivesse um rosto comum, por mais amável, gentil e cortês que fosse, tivesse bom gosto no modo de se vestir,
não sendo bonita passava para o segundo plano.
Ora, Dona Lucilia não era considerada bonita pelos contemporâneos dela, e por causa disso, no plano das moças de sociedade, ela passava para o segundo naipe. Então, nos afetos, nos carinhos – não direi dos pais e dos irmãos, mas do restante das relações – ela passava para um plano secundário, e no primeiro plano ficavam as outras.
A estupidez desse procedimento, o modo agudo com que isso muitas vezes se fazia sentir se mostravam naquilo que para ela era o verdadeiro sofrimento: a dureza de alma dos outros, e não o fato de que ela ficasse no segundo plano. Falsa filosofia da vida Eu conto um casinho ocorrido com determinada família, e que faz sentir a coisa ao vivo.
Um advogado com um grande escritório em São Paulo ganhava muito bem, e tinha uma cliente que lhe dava muito boas causas. Era uma viúva – ou uma solteirona, não guardei bem esse pormenor –, muito rica. Essa senhora tinha já uns sessenta anos ou mais e adoeceu, mas não havia quem tratasse dela. Então esse advogado combinou com a esposa e convidaram essa senhora para ir se tratar na casa deles.
Entrava caridade e, provavelmente, os negócios do escritório também. Mamãe frequentava assiduamente essa casa e, tendo ficado com muita pena dessa pessoa doente, tratava-a com todo o cuidado, sendo muito amável e gentil. Nessa residência morava uma moça muito bonita que dizia: – Lucilia, você faz papel de boba.
Por que você a trata com tanto carinho, colhe flores para ela, mostra- -lhe livros com gravuras e tantas coisas para distraí-la, quando ela não lhe quer bem? Ela quer bem a mim.
– É que eu tenho pena dela – respondeu mamãe. Gargalhada da outra:
– Você é uma boba! Pena não existe, o que há é interesse. A outra tem interesse em me agradar e não em agradar você.
Enquanto ela estiver doente, ela vai receber suas carícias muito bem. Mas você esteja presente aqui na hora de ela ir embora, e vai ver o modo de ela agradecer a mim e a você. Eu, que uma vez por dia me aproximo dela, dou uma prosinha de alguns minutos e vou embora, você verá os beijos que ela vai me dar. Quanto a você: “Lucilia, muito obrigado.”
Mamãe achou improvável tal atitude. Na hora da despedida, ela estava lá. A senhora doente disse à moça bonita: – Fulana, muito obrigada por tudo quanto você fez por mim, eu lhe sou muito agradecida, dá-me um beijo, e mais outro, de suas carícias não me esquecerei jamais.
Depois à mamãe, que estava ao lado da outra:
– Lucilia, estou agradecida; você me foi muito gentilzinha.
Essa é a vida, hein! Não sei se na época dura em que estamos é preciso explicar que a vida é assim, pois se tem a impressão de que isso não é novidade para ninguém. O que estava subentendido no modo de a moça bonita dizer era: “Eu sou bonita e você é feia. Portanto, para você ninguém dá importância. Você não consegue nada com ninguém, porque bonita sou eu.”
Isso constitui uma filosofia da vida, falsa, péssima, mas, queiram ou não, é uma filosofia da vida.
Fonte de toda consolação
Por outro lado, Dona Lucilia foi compreendendo que na época em que ela vivia as relações já não eram movidas senão por interesse, e que o afeto desinteressado fazia parte do tempo expirante do romantismo.
Com a modernidade tinha entrado a brutalidade, o interesse pessoal, o pouco caso pelos outros que sofrem e o desprezo. Isso marcou uma grande tristeza na vida dela, por compreender que tudo não era senão isolamento, pois todo mundo era assim e ela não teria possibilidade de encontrar quem tivesse para com ela a forma de afeto e de união de alma que ela quereria ter com tantas pessoas.
Daí, então, uma espécie de problema axiológico: “Como é a vida? Como devo fazer? Como preciso entender as coisas?” Onde entrava uma profunda decepção e um modo muito severo, inteiramente real e exato, de ver os outros.
Eu já tenho visto pessoas elogiarem exame médico com estas palavras: “Tal doutor fez um exame médico severíssimo.” Claro que isso é elogio, porque é para saber se está doente ou não. Não vai fazer um exame frouxo para a doença passar desapercebida.
