Transbordamento de bondade
Cada pessoa é chamada a simbolizar de modo especial uma determinada virtude. Dona Lucilia representava a bondade e fazia todas as coisas, mesmo as pequenas, com esmero e perfeição. As recordações de Dr. Plinio transmitidas nesta conferência demonstram de sobejo essa realidade.
Dona Lucilia queria que eu fosse um homem probo, direito, reto, um católico. E se eu estivesse, por exemplo, com dor de garganta ela não diria: “Vou cuidar de você porque é meu filho. Se fosse um outro, eu não me incomodava.” Não! Ela trataria com muita bondade também esse outro, embora com menos efusão de bondade do que a manifestada a seu filho. Porque é próprio da bondade que ela se propague.
Ministrando remédios homeopáticos
E se eu fosse — que Deus me livre! — mau filho, ela seria igualmente boa e trataria minha dor de garganta do mesmo modo. É claro que a solicitude, o empenho maior de tudo quanto ela fazia convergia para a fidelidade à vocação, a glória de Deus.
Cada coisa pequena era feita com um esmero e uma perfeição, que indicavam o transbordamento da sua boa vontade.
Lembro-me, por exemplo, de mamãe entrar no quarto de Rosée ou no meu, quando estávamos doentes — essas doencinhas de crianças, tive quase todas —, trazendo os remédios homeopáticos. Ela tomava uma folha de papel, a qual dividia em dois e depois ia escrevendo cuidadosamente, a lápis, a hora correspondente a cada medicamento. Quando essa folha estava preenchida, ela arranjava outra e recomeçava a anotação, para ter certeza de não se distrair nenhuma vez e não faltar nenhum remédio.
Mamãe temperava, num copo, água com várias gotas de remédio, o que era tido como mais eficaz do que a pastilha. Quando chegava a hora, ela entrava sorrindo, levando na mão o copo com um pires em cima — para não evaporar aquela homeopatia preciosa — e uma colher.
Ela descobria o copo e dava o remédio com todo carinho, todo cuidado, para não pingar fora. Lembro-me do jeito da colher penetrar na boca; mamãe só a retirava depois de se ter certificado que eu tinha tomado tudo – mesmo sendo eu um meninão de 7, 8 anos, ainda era assim. Mas ela entrava no quarto tão afável, tão bondosa, tão comunicativa, tão carregada de promessas de que o remédio faria bem, que eu nem sei o que dizer! Era esse transbordamento. Se eu fosse mau filho, faria a mesma coisa. Ela não ia condicionar. Se condicionasse, trincava algo.
Desejo de conviver com seu filho, mesmo que fosse por um instante
Exceto em ocasiões como aniversários etc., os agrados dela eram como em todas as outras famílias. De manhã eu beijava a mão, depois o rosto de mamãe; e à noite, antes de dormir, também. Só isso.
Quando éramos crianças, minha prima, minha irmã e eu tínhamos a Fräulein1 e estudávamos em um recinto, no andar superior da casa, que servia como sala de estudos e de brinquedo. Tendo eu ficado mais velho e a Fräulein sido despedida, pus uma mesa de estudos no escritório de papai; e mamãe, de vez em quando, entrava.
E o entrar — até o primeiro ou segundo ano da faculdade isso não desapareceu, embora tenha se atenuado — era meio para ver se eu não estava perdendo meu tempo fazendo qualquer bobagem, que a criança faz para não estudar, ou se estava estudando mesmo.
Ela não propriamente disfarçava, mas tinha tanta vontade de agradar e ficava tão contente de ter esta oportunidade natural, que entrava transbordando de carinho. Eu fechava a porta do escritório de papai — que em geral ficava trabalhando na cidade — não a chave, mas só com o trinco. Mamãe abria o trinco de um modo inteiramente diferente do meu. Ela o fazia devagarzinho, entrava e me dizia alguma coisa da miúda vida cotidiana, por exemplo: “Filhão, você já tomou seu lanche?” Ou então: “Filhão, como caiu a temperatura!” Era tão carinhosa e de tal maneira se percebia que ela queria me ouvir falar, conviver comigo naquele instantinho, que era uma coisa extraordinária!
Mamãe era muito ciosa do meu tempo, mas com uma restrição: se eu fazia algum aceno para ela sentar-se e conversarmos um pouco, não recusava. Falávamos então sobre o tempo, exames, coisas muito respeitáveis, etc., mas ela não se impunha nunca. Isso até o fim de sua vida.
