Peculiar ação de presença
Repassada da serenidade dos antigos tempos, a presença de Dona Lucilia marcava os ambientes nos quais ela se encontrava, ainda que estivesse sozinha e silenciosa. Para Dr. Plinio, o estado de espírito habitual de sua mãe, constituído de paz e piedade, não apenas se opunha de modo profundo à crescente agitação moderna, como também favorecia as boas disposições de alma daqueles que com ela privavam.
Pessoas há que por sua entonação de voz, pelo seu timbre forte e acentuado, se fazem ouvir a grande distância e o sentido de suas palavras é facilmente compreendido. Outras, menos aquinhoadas nesse aspecto, não despertam tanto a atenção quando falam, e por isso seus pronunciamentos adquirem pouco relevo.
Presença feita de calma e piedade
Ora, o que se dá com a voz, verifica-se também com um predicado humano o qual, pela superficialidade do mundo contemporâneo, nem sempre é analisado como merece. Refiro-me ao que se chama ação de presença. Em virtude desta, certas pessoas que se acham num determinado ambiente, ainda que silenciosas, nos parecem muito expressivas. Pela sua fisionomia, pelos seus gestos de mão, pela posição de suas pernas e por todo o seu modo de ser, elas se comunicam, exprimem sua mentalidade, e por sua simples presença podem fazer um discurso ou uma pregação.
Nesse sentido, agradava-me considerar a ação de presença de mamãe, que possuía esta peculiaridade: ela podia se encontrar sozinha numa sala, mas, achando-se ali com seu estado de espírito habitual, feito de paz, calma e piedade, ela por assim dizer enchia a atmosfera daquele lugar. Essa forma de presença dela era tão marcante que, se mamãe deixasse a sala e se deslocasse para outro cômodo da casa, no recinto deixado por ela ainda permanecia, por algum tempo, o aroma espiritual de sua estada ali.
Formada na serenidade de outrora
Para tanto contribuiu o ambiente do Brasil antigo no qual ela se formou, onde as coisas se faziam e se passavam com uma serenidade desconhecida nos dias atuais. Mamãe nasceu e viveu seus anos de menina e adolescente no interior paulista, em Pirassununga. Segundo suas próprias reminiscências, era um lugar tão silencioso e calmo que, de vez em quando, podia-se ouvir o latido de um cachorro vindo do outro lado da cidade. A vida de outrora transcorria na calma e na tranqüilidade.
Fato ilustrativo dessa placidez — ainda segundo o que mamãe costumava contar — foi o que se passou com um colibri na casa onde ela morava. Junto ao vidro de uma das janelas da residência havia uma estampa representando um buquê de flores e, não raro, borboletas e colibris vinham bater no vidro, iludidos pelo atraente das pétalas desenhadas na gravura.
Ora, certo dia um beija-flor se precipitou com tanto ímpeto para aquela estampa que a batida no vidro o deixou desacordado. Delicadeza própria daquele tempo, uma tia de mamãe se compadeceu do passarinho e o tomou a seus cuidados, tratando-o todos os dias com água açucarada, até se restabelecer completamente. Claro, tudo sob o olhar atento e igualmente condoído de mamãe. Uma vez recuperado, o beija-flor tomou ânimo e retornou à sua constante procura de néctar na abundante vegetação daqueles campos. Nesse pequeno episódio doméstico transparece, a meu ver, a existência calma e serena de nossos antepassados.
Tranqüilidade imutável em meio à agitação moderna
Com o volver dos anos, porém, essa serenidade que mamãe encontrava em torno de si deixou de ser uma nota dominante, sobrepujada por modernas expressões de energia, de força de vontade, de capacidade de realização, entre as quais primava a velocidade dos automóveis e aparelhos mecânicos.
Mamãe assistiu a escalada desses avanços da técnica, que iam ganhando terreno sobre a calma dos seus anos de mocidade. A vida passou a ser agitada, mas Dª Lucilia em nada mudou sua maneira de ser: conservou sempre a sua característica tranqüilidade em meio à crescente agitação dos tempos atuais.
Reflexo dessa calma que mamãe guardava era o seu prazer em contar casos do seu tempo de criança e de moça, alguns alegres, outros tristes, mas todos recheados de pormenores e detalhes cuja riqueza demonstravam o quanto esses episódios significaram para a sua formação. E como, numa época em que a mania de velocidade impunha os diálogos curtos e as narrações sumárias, aquele modo de conversar de mamãe era uma reafirmação da calma dos velhos tempos.
A prima vestida de noiva no caixão
Recordo-me, por exemplo, de ela nos contar o que se passou quando faleceu uma de suas primas, da qual era muito amiga, vítima de diabetes. Na véspera do desenlace, mamãe, que se encontrava na fazenda do pai, sonhou que a prima ia morrer. Na manhã seguinte, levantou-se e saiu para passear pelo campo até que, em determinado momento, um empregado da fazenda veio ao encontro dela, com um telegrama do tio, pai daquela moça, avisando que a filha morrera.
Mamãe tomou o primeiro trem para São Paulo, onde chegou para o velório e o enterro da prima. E nos descrevia então este pormenor que muitos desconheciam: no caixão ela viu a jovem toda vestida de noiva, como era costume naquele tempo quando se enterravam moças que morriam antes de contrair matrimônio. Estava, portanto, preparada como se fosse para o casamento, exprimindo assim o belo simbolismo da virgindade com que a falecida compareceria diante de Deus.
Ação de presença contra-revolucionária
Esse e outros fatos povoavam as lembranças de mamãe, e enriqueciam suas conversas de um modo que as ia diferenciando cada vez mais das prosas influenciadas pelas trepidações modernas.
Essa diversidade correspondia também a uma diferença de afeição. Quando mamãe queria bem a uma pessoa, era uma benquerença séria e para a vida inteira. Quer dizer, ela era seriamente amiga das pessoas às quais devotava seu afeto, na calma e na serenidade em que sempre a víamos.
Tais características compunham essa ação de presença peculiar de mamãe, que eu não hesitaria em qualificar de contra-revolucionária, na medida em que favorecia as boas disposições de alma dos seus semelhantes, convidando-os a compartilhar daquela calma e daquela piedade as quais só poderiam desagradar a Revolução. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/7/1994)
Revista Dr Plinio 124 (Julho de 2008)
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