Senso do holocausto
Dona Lucilia não concebia as alegrias do Céu como um eterno prolongamento de Hollywood. Mas sabia que os sofrimentos desta vida terrena, suportados com paz e serenidade, preparam uma eternidade onde tudo se compensa, se acerta, se arranja e a axiologia se satisfaz inteiramente. Ela possuía um senso do holocausto levado ao último grau, e fazia todas as coisas para adorar Nosso Senhor, compreendendo que sua atitude causava alegria ao Coração d’Ele.
Dona Lucilia possuía um vocabulário elevado, mas doméstico, de uma senhora do seu tempo. Ela não sabia construir uma bonita frase, entretanto nunca cometia um erro de gramática.
Muitas vezes eu prestava atenção. Mesmo certos defeitozinhos, por exemplo, repetir uma palavra na mesma frase, não saía. Era tudo proporcionado, direito, bem arranjado. E de uma doçura que era preciso ter conhecido para fazer uma ideia.
A mãe perfeita
Mamãe era muito educada, mas seu modo de ser não se explicava em termos de educação. Ela até utilizava as regras de educação, mas no modo de usá-las entrava uma bondade muito grande. Nela não havia uma só aplicação de regras de educação em que não entrasse sua alma. A atitude fria, meramente protocolar, ela não tinha. Nem sei se era capaz disso.
Para mim, ela foi a mãe perfeita. Em geral, quando eu chegava da cidade, encontrava-a fazendo alguma coisinha, escrevendo uma carta no meu escritório, ou então no quarto dela arranjando as coisas numa gaveta com objetos que ela mexia e remexia de todo jeito.
Quando a encontrava no meu escritório, via que ela passara muito tempo lá me esperando e me querendo bem, contente de estar num ambiente que, para o olhar dela, estava marcado por mim. Na realidade, era assinalado por ela, mas para seu olhar de mãe era marcado por mim, porque eu trabalhava muito no escritório e passava, portanto, bastante tempo lá.
Assim, ao entrar no escritório eu o encontrava impregnado de bem-querer e de esperar. Mas tenho a impressão de que se eu, Deus me livre, tivesse feito alguma coisa má para mamãe, ela me receberia do mesmo modo, e talvez com mais afeto ainda. Esse é o ponto que é preciso notar. Então, toda a doutrina de Nosso Senhor no Evangelho sobre o perdão dos pecados se entende com esse exemplo mais próximo de nós, e que ilustra.
Há um corolário disso: ela não era inimiga de ninguém, primeiro ponto. Mas o segundo ponto é: não era indiferente a ninguém. Essa indiferença que se tem para com um anônimo, ela não possuía. Qualquer pessoa era um filho de Deus, um católico, e ela não queria que sofresse qualquer coisa ruim. Daí, por exemplo, embora quase não conhecesse os rapazes que vinham em casa, se estivessem lendo um texto qualquer, no hall, ela, passando ali perto, logo mandava um recado pela empregada para não lerem ali porque prejudicaria as vistas, devido à pouca luz no ambiente.
Respeito não em pé de guerra, mas de coração aberto
Da parte dela, todos os agrados e cuidados possíveis. Isso era contínuo. Entretanto – para se ver como era sua psicologia –, ela sabia que comigo algumas deliberações tomadas, não tem conversa, estão tomadas.
Quando eu era mocinho tomei o hábito de ler deitado. Constava no tempo dela que ler deitado fazia mal para a vista. Não sei se é verdade. E mamãe, mais de uma vez, me chamou a atenção com sua característica afabilidade: “Filhão, você está lendo deitado, faz mal para a vista!” Mas eu reputava ser a posição ideal para ler, estudar. Portanto, tinha que ser!
Eu, sem a mínima brutalidade, uma vez disse para ela: “Mãezinha, não insista, porque não vou mudar esse hábito!” Até ela morrer, nunca mais insistiu. Ela percebeu que era uma deliberação que tomei, e não tinha conversa. E, portanto, não valia a pena mexer. Resignação.
Dona Lucilia tinha uma forma de sensibilidade como não conheci em ninguém. Vou dizer mais: fui muito beneficiado com isso, porque se eu não tivesse conhecido nela, teria dificuldade de compreender como é. Porque há certas coisas que um livro não mostra. Essa forma de sensibilidade, para quem não era um brutamontes, ou um animal, era tocante.