Eu não me lembro de uma só vez em que ela se sentasse junto à minha mesa de estudos só para conversar, prosear. Seria uma coisa tão natural numa mãe… Às vezes mamãe entrava e apanhava uma cadeira porque tinha alguma coisa particular para falar, contava um fato de família, tratava de algo que era necessário resolver. Mas, fora desses casos, nunca!
E sua prosinha era leve, ela ficava tão entretida, contente e agradecida que transbordava. Porém, bastava notar um pouquinho que eu estava com pressa no estudo para ela imediatamente se levantar, fingindo que não percebeu. E às vezes até ela dizia: “Filhão, sua avó está esperando em tal sala, preciso atendê-la, etc.”, ou alguma coisa assim, mas para não me deixar mal à vontade.
Vê-se, portanto, numa bagatela como essa, o requinte do esmero. Não é propriamente da polidez. Quem reduzisse isso à polidez, baixaria o alcance do que estou dizendo. É o requinte da vontade de agradar, produzindo uma sensação agradável a todo propósito.
Música de conselhos, gestos e afagos
Por exemplo, na hora do lanche que se tomava na própria sala de jantar; era raro servirem-no em bandeja no local onde a pessoa estava. E eu era muito assíduo a todas as refeições, não faltava a uma delas, e com um apetite fenomenal!
Em geral a sala de jantar nessas casas antigas era o living. Além da mesa e das cadeiras, comportava ternos de couro e outras coisas. E mamãe lá estava, com minha avó e alguma outra pessoa da família. Os adultos não tomavam lanche ou se serviam muito pouco dele. Ela, às vezes, tomava, mas muito pouco. Os mais moços sempre tomavam lanche, sobretudo minha prima, que era um bom garfo, e eu. Minha irmã, pouco.
Os meninos se sentavam junto a uma das pontas da mesa. Às vezes vinham outros primos, e fazíamos uma conversa, naturalmente muito mais barulhenta do que a dos mais velhos, que continuavam a falar do outro lado, sem prestar atenção na nossa conversa. Ela não. Sobretudo quando era mais moça e ouvia normalmente, percebia-se que mamãe participava da conversa dos mais velhos, mas tinha um certo ouvido posto na nossa. Se saía qualquer coisa que não estava bem, à noite, na hora de deitar, isso dava em conselho. Mas um conselho muito afetuoso:
— Filhão, sua mãe ouviu você dizer tal coisa assim hoje; mas veja bem essa questão tem tal lado, depois tal outro…
— Mas, mamãe — não havia discussões, mas de minha parte apenas exclamações pernambucanas — isso absolutamente não é assim…
Ela permanecia quietinha e me olhando com uma seriedade afetuosa. Quando eu terminava — não me interrompia nunca —, ela me dizia: “Está bom, mas veja tal lado, tal outro…”; o ponto de vista dela era firme.
Era uma tal música de conselhos, gestos e afagos, que afinal terminávamos de acordo e eu saía da conversa todo refeito. Ela ficava com os olhos mais abertos a respeito dessa ou daquela pessoa, e eu acabava reconhecendo que não vinha fora de propósito também notar tal qualidade que ela tinha observado, e colocá-la na balança. Quer dizer, ambos retificávamos um pouco a “contabilidade”.
Ela não me dava razão explícita, a não ser muito raramente. O sinal de que ela concordara com minha apreciação severa das pessoas era o silêncio. Portanto, quando ela ia ficando quieta, era um sinal do reconhecimento de que eu tinha razão. Então, mudávamos de assunto. Mas se julgasse que eu não tinha razão, ela defendia o “réu” até o último instante.
Mas, quando via que o “réu” era indefensável, ela ficava mais quietinha, ia silenciando assim como quem fosse apagando os holofotes interiores, os discretos holofotes interiores. Ficava entendido isto: “Eu sou sua mãe, não posso estar dando razão a você em tanta coisa, mas no fundo eu bem vejo que você está certo; queira-me bem e não insista!”
Presentes dados a Dr. Plinio
Todo ano, por ocasião de meu aniversário, Natal, Ano Bom, mamãe me dava um presentinho, mas não muito caro, porque eu tinha pouco dinheiro para dar-lhe e ela vivia de uma rendazinha que eu lhe concedia. Mas ela comprava o melhor que podia. Dona Lucilia era desse gênero de pessoas que achava que as coisas tendem ao eterno, e não se dava bem ideia de como os gostos mudam. Em vez de confiar a Rosée a compra de uma gravata, ela confiava a papai, porque na família ele era tido, em moço, como se vestindo muito bem. Então permaneceu aquela ideia: João Paulo veste-se bem.