Se é para curar mesmo, o exame tem que ser severíssimo. Antigamente usava-se muito esta expressão: “O médico exigiu uma radiografia.” Quer dizer, os doentes não tinham muita vontade de se deixarem radiografar, porque a radiografia às vezes dá susto, e tiravam o corpo. Não podiam, pois “o médico exigiu”, ou seja, queria dizer: “Eu não me sinto seguro e não vou carregar um diagnóstico errado nas costas; portanto, faça uma radiografia que eu analiso e trato do seu problema, do contrário, não o farei.” Ora, Dona Lucilia fez um exame severíssimo da vida. Com seu bom senso, sua retidão moral, ela radiografou a existência e compreendeu como era.
Daí uma grande decepção, mas também uma enorme consolação, pois se vê bem tudo quanto nela confluía ao Sagrado Coração de Jesus, que exatamente é Fons totius consolationis, segundo uma das invocações da Ladainha do Sagrado Coração de Jesus: Fonte de todas as consolações. É verdade que se na vida encontrarmos apenas decepções, encontraremos a Ele, que é a Fonte de toda consolação.
Um caminho semeado de espinhos
Isso se aplica também ao apostolado. Entra-se para a vida de católico militante, renuncia-se a uma porção de potocas para se dar inteiramente ao Sol de Justiça, que é Nosso Senhor Jesus Cristo; ter a vida transcorrida sob a doce luz de Nossa Senhora, pulchra ut luna, electa ut sol, terribilis ut castrorum acies ordinata – bela como a Lua, eleita como o Sol e terrível como um exército em ordem de batalha.
Pensa-se: “Oh, que legião de amigos magníficos me aguarda lá! Todos tão bons, renunciaram a tanta coisa, o coração deles é movido, como o meu, pela graça de Deus e pelos mesmos ideais, que maravilha!” A partir de determinado momento aparece uma decepção, depois outra, e vê-se que nem tudo é maravilha… Ora é um companheiro de apostolado que está em crise, e começa a nos atormentar e a exercitar nossa paciência; um outro faz não sei o quê, e compreendemos que entramos num caminho como a Via Crucis de Nosso Senhor Jesus Cristo: sacrossanta, linda, mas cujo chão é semeado de espinhos os quais, às vezes, nos varam o corpo de lado a lado.
Quando isso acontece, a pessoa deverá dizer: “Eu conhecia esse caminho, não me deixaram ter ilusão e não tive. Agora chegou a hora.” E paga o preço. Este é o preço do Céu. Quem pensa assim pode estar crivado de sofrimentos, mas sua alma é como um céu azul em dia límpido, pois ela está límpida, livre de desespero.
Por exemplo, nos olhos claros e serenos de Jesus moribundo não há o menor sinal de desespero. Nada!
Tranquilos e certíssimos do Céu. Ele disse ao bom ladrão: “Tu hoje estarás comigo no Paraíso.” O que quer dizer: “Eu vou estar no Paraíso, e é daqui a pouco.” As dores estão aumentando, a liquidação de seu corpo O estraçalha, Ele compreende ter chegado o fim e que Longinus já se encontra afiando a sua lança para varar barbaramente o Coração d’Ele, símbolo do amor que Ele nos tem. Tudo isso Jesus conhece, mas sabe também que quanto mais esses acontecimentos avançarem, mais Ele se aproxima do Céu.
Na hora da morte, um grande Sinal da Cruz
Daí aquela palavra final, que indica todas as esperanças d’Ele: Consummatum est. O preço foi pago por inteiro, sofri tudo, agora é o Céu diante de Mim. Isso explica também porque uma alma como a de mamãe, tendo sofrido muito, era suave, tranquila, sem o menor sinal de desespero, de estraçalhamento, submissa à dor, mas compreendendo em toda a extensão quais eram as dores da vida, e certa de que no fundo a vitória seria dos que sofrem.
Nada mais característico do que o momento de ela sofrer a dor da morte. Já havia amanhecido, portanto ela poderia me mandar chamar para assistir aos últimos momentos dela, tanto mais que eu estava no quarto ao lado. Mamãe percebia sua respiração cada vez mais curta e sabia ter um problema do coração, próprio das pessoas na avançadíssima idade que ela alcançara, e não podia ter dúvida de que a hora do consummatum est estava chegando. Ela não quis nem sequer me incomodar nessa hora e por isso não me mandou chamar! Apenas quando chegou o momento, ela fez um grande Sinal da Cruz e efflavit spiritum1.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1995)
1) Do latim: expirou.
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