Inclusive nisso: se ela estivesse sentada ao meu lado, já estou vendo… Naturalmente, ela considerava o adjetivo “animal” altamente depreciativo. Imediatamente ela bateria levemente na minha mão, mas eram três toques com muito afeto para comigo e muita compaixão para com o outro: “Não, coitado, afinal de contas nós o queremos bem, vamos perdoar!”
Contudo, em matéria de regra, dever é dever, então tem que cumprir. Essa é uma outra questão. Mamãe não era uma pessoa a quem se faltasse com o respeito. Ela sabia muito bem fazer-se respeitar. Entretanto, não era em pé de guerra, um respeito de lança em riste, mas um respeito de coração aberto.
Isso se tornou tão raro que nem sei o que dizer!
Dr. Antônio protege e defende em juízo um inimigo…
Para falar do lado natural, Dona Lucilia contava episódios da vida de seu pai que faziam ver que havia algo de hereditário nisso.
Naquele tempo, a campanha eleitoral de um político se fazia ao longo de um percurso de trem, porque não havia estrada de rodagem, mas o político descia numa estação ou noutra e conversava com quinze, vinte pessoas. Assim, fazia uma viagem política. No trajeto entre Pirassununga e São Paulo meu avô tinha, em várias cidades, muitas relações e influência eleitoral. Havia numa dessas cidades um opositor, chamado Morais, que disputava a influência com meu avô, e cuja senhora se dava muito bem com a minha avó. Ela dizia, sem rebuços, à minha avó: “Meu marido não tem juízo. Ele deveria ser amigo do Dr. Ribeiro1 e segui-lo. Eu tenho em Dr. Ribeiro uma confiança que não possuo em meu marido.”
Um dia meu avô estava viajando e o trem parou numa cidade, onde ele percebeu um reboliço e perguntou o que era. Contaram-lhe que o Morais fora acusado de um crime naquela cidade, fugira para São Paulo, tinha sido preso pela polícia e levado de volta para o interior. Então, os inimigos do Morais, amigos do meu avô, estavam esperando a chegada do acusado, que seria julgado lá no dia seguinte, para recebê-lo com vaias. Ele não tinha sequer quem lhe fizesse a defesa, pois os advogados tinham se esquivado de defendê-lo, por “respeito humano”, para não serem mal vistos na cidade. E o Morais estava no desespero.
Meu avô disse-lhes: “Espanta-me que vocês, por cima de um inimigo vencido, estejam fazendo isso. Fiquem sabendo que eu vou esperar o Morais, e lhes peço para não darem vaias, porque vou dar o braço a ele, e se vocês o vaiarem estarão vaiando a mim. Não permito que um inimigo meu, derrotado, seja esmagado dessa maneira.”
Chegou o trem trazendo o Morais com os guardas. Meu avô se aproximou, cumprimentou-o muito cordialmente e disse:
– Morais, você quer ir comigo à prisão? Se for no meu braço, eu lhe garanto que não haverá ninguém que o vaie.
– Ribeiro – respondeu ele –, nesta situação em que estou, eu aceito.
Foram os dois caminhando até a prisão, que ficava perto da estação de trem, em meio aos inimigos do Morais quietos, por causa da presença do meu avô.
Chegando à cadeia, meu avô disse a ele:
– Você está sem advogado. Nós não nos damos, mas se você quiser, eu interrompo minha viagem, pouso aqui e preparo sua defesa.
O Morais aceitou.
Meu avô passou a noite trabalhando. No dia seguinte, pelo que contava mamãe, tinha produzido uma defesa maravilhosa e arranjou um jeito de o Morais ser solto. Era compreensível por não se tratar de um bandido profissional, mas de um homem de condição que, de repente, por uma questão eleitoral, cometeu um crime.
Esse jeito de meu avô tratar o Morais não impediu que este depois fizesse canalhadas contra ele, do que nós aqui estamos certos, porque a gratidão é muito rara.