Naturalmente, os tempos passaram, as modas mudaram, mas papai comprava gravatas ao gosto do tempo dele, sem o esmero que caracterizava mamãe. Mas ela julgava que estava muito bem comprada, porque “João Paulo veste-se bem”. Há muita gente que envelhece assim, com esses paradigmas fixos.
Naquele tempo, qualquer gravata — mesmo que não fosse de muito boa qualidade — vinha coberta por uma folha de seda, dentro de uma caixa.
Não sei por que, mas em vez de escrever num cartãozinho, ela o fazia nesse papel de seda. Era o hábito. Eu respeitava seu modo de fazer, porque neste entravam os pormenores mais miúdos de uma personalidade que, para mim, no caso dela, tinha um sabor, de maneira que eu deixava fazer e fingia que achava tudo inteiramente normal.
E uns anos antes de ela começar a perder a lucidez — ficou com a lucidez meio trincada, bem prejudicada nos dois últimos anos da vida —, ela teve catarata e via mal. E depois não dominava bem os braços; para uma pessoa velha, ela os dominava normalmente. Certo dia eu passei à tufão pelo corredor de meu apartamento e a vi sentadinha junto à minha escrivaninha — ela julgava que eu me encontrava fora de casa e estava, então, me preparando a surpresa de aniversário, porque em cada vez uma gravata, um abajur ou outro objeto assim era uma surpresa.
E ela estava sentadinha ali, vendo mal, escrevendo ainda com aquelas penas de aço que se molham no tinteiro e despois se escreve. Caneta tinteiro ela nunca usou. E escrevendo umas palavras que eram, em geral: “Ao filhão querido, muitos beijos e abraços”, ou algo semelhante, sem nenhuma pretensão, mas com um cuidado, um esforço, uma coisa enorme! Ela toda estava empenhada em que aquilo saísse bem feito. Eu fingi que não notei — creio que ela nem me viu passar — e fui embora. Depois guardei a caixa.
Era esse o esmero com que ela fazia qualquer coisa pequena, e até pobre. Com um cuidado que era esse carinho envolvente como uma campânula, que abrange por inteiro e constituía a nota característica do afeto materno dela.
”Catena aurea” de intermediações
Não me espanta nem um pouco, portanto, que ao pedir graças por intercessão dela, as pessoas sejam atendidas dessa maneira. Foi o próprio modo de ser dela, a vida inteira.
Há um princípio de São Bernardo, que diz: “De Maria nunquam satis”. Nunca basta, a respeito de Nossa Senhora. É o único princípio em que eu timbro em ser estrito até o último ponto possível e imaginável. Quer dizer, qualquer forma de devoção à Virgem Santíssima que se tenha adquirido, seja a que título ou de que maneira for, não se diminui nunca!
Contudo, em que proporção se deve pedir a Dona Lucilia, em que proporção se deve pedir a Nossa Senhora?
A meu ver, a resposta varia muito de acordo com a pessoa. Eu, por exemplo, peço enormemente a Nossa Senhora, mais do que a mamãe, porque me habituei a isso e “de Maria nunquam satis”.
Creio que o recurso a ela deve ser visto como o de todas as outras devoções, que não são a Nossa Senhora ou a Nosso Senhor Jesus Cristo, naturalmente. Todas as devoções são consideradas em função da mediação universal de Maria Santíssima.
A Doutrina Católica ensina que qualquer santo no Céu — por exemplo, Santo Antônio de Pádua ou Santa Teresinha do Menino Jesus — que obtenha uma graça de Deus para nós, foi porque pediu por meio de Nossa Senhora. A fortiori, as almas que a Igreja não canonizou, mas se tem certeza de serem amadas por Deus, estão nessas condições. Podemos pedir, e se obtivermos, devemos agradecer, certos de que foi por meio de Nossa Senhora que essa alma nos conseguiu esse favor; do contrário, ela não obteria nada.
Entretanto, pode ser que, por desígnios da Providência, nossa atenção mais assídua esteja concentrada, de imediato, nessa alma, mas sempre com esse fundo de quadro que, aliás, repete-se em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo, porque Ele é o único mediador entre o Padre Eterno e os homens. Nossa Senhora obtém porque pede por intermédio d’Ele. Se Ela pedisse desligada d’Ele — muito mais, a fortiori, do que no caso d’Ela conosco — não obteria nada. Há, portanto, uma espécie de catena aurea2 de intermediações. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/1/1982)
Revista Dr Plinio – Fevereiro de 2014
1) Srta. Mathilde Heldmann, preceptora alemã contratada por Dona Lucilia.
2) Do latim: cadeia de ouro.
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