Porque ela se parecia com a Igreja
Recordando o modo como Dona Lucilia lhe falava da doçura de Nosso Senhor e as narrações feitas por ela de episódios da História Sagrada, Dr. Plinio evoca seus primeiros encantos com o Divino Mestre e com a Santa Igreja, aos quais sua saudosa mãe lhe ensinou a amar desde a mais tenra infância.
Quando minha irmã e eu éramos pequenos, e nos preparávamos
para a Primeira Comunhão, mamãe reforçava nosso curso de catecismo,
contando-nos episódios da História Sagrada. E se hoje, passado tanto tempo, não
sou capaz de distinguir os fatos que ouvimos dela e os que conhecemos na
catequese, lembro-me entretanto do ambiente que mamãe criava ao narrar essa ou
aquela cena do Antigo Testamento, uma parábola do Evangelho ou algum momento da
vida de Nosso Senhor. Fazia-o de modo a nos imbuir dos sentimentos de piedade e
devoção que um bom católico deve ter, ao se inteirar da história e da doutrina
cristãs.
Salientava a doçura de Nosso Senhor e de Maria
Recordo-me de maneira especial que mamãe nos falava muito da
doçura de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora, fazendo-nos compreender
tudo o que essa doçura tinha de carinho, afabilidade e bondade verdadeiramente
penetrantes. Ao mesmo tempo, ao dizer que “Ele era bom”, esse “Ele” vinha
impregnado da idéia de uma majestade superior à dos reis, da infinita nobreza
divina refletida, pela união hipostática, na natureza humana d’Ele.
Então, pelas descrições de mamãe, percebíamos como tudo
quanto Ele fazia era repassado de serenidade, de significado, e de uma
sabedoria que transcendia a qualquer outra no mundo. Tais eram a bondade e a
superioridade absolutas de Jesus, as quais Dona Lucilia nos apresentava ao nos
contar os episódios bíblicos. Sem deixar de nos fazer ver também — cumpre notar
— um fundo de tristeza que transparecia no Divino Redentor, por causa da Paixão
que sofreria por nós. Esse aspecto estava igualmente presente nas narrações
dela.
Concepção lendária da Terra Santa
É preciso dizer, ainda, que mamãe imaginava um pouco
lendariamente a Terra Santa. Quer dizer, para ela, os desertos da Judéia eram
míticos e poéticos como os arenais de um Saara. Lembro-me de ela pronunciar
certos nomes, por exemplo, Mar de Tiberíades: vinha de Tibério, imperador
romano pagão, mas, ao dizer “Mar de Tiberíades”, na entonação da voz dela,
parecia-nos ver as ondas se formando de modo prestigioso naquelas águas…
Quanto aos personagens do Antigo Testamento, mamãe os
representava como profetas grandiosos, menos suaves e mais categóricos. Quando,
mais tarde, conheci as imagens dos profetas do Aleijadinho, lembrei-me das
descrições de Dona Lucilia e pensei: “Esses são bem os profetas que eu
imaginava quando mamãe começou a me falar deles.”
Primeiros encantos com a Igreja
Pouco depois de nossa Primeira Comunhão, terminado o curso
de catecismo, o meu vínculo estreito com mamãe me ajudaria a discernir outras
riquezas da Igreja Católica. Eu ia com ela às Missas de domingo na Igreja do
Coração de Jesus e, sentado ao seu lado, me punha a analisar o ambiente do
edifício sagrado, e o conjunto que seus diversos aspectos formava com os ritos
e simbolismos da celebração litúrgica. Então, considerava o som do órgão, do
sino que tocava para anunciar a entrada do padre, as expressões de fisionomia
desta ou daquela imagem, tal paramento, tal gesto, tal vitral que me parecia
muito bonito — de tudo aquilo resultava uma soma, uma unidade incomparavelmente
mais bela e preciosa do que a soma das pessoas ali reunidas.
De tal maneira que, quando aquelas pessoas saíam e o templo
se esvaziava, essa riqueza do ambiente permanecia inalterada até a Missa
seguinte, quando outros fiéis ocupariam aqueles espaços e encontrariam aqueles
mesmos e precisos aspectos dispostos para a contemplação deles.
Na minha mente de menino formava-se a idéia — incipiente e
confusa como só podia sê-lo na cabeça de uma criança — de que se tratava de uma
graça do Divino Espírito Santo a pairar naquele ambiente, e que agia na alma
das pessoas, levando-as a compreender e a amar as belezas da Igreja. Daí,
também, a noção do sagrado do templo católico, casa de Deus, onde se entra para
adorá-Lo.
“Querendo bem à Igreja, queria bem à mamãe”
A concepção artística do interior da Igreja do Coração de
Jesus é muito própria a despertar essas impressões. Por exemplo, do banco onde
mamãe e eu costumávamos ficar, podia-se ver a imagem do Sagrado Coração de
Jesus, na nave esquerda, e a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, do lado
direito. Eu considerava aquelas imagens, que sempre me tocaram, analisava as
decorações em volta, as pinturas que representam cenas bíblicas, as outras
imagens de santos e, sentindo também a presença de mamãe, pensava: “Como ela se
harmoniza tanto com todo esse ambiente! Como tudo isso penetra na sua alma e
faz um com ela! Querendo bem a ela, quero bem a isso. Mas também, querendo bem
a isso, quero bem a ela!”
Embora eu não conhecesse o conceito de “reversibilidade”, na
minha cabeça estava a idéia de que havia uma analogia, uma certa semelhança,
uma como que reversibilidade entre a Igreja e mamãe.
Cumpre dizer que a Igreja me impressionava incomparavelmente
mais do que mamãe. E se é verdade que o convívio com Dona Lucilia me ajudou a
compreender a Igreja, mais ainda a Igreja me ajudou a amar mamãe, porque eu a
amei por ser ela um reflexo daquela Igreja à qual eu devotei minha vida
inteira. Se quis tanto bem a mamãe, foi porque percebi na sua alma um
reluzimento da mesma graça que pairava na Igreja do Coração de Jesus.
Lógica e coerente, como o lado racional da religião
Essa idéia da reversibilidade entre o espírito de mamãe e a
Igreja se acentuou ainda mais quando comecei a freqüentar o Colégio São Luís e,
neste, além do contato mais assíduo com as práticas de piedade, fui conhecendo,
pelos ensinamentos dos padres jesuítas, o lado racional da religião.
Como sempre tive particular apreço pela lógica, de um lado,
e, de outro, como os jesuítas raciocinavam muito bem, diante de todo raciocínio
bem feito por eles eu me extasiava: “Isso está direito, concatenado, é assim
que se raciocina!”. E através daqueles ensinamentos, eu admirava o pensamento
sério da Igreja que chega às últimas conseqüências. Encantava-me e me alegrava,
com a alegria que a certeza tem de sentir-se a si mesma.
E então, voltava-me para a figura de mamãe: “Veja como ela é
uma simples senhora, uma mãe de família, mas, naquilo que posso discernir dela,
como é semelhante a tudo isso que me ensinam da Igreja. Como ela é lógica,
coerente e direita! Portanto, eu a amo e a quero, porque ela se parece tanto
com a Santa Igreja Católica!” v
Extraído de conferência em 21/9/1982)
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