…e vai levar-lhe socorro na hora da morte
Anos depois, meu avô mudou-se para São Paulo, perdeu o contato com o Morais, nem pensou mais nisso. E era uma noite fria, de garoa, não havia ainda telefone em São Paulo, batem à porta da casa. Alguém trazia uma carta da mulher do Morais para meu avô, dizendo: “Dr. Ribeiro, nós estamos na situação mais atroz que pode haver. Meu marido está morrendo de tuberculose. Nós nos encontramos em péssimas condições: não temos víveres nem cama, estamos dormindo num colchão sobre o solo, e não possuímos sequer remédios. Mas será que posso contar ainda com a sua generosidade para dar um dinheiro para o Morais se nutrir, etc.?”
Naquela hora da noite, meu avô mandou vir um tílburi, uma forma de carrinho que havia antigamente e, apesar da garoa, etc., ele foi à casa do Morais, já levando víveres, cobertores e outras coisas para o Morais e sua mulher. Chegando lá, perguntou qual era a receita do médico, foi a uma farmácia; o farmacêutico dormia, mas ele fez que abrissem a farmácia e comprou o remédio.
Logo depois, o Morais morreu com a cabeça apoiada num travesseiro nos braços do meu avô, o qual, se não me engano, havia levado o travesseiro. E o Morais com uma doença contagiosa, que naquele tempo era quase incurável…
Mamãe contava essa história, com muito entusiasmo pelo pai. E fazia isso evidentemente com a intenção de que eu seguisse o bom exemplo. Isso era patente. Aliás, ela fazia muito bem, estava em seu papel de mãe.
Ela me contou o caso do Morais mais de uma vez, mas nunca manifestou um azedume contra ele. Mamãe explicava bem direito como o Morais era ruim, para eu compreender a generosidade do pai dela. Se o Morais estivesse vivo e precisasse de mamãe, ela ia fazer o que fosse necessário, àquela hora.
Uma senhora russa de alta condição social pede conselho a Dona Lucilia
Houve também o fato que se deu num hotel, em Paris. Certo dia, uma senhora russa de alta condição social bateu à porta do quarto de mamãe e disse:
– Madame, a senhora me permite? Eu percebo na senhora tanta bondade que, embora eu não possua nenhum direito de vir expandir minha dor com a senhora, venho pedir licença, tenha paciência comigo. Vou expor à senhora o sofrimento que eu tenho, e vou perguntar se a senhora tem um conselho para me dar…
Podem imaginar se o pedido foi atendido… Ela estava feita para atender!
– Entre, por favor, sente-se, vamos conversar.
A senhora contou que tinham detectado nela um câncer. Era uma doença incurável, e ela estava apavorada.
Aqui entravam os jeitinhos de Dona Lucilia. Ela possuía certa experiência de doença, como tem uma dona de casa atenta a essas coisas para o cumprimento do dever, mas não tinha um senso clínico especial. Mas ela dava um jeitinho nas coisas. Ela ouviu tudo e disse:
– Olhe, o médico deu à senhora certeza de que isso é câncer mesmo e que é incurável?
– Sim, Madame, o médico deu.
– Mas, olhe aqui, os médicos podem se enganar. Eu aconselho a senhora ir ao Dr. Fulano, que é um grande médico aqui em Paris e pode fazer um exame melhor. E quero muito aconselhar a senhora a ir lá. E a senhora espere, tenha confiança em Deus que isso se arranja.
A russa chorou, acabou secando as lágrimas e foi ao médico. E depois, no hotel, não se encontraram mais. Passado algum tempo, mamãe recebeu uma carta da russa dizendo que não sabia como agradecer. Tinha ido consultar o médico, e este lhe dera um remédio que a curou, afastando aquele pesadelo.
A ação de mamãe é de natureza a recompor, e o afeto que ela tinha para com os outros era desinteressado. Ela queria o bem dos outros, porque é bom, em si, que os outros estejam bem. A ordem criada por Deus pede isso. E, portanto, é por amor de Deus que ela o fazia.
Queria o bem das pessoas, sem esperar nenhuma retribuição
Por exemplo, esse episodiozinho dos jovens lendo no hall pouco iluminado, ela se inquietou porque era uma tristeza, na concepção oculista dela, que estivessem comprometendo a própria vista. Isso, em si, é um mal por não ser de acordo com a ordem das coisas, mas também porque vão ficar sofrendo, com prejuízo, por perderem algo que Deus lhes deu, que é uma boa vista. E ela queria o bem deles, sem esperar nenhuma retribuição. Vê-se que no fundo estava a ideia do amor de Deus.
Mamãe possuía uma noção de ordem muito clara, acompanhada da ideia de que nesta Terra essas coisas não têm recompensa, mas as grandes tristezas da vida preparam no Céu alegrias nobres e serenas, como eram nobres e serenas essas tristezas.
A alegria no Céu ela não concebia de pandeiro na mão, como um eterno prolongamento de Hollywood. Mas era uma coisa diferente. Toda a paz, toda a serenidade que ela tinha aqui, no meio da tristeza, preparava uma eternidade onde tudo isso se compensa, se acerta, se arranja, e onde a axiologia se satisfaz nos seus últimos postulados. É a Fé católica, evidentemente.
Entrava muito uma adoração pessoal a Nosso Senhor e, sabendo que o Coração d’Ele ficaria alegre com sua atitude, ela a fazia para adorá-Lo. Todas essas razões constituem um senso harmônico, e um senso do holocausto levado ao último grau. Não vi ninguém levar o holocausto até o ponto onde ela levou.
Eu já a conheci assim, e ela foi desse modo o tempo inteiro!
Só aceitava cartas manuscritas
Lembram-se daquela história de eu, quando criança, passar da minha cama para a dela e sentar-me em cima do seu peito para acordá-la? Abria os olhos dela com as minhas mãos. Eu percebia que ela passava de um sono profundo imediatamente para uma atitude de perdão. Mal ela notava que era eu quem estava ali, sentava-se logo de uma vez. Não era uma atitude ambígua para ver se começava a dormir dali a pouco, não. Ela renunciava a retomar o sono. Abria um parêntese no sono e brincava comigo, dizia coisas, me agradava, etc.
Eu me sentia tão invadido por aquela bondade que as angústias da noite fugiam. Lembrei-me disso quando, lendo a vida de Santa Teresinha do Menino Jesus, vi-a falar das tentações que tinha de noite. Então ela diz que não compreendia por que no Ofício as carmelitas rezavam: “Para que fujam os sonos maus, e os fantasmas noturnos…” E isto porque havia angústias noturnas.
Tenho a impressão de que eu acordava angustiado. Sentia-me isolado, inseguro, mal, numa espécie de naufrágio. Além disso, era doente, fraco. Então, passava para a cama dela, mas sem a mínima hesitação. Eu sabia que ia ser bem recebido a qualquer hora da noite. E quando ela me fazia deitar de novo em minha cama, eu me lembro de que mais de uma vez me vinha a reflexão: “Propriamente eu me arranjo com ela. Com mamãe posso me arranjar até o fim, porque ela não me recusa nada!” Acho que isso me acalmava, então dormia bem.
No dia seguinte, era mais confiança, mais querer bem, mais respeito, mais admiração…
Aliás, é preciso dizer, eu a queria bem até onde me seja possível querer bem a uma pessoa! Naturalmente, Nosso Senhor, Nossa Senhora estão acima de toda comparação. Mas até onde podia querer bem uma pessoa, eu a queria totalmente bem.
Mas, vejam bem, ela não tinha essas bondades relaxadas. As menores coisinhas, ela insistia comigo. Quando eu saía de São Paulo, sempre lhe escrevia cartas, e ela gostava, lia, relia e as guardava. Mas eu omitia de pôr data, porque toda a vida tive preguiça de escrever. E tinha um defeito qualquer na mão, por onde escrever me doía um pouco; além disso, letra muito feia. Tudo isso fazia com que eu não gostasse de escrever. E ela só queria carta escrita à mão, não aceitava batida à máquina. Dizia que carta à máquina era inexpressiva, e que ela não me sentia na carta à máquina. E tinha razão. Eu era datilógrafo rapidíssimo e em cinco minutos saía uma carta enorme, evidentemente transbordante de carinho. Mas ela não queria. Afirmava que tomava como não recebida.
Eu cedi porque ela tinha o direito de querer isso de mim. Mas, por preguiça de escrever, não punha a data. Ela, na resposta, lembrava: “Filhão querido, quando me escreveres, não esqueças de pôr data em cima…” Eu na próxima vez esquecia, ela insistia de novo. Isso era feito com tanta doçura, que eu ficava literalmente encantado! v
(Extraído de conferência de 31/8/1985)
1) Dr. Antônio Ribeiro dos Santos, avô materno de Dr. Plinio.